A crise do lixo em Belém: uma poderosa moeda política em 2024

Mulher passei com criança ao lado de uma montanha de lixo em Belém.
Mulher anda com criança ao lado de uma montanha de lixo em Belém. Foto: Oswaldo Forte
Mulher passei com criança ao lado de uma montanha de lixo em Belém.

Lixo e entulho ao lado da Feira do Barreiro, na Avenida Pedro Álvares Cabral. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude

A crise do lixo em Belém não é um problema novo e continua a desafiar soluções efetivas para a Região Metropolitana. Após um conturbado ano de 2023, no qual a prefeitura local precisou iniciar um processo licitatório para a contratação de uma nova empresa para gerir os resíduos da região, tendo a Terraplena vencido, dois principais obstáculos surgiram: a necessidade de encontrar um novo lugar para o aterro sanitário, e a organização eficiente da coleta e destinação dos resíduos.

Em meio a um ano de eleições municipais, a questão do lixo na capital paraense tende a virar um tema central nas campanhas eleitorais dos candidatos municipais no estado. E, apesar de a prefeitura de Belém ter finalizado o processo de licitação para concessão dos serviços de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, a busca por um local para o aterro sanitário representa um desafio significativo e arriscado para o atual prefeito, Edmilson Rodrigues (PSOL), e pode não representar a reeleição de um candidato do município que receber o novo aterro.

A situação se torna ainda mais complexa considerando que Belém é a sede da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP 30, evento de grande interesse do governador Helder Barbalho (MDB) e que tem atraído atenção internacional. Diante disso, a busca por soluções para essa crise, que persiste ao longo dos anos e que tem se intensificado recentemente, envolve uma complexa rede de interesses políticos, levantando questionamentos sobre possíveis interferências por parte do governo estadual.

A crise do lixo de Belém é uma questão apenas municipal?

Num cenário de 144 municípios paraenses, apenas cinco aterros sanitários são licenciados. Sendo eles: Marituba, Altamira, Vitória do Xingu, Parauapebas e Santarém. Os demais municípios que não são atendidos por esses aterros têm seus resíduos sólidos depositados ainda em “lixões” provocando diversos problemas ambientais, como a poluição do ar, do solo e da água, além de contribuir para a proliferação de vetores de doenças, promovendo um impacto negativo na saúde pública.

Para Alexandre Carvalho, advogado ambiental e embaixador do Instituto Lixo Zero no Pará, a questão dos resíduos sólidos na Região Metropolitana de Belém sempre se apresentou como um dos maiores problemas ambientais dos municípios que a compõem. “Ao nosso entender, essa questão nunca se mostrou como uma prioridade para nenhum gestor público que insiste em não adequar a cidade à Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei Federal 12.305/2010). Questão essa que não se restringe à região”, comenta.

Na capital, os problemas referentes aos resíduos sólidos, que já não eram poucos, se intensificaram a partir da implementação do aterro sanitário de Marituba, em 2016. Para Alexandre, existem dois principais motivos. O primeiro seria que o local nasceu com uma vida útil curta, cerca de oito anos, e desde o início de suas operações, demonstrava fragilidades estruturais que, num futuro muito próximo, afetariam a sociedade e o meio ambiente.

“O segundo motivo é que, ao longo de muitos anos, o município de Belém não teve um processo licitatório que apontasse uma empresa ou consórcio definitivo para a coleta e transporte dos resíduos sólidos. Isso perdurou por muitos anos pela prorrogação de contratos emergenciais, o que compromete a fiscalização da melhor prestação do serviço público”, complementa.

Lixo espalhado pelo chão em Belém

Pontos de descarte irregular na Avenida Bernardo Saião, no bairro da Cremação, obstruem vias e calçadas. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude

Edmilson Rodrigues cumpriu dois mandatos como chefe do município, nos anos 1990 e nos anos 2000, e para ele, a crise do lixo em Belém não era novidade. No entanto, em sua atual gestão, que teve início em 2021, os problemas haviam ganhado novos rumos.

Para explicar essa questão, a prefeitura, por meio da assessoria da Secretaria Municipal de Saneamento (Sesan) comentou, em entrevista, que um dos principais desafios enfrentados pela gestão tem sido a crise financeira e a redução da cota-parte do ICMS.

“Em 2022, a gente arrecadou cinco vezes menos do que a gente gastou em 2021. A gente arrecadou, pela taxa de resíduos sólidos que está no IPTU, em torno de R$50 milhões e gastamos R$250 milhões. Então essa conta não fecha. Associado a isso, a gente está tendo a redução gradativa da cota-parte do ICMS. No primeiro mandato do Edmilson (1997-2000), era 41%, e hoje está em 8%. Cada ponto percentual representa R$70 milhões a menos. Tem o aumento da demanda de gastos e a redução da arrecadação”, explicam os assessores da Sesan.

Segundo a Sesan, a cota-parte do ICMS deveria seguir uma lógica de distribuição entre municípios baseada, principalmente, no índice populacional de cada um: “A distribuição da cota-parte desse ICMS para o estado do Pará é desigual. Você tem uma realidade tão complexa como Belém recebendo cinco vezes a menos que a cota-parte do ICMS de municípios mineradores. […] Canaã dos Carajás [sudeste do estado e município produtor de minério] tem 250 mil habitantes e recebe cinco vezes mais cota-parte do ICMS do que Belém, que tem 1 milhão e 300 mil habitantes.”

Paralelamente à crise financeira, à redução da cota-parte do ICMS e ao processo licitatório para uma nova empresa de gestão de resíduos sólidos, a prefeitura tem uma missão: encontrar um município que forneça um novo espaço para seu aterro sanitário. As opções consideradas, de acordo com a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas), são os municípios de Acará, Bujaru e Castanhal. Em nota, a Semas destacou, também, que o processo submetido pela empresa Terraplena para a instalação de uma unidade de tratamento de resíduos no Acará está em análise, sendo essa sua única responsabilidade.

Entretanto, para o jornalista Olavo Dutra, o documento de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto Ambiental (Rima), que dizem respeito à proposta de construção de um aterro de tratamento de resíduos pela empresa Terraplena, teve 12 itens marcados como “não atendidos”. Isso representou quase metade dos 30 aspectos listados no relatório. Assim, a empresa deverá atualizar o protocolo e submetê-lo novamente.

Em resumo, o ICMS é um imposto cobrado sobre a circulação de mercadorias e a prestação de serviços, sendo uma importante fonte de receita para os estados brasileiros. A cota-parte do ICMS é a maior transferência de recursos do Estado para os municípios, representando a maior fonte de receita orçamentária municipal.

O Projeto de Lei nº 810/2023, aprovado em dezembro de 2023, que a alterou a Lei Estadual n° 5.645/1991, determinou que dos 25% resultados da arrecadação ICMS distribuído aos municípios, 4% serão divididos igualmente pelos 144 municípios paraenses, 10% serão de acordo com a densidade populacional de cada cidade, 3% serão baseados na superfície territorial e os 8% do ICMS verde serão mantidos, atuando na manutenção do bioma amazônico.

Homem abaixado próximo a monte de lixo em Belém

Marginal do Canal São Joaquim com uma longa extensão de lixo acumulado obstrui parte da avenida e prejudica o tráfego de veículos. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude

A quem interessa tanto lixo na rua?

Uma semana antes do suposto início das operações da Ciclus Amazônia, empresa que faz parte do consórcio gerido pela Terraplena Ltda, um motorista de aplicativo relatou numa conversa informal: “Hoje, já rodei a cidade toda, de uma ponta a outra, e em todos os bairros por onde eu passei, vi sacos de lixo na rua e muito lixo espalhado. Acho que o caminhão não está passando”.

Amplamente divulgado, inclusive em campanhas publicitárias na televisão, o início das operações da Ciclus Amazônia em Belém, que ocorreu na última segunda-feira (15), acabou se transformando numa disputa legal envolvendo a Guamá Tratamento de Resíduos. Essa empresa é responsável pelo aterro sanitário de Marituba, que recebeu uma ordem judicial para continuar operando até fevereiro de 2025. Por outro lado, a Ciclus depende do referido local para o descarte do lixo coletado, uma vez que a Terraplena não construiu seu próprio aterro e não possui previsão para fazê-lo.

Em nota disparada à imprensa no dia 12 de abril, a Guamá Tratamento de Resíduos informou que participou da licitação realizada pela prefeitura e propôs o valor atualizado de R$183 por tonelada. Atualmente, a empresa recebe R$124 por tonelada. O comunicado também enfatiza que a empresa não recebeu visita técnica após mais de 60 dias do processo de licitação, mesmo procurando proativamente a companhia vencedora da licitação. Complementou afirmando que não há documentação formal entre as empresas às vésperas do início do novo contrato, o que coloca em questão a adequação do tratamento dos resíduos.

Em 14 de abril, a desembargadora Filomena Buarque, em decisão durante o plantão do Tribunal de Justiça do Pará, ordenou, no entanto, que a Guamá Tratamento de Resíduos receba os resíduos coletados pela Ciclus Amazônia, a partir do dia 15, mantendo o preço atual, conforme determinado nos processos judiciais. A Guamá tentou aumentar unilateralmente a quantia pouco antes do início do contrato, o que foi considerado pela desembargadora abuso de direito. A multa diária por descumprimento é de R$1 milhão, por considerar que a interrupção do serviço poderia causar sérios problemas de saúde pública e ambientais.

Nessa mesma noite, em nova nota, a Guamá se pronunciou dizendo que contestará a decisão judicial que a obriga a prestar serviços à Ciclus, desafiando as normas de direito privado e a liberdade de contrato garantida pela Constituição. A Ciclus foi contratada para lidar com a limpeza urbana de Belém, mas não teria buscado negociação com a Guamá, gestora do aterro, optando por buscar a justiça, alegando emergência.

Agora, a Guamá deveria atender a Ciclus a um valor que não cobriria seus custos. O novo contrato entre a Ciclus e o município implicaria uma nova relação entre as partes, regida pelo direito privado. A Guamá buscou um acordo financeiro com a Ciclus, que não teria sido aceito. O comunicado finaliza afirmando que a Guamá continuará cumprindo a decisão judicial, apesar dos prejuízos acumulados ao longo das operações.

Ruas de Belém estão com lixo acumulado

Moradores da Avenida Visconde de Inhaúma, no bairro da Pedreira, penduram sacolas de lixo para evitar a ação de cães e gatos. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude

As denúncias

Em outubro de 2023, o advogado Cláudio Bordalo, com um grupo de outros quatro advogados, pediram a abertura de um inquérito na Delegacia de Meio Ambiente do Pará, para apurar a situação do descarte irregular de lixo em Belém. Bordalo ressalta a necessidade não apenas de remover o entulho, mas também de tomar medidas de repressão contra os responsáveis por esse crime ambiental.

O inquérito não foi aberto. Como providência, porém, a prefeitura disponibilizou contatos para denúncias, o que, para o advogado, era insuficiente, já que o contato só funcionava em horário comercial, e a maioria dos descartes são feitos pela noite. “Lembro de ter constatado um caso desse por volta das 19 ou 20h nas Malvinas, uma área que fica atrás do Clube Casota. Eu ia para uma reunião da eleição da associação de moradores, e vinha na minha frente ‘um boi sem rabo’ entupido de lixo. Ele deu uma dobra e foi para o canal São Joaquim, que é um dos locais que recebe lixo”, recorda.

Bordalo levantou suspeitas de motivações políticas por trás do descarte ilegal de lixo: “Considero que a situação piora cada vez que chega mais perto da eleição. […] No meu entendimento, existem dois tipos de pessoas que estão jogando lixo na rua: aqueles que naturalmente utilizam essa atividade como meio de sobrevivência; e aí é desconfiança mesmo, pessoas com interesse eleitoral, de desgastar a administração pública municipal.”

Para o cientista político André Buna, a suspensão do contrato com a Guamá Tratamento de Resíduos reflete uma falha na gestão do governo Edmilson Rodrigues, deixando uma marca de trabalho negativa. Por Belém não possuir uma instalação apropriada para esse tratamento e depender dos municípios vizinhos, o resultado é um atraso nos processos, a população insatisfeita e o crescimento da rejeição do atual prefeito. Esses problemas poderiam ser explorados por opositores políticos para criar narrativas de crítica à administração municipal.

Entretanto, o surgimento de um novo ator político, aliado do governador Helder Barbalho, que aparece como pré-candidato à prefeitura pelo MDB, trouxe muitas dúvidas sobre o rumo dessa história e o tempo que os belenenses vão precisar conviver com amontoados de lixo na rua. Igor Normando “entra no jogo” com um número expressivo de intenção de votos — aproximadamente 7% — de acordo com a pesquisa de março da Paraná Pesquisas. “É um número muito bom, dado que é um nome que tem uma história, vem como vereador há muito tempo, tem um nome consolidado, em certa medida, no imaginário do eleitor. Ele já foi pré-candidato ou sugerido como possível candidato à prefeitura em outras oportunidades”, explica Buna.

Para entender a crise do lixo

Entre 2015 e 2016, Belém enfrentou uma transição crucial na gestão de resíduos, com o fechamento do Lixão do Aurá e a abertura da Central de Processamento e Tratamento de Resíduos de Marituba (CPTR). Protestos em 2016 destacaram preocupações com o aterro de Marituba, como mau cheiro e possíveis danos ambientais. Os problemas de saúde da população da região se agravaram, com o passar dos anos. E em 2023, depois de diversas negociações para o fechamento do local, a Justiça exigiu avaliação e assistência médica aos afetados.

A expectativa era que o aterro de Marituba tivesse suas atividades encerradas ainda em 2023, mas após a finalização do processo licitatório para a gestão de resíduos sólidos, com a divulgação do consórcio vencedor, o fechamento foi adiado para fevereiro de 2025. O consórcio vencedor, a Natureza Viva — que é gerida, entre outras empresas, pela Terraplena Ltda —, ficou encarregado de realizar a coleta domiciliar e implantar um novo aterro sanitário.

Sobre a situação da coleta de lixo, em fevereiro deste ano, a prefeitura e a Ciclus Amazônia assinaram um contrato para estabelecer um novo sistema de coleta e tratamento de resíduos sólidos. Isso inclui uma expansão dos serviços de coleta, a criação de uma estação de transferência de resíduos, a geração de empregos, a construção de um novo centro de tratamento, além do encerramento e recuperação do antigo aterro do Aurá.

Produção: Raisa de Araujo
Edição: Alice Palmeira
Revisão: Isabella Galante
Infográfico e montagem do site: Fabrício Vinhas
Direção: Marcos Colón

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