Cortejo Visagento une halloween às visagens e assombrações da Amazônia
Cortejo celebra o Dia da Matinta Pereira e leva personagens encantados e narrativas de resistência ao bairro mais populoso da capital paraense
Fantasia de Matinta Pereira, a principal bruxa da mitopoética Amazônica. Foto: Glauce Monteiro / Amazônia Latitude
Na mesma data em que, nos Estados Unidos, se celebra o Halloween com fantasias e crianças saindo às ruas em busca de “doces ou travessuras”, em Belém do Pará é celebrado o Dia da Matinta Pereira, a principal bruxa da mitopoética Amazônica. Então porque não unir os dois?
É isso que o Cortejo Visagento faz há seis anos nas ruas do bairro do Guamá, periferia da capital paraense. Mas o evento faz bem mais do que unir duas datas. Ele propaga a leitura como uma das principais formas de resistência em prol da cultura amazônica.
No Pará, a palavra visagens é usada para se referir às assombrações, espíritos ou fantasmas. Evoca a ideia de “além”, do metafísico e de algo impalpável e fantasioso que pode co-existir com a realidade. Na Amazônia histórias de botos e matintas, de visagens e assombrações fazem parte da infância e da vida adulta de seus habitantes. Não à toa, “Visagens e Assombrações de Belém” é a mais famosa obra do escritor Walcyr Monteiro.
Esse é o mundo que invadiu as ruas de Belém na noite do último dia 31 de outubro. Foram 1,5 km de percurso pelas ruas do bairro mais populoso da capital paraense com 100 mil habitantes.
Pelo menos três mil pessoas participaram do cortejo. Entre elas, estava a Suzane Campos, que fez questão de levar a Sarah, o Lauro e a Iara fantasiados de Wandinha Adams, Homem de Ferro e abacaxi, respectivamente, para ter uma experiência única. “É uma forma de expressão da cultura e da arte da cidade e do bairro. Precisamos valorizar e apresentar isso para as crianças”.
Violências, leitura e visagens no Guamá
O Cortejo Visagento 2024 deveria começar com uma concentração dentro do Cemitério Santa Izabel, um dos mais antigos de Belém, lar de santos populares e de uma das principais lendas urbanas da cidade: a Moça do Táxi. Mas na hora marcada, o espaço estava fechado.
Os agentes de trânsito que deveriam ajudar a organizar a multidão durante o cortejo também não apareceram. Mesmo assim, pouco após as seis e meia da tarde, fantasmas, múmias, pássaros, matintas e cobras-grande tomaram as ruas.
Ruas que no dia a dia enfrentam a falta de saneamento e parecem ter sido esquecidas pelo poder público, de repente ficaram coloridas, cheias e diversas. Chifres se destacavam na multidão que incluía bruxas e super-heróis, visagens e bois-bumbá, personagens de pássaros juninos e zumbis.
A cada curva, mais personagens – La Muerte e seringueiros – se somavam ao cortejo que teve parada na sede de projetos e iniciativas que lutam para manter viva a cultura regional num lugar famoso pela violência. Os pontos de parada incluem Boi-bumbá, cordões de boi e a casa de cultura até chegar na Praça Bendito Monteiro, a do bairro.
A cada passo, música regional – do carimbó às marcantes do Baile da Saudade – e breves relatos e falas de defensores da cultura popular. Convites para conhecer e participar de cada iniciativa que luta para sobreviver e mudar sua realidade. Tudo organizado pelo Espaço Cultural Nossa Biblioteca, uma das mais antigas bibliotecas públicas do país.
“Quando tanta cultura passeia pelo por um lugar conhecido como ‘violento’ isso é algo cheio de mensagens. Os seres humanos não nascem violentos. São as questões sociais que criam situações de violência e, por isso, precisamos mudá-las. Colocar o cemitério aqui foi uma ação violenta, colocar o lar de leprosos no Guamá foi uma violência, trazer para cá o hospital de doenças infectocontagiosas foi uma violência. Trazer para cá o que não se queria no resto da cidade foi violento”, defende Raimundo José Rodrigues de Oliveira, diretor do “Nossa Biblioteca”.
Já lutamos por asfalto, por reconhecimento das nossas propriedades, por água. Agora lutamos pela mente da nossa gente, que lê, que ressignifica, que pensa”.
O projeto existe há mais de 45 anos e recebe dezenas de pessoas durante a semana. Além de ofertar mais 12 mil títulos para a comunidade, o espaço sedia rodas de conversas, reuniões técnicas e de grupos. Foi a partir de um destes eventos que surgiu a ideia do Cortejo Visagento.
“Nas nossas ‘ruas de leitura’ notamos que eles [as crianças] tinham curiosidade, mas não sabiam o que era Halloween, mas sabiam o que era assombração e Matinta Pereira. E pensando que é importante divulgar e respeitar a cultura do nosso povo e dos nossos ancestrais, decidimos ressignificar essa data”, explica Raimundo Oliveira.
Ele reforça que a festa defende o pensamento ecológico enraizado no imaginário e na identidade amazônica. “Nossas narrativas são sempre ligadas à água, à floresta, à terra. Neste momento em que a COP 30 se aproxima é ainda mais importante mostrar esse elo”, aponta.
Metamorfose é parte da existência na Amazônia
O “mágico” é parte da cultura amazônica. Para o antropólogo e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), Romero Ximenes, “ser amazônico” está ligado à ideia de metamorfoses constantes.
“Essa cultura parte do pressuposto de que homens, animais e plantas possuem uma mesma natureza. É como se o mundo fosse um baile à fantasia. Neste momento, posso estar fantasiado de homem, esta planta está fantasiada de açaí e aquele ser correndo na beira do rio está vestido de capivara. Mas, como uma roupa, é possível mudar e se transformar em outra coisa. É possível, assim, se metamorfosear”.
Essa perspectiva faz com que homens, plantas e animais tenham, na Amazônia, uma relação diferenciada. Aqui botos têm filhos com humanas e índias viram plantas aquáticas ou palmeiras. “Isso porque a lógica que fundamenta a cultura ocidental é diferente da perspectiva cultural das populações tradicionais, caboclas e indígenas da Amazônia. Se no Ocidente o homem é diferente dos animais e superior a eles, na cultural regional todos os seres vivos estão interligados e possuem a mesma essência”, conta Romero Ximenes.
O antropólogo explica ainda que nos mitos da Amazônia co-existem a dimensão mágica e real dos seres. “Conta-se a história do boto e se mostra o animal, o que prova sua existência e, de certa perspectiva, torna sua existência e atributos mágicos irrefutáveis”.
Texto e fotografias: Glauce Monteiro e Wenderson MacDovel
Montagem de página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón