Quadrinhos Sateré: primeira coletânea de HQ feita por jovens indígenas busca apoio para publicação
Crianças e adolescentes de comunidade indígena urbana da etnia Sateré-Mawé, em Manaus, dão continuidade às histórias e tradições de seu povo através dos quadrinhos


Crianças e adolescentes indígenas de Manaus aprenderam a criar Histórias em Quadrinhos em oficina. Foto: Divulgação.
Moiara é uma menina indígena de cabelos cacheados que tem o dom de se transformar em cobra. Ao realizar a metamorfose (que no caso é um poder, não uma maldição kafkiana), ela caça, pesca e consegue mantimentos para sua aldeia.
Esse é o enredo de uma das oito narrativas que compõem a primeira coletânea de histórias em quadrinhos (HQs) feita por crianças e adolescentes indígenas da etnia Sateré-Mawé, em Manaus, Amazonas.
A autora dessa história é Mayara Sateré, de 15 anos, que se inspirou no protagonismo que culturalmente as mulheres exercem em sua etni para falar, empolgada, sobre a experiência de se tornar autora.
Eu falo sobre empoderamento feminino, inspirada no nosso povo. Normalmente, quem manda e lidera são as mulheres, elas têm força”.
Apesar de nunca ter escrito, Mayara sempre escutou as histórias de seus avós e de seus anciões, que repassam para os mais novos os ensinamentos que fazem parte da ampla miríade da cosmologia dos Sateré.
Histórias conhecidas do imaginário indígena da Amazônia nascem e se perpetuam nas crenças dessa etnia, como a origem do Guaraná (planta domesticada pelos Sateré, que hoje conquistou o mercado mundial e, na concepção deles, cujo fruto se assemelha aos olhos de uma criança originária que foram plantados); e como o Porantim (espécie de bastão mágico com inscrições de figuras geométricas, catalisador da cosmologia Sateré): entre outras.
Entre o ancestral e o contemporâneo
A linha tênue entre o ancestral e o contemporâneo marca a vivência da comunidade urbana Waikiru, formada por indígenas Sateré-Mawé que migraram do município de Maués, distante 258 queilômetros de Manaus, para a capital amazonense na década de 1980.
Quarenta anos depois, a quarta geração de crianças e adolescentes da comunidade, que conta com cerca de 150 habitantes, situada no bairro Redenção, zona centro-oeste da cidade, dá continuidade às tradições da etnia, dessa vez em uma nova plataforma: as histórias em quadrinhos.
O idealizador do projeto Quadrinhos Sateré é o professor de roteiro Evaldo Vasconcelos. Ele conta que a iniciativa surgiu como uma contrapartida de um outro projeto seu, a publicação infantil “Maramunhã”, quadrinho que retrata a cultura da etnia dos Manaós, grupo que habitava a região do Rio Negro antes da colonização europeia assolar o território.
A proposta da publicação é abordar a cultura de um povo diferente a cada livro. Ao começar sua pesquisa para o trabalho seguinte, Evaldo buscou professores indígenas da Secretaria Municipal de Educação de Manaus (Semed), foi quando conheceu a professora Leliane Sateré, que dá aula para as crianças da comunidade Waikiru.
A troca era simples: ele aprenderia sobre a cosmologia dos Sateré e devolveria com aulas de roteiro para quadrinhos. Assim, nasceu o primeiro curso de roteiro exclusivamente para jovens indígenas, com 16 alunos com idades entre 6 e 16 anos.

Crianças e adolescentes viram HQs produzidas por não-indígenas durante oficinas na comunidade. Foto: Divulgação.
Durante dois meses, entre outubro e novembro de 2023, com apoio da professora Leliane, sem expectativa de publicação, Evaldo ensinou sobre o universo dos quadrinhos, enquanto aprendia sobre o universo dos Sateré. Ao fim do curso, o resultado foi melhor do que o esperado.
A prova final era eles escreverem um roteiro, criar uma história para eu avaliar. O nível foi tão bom, que eu falei ‘não pode ficar só nisso, a gente tem que tentar publicar esse material’. Porque eles iam só fazer a história e guardar para eles”.
Um dos motivos que instigaram o professor Evaldo Vasconcelos a tentar a publicação e a correr atrás de editoras, foi o fato de que não havia no mercado dos quadrinhos pessoas indígenas escrevendo sobre suas próprias histórias.
Conversamos sobre a cultura deles e como são representados. Comprei alguns quadrinhos sobre cultura indígena, escritos por não-indígenas, para eles verem como as pessoas têm interesse em conhecer a cultura deles, mas faltavam indígenas preparados para escrever para quadrinhos”.
Protagonistas da própria história
Estima-se que viviam em Abya Yala entre 57 e 90 milhões de pessoas. Mas os habitantes originários do local atualmente conhecido como continente americano enfrentaram, além do extermínio pela invasão espanhola e portuguesa, iniciada no século XVI, também o epistemicídio e apagamento de culturas, universos, modos de ser e estar no mundo.
Mas, para além do sofrimento, essa história também foi e é marcada por resistência e luta. Nos últimos tempos, cada vez mais os povos originários ocupam lugares que, antes, lhes eram negados. Não se pode falar em povos indígenas, sem os indígenas.
Na esteira dessas transformações, a proposta dos Quadrinhos Sateré desponta como uma iniciativa assentada na revolução pelo lúdico, para quebrar um ciclo de silenciamento das plurais culturas originárias, em que jovens indígenas da periferia de Manaus assumem o protagonismo das suas narrativas.
Para a professora Leliane Sateré, que é filha de Nândia Sateré, fundadora da comunidade Waikiru nos anos 80, o projeto quebra paradigmas.
Há muito tempo, nos livros de História, as nossas histórias sempre são relatadas pelos não-indígenas. Quando a gente consegue trazer para a comunidade um projeto que tem o potencial de atrair os adolescentes e as crianças, que são rodeados por diversas culturas, um projeto que fomenta a cultura indígena com a cultura não-indígena e consegue fazer essa socialização, a gente acredita que estamos fazendo o nosso papel enquanto professor, de lutar nessas questões de repasse de saberes em contexto urbano”.
Ainda segundo a educadora, o projeto mostra que eles estão indo pelo caminho correto, usando as ferramentas para que os jovens possam se empoderar da própria cultura e conhecer a importância da identidade cultural deles.

Parceria com Leliane Sateré, que é filha de Nândia Sateré, fundadora da comunidade Waikiru, levou quadrinista Evaldo Vasconcelos a realizar oficinas para crianças e adolescentes indígenas. Foto: Divulgação.
Choque e concluência de universos
No fim das contas, quem ganha é o futuro, que é ancestralizado cada vez que um indígena assume seu protagonismo histórico e produz fontes fidedignas sobre si e deixa sua cultura marcada para a eternidade.
Mayara Sateré comenta sobre seu incômodo com os discursos da colonização em relação ao seu povo, alvo de estigmas e da reprodução de estereótipos.
Pessoas brancas que não sabem da nossa história põem coisas que não tem nada a ver. A gente lê coisas absurdas que eles falam, que não tem nada a ver com nosso cotidiano, com a nossa história ou passado. A partir do momento que a gente tem um lugar onde a gente pode se expressar, é muito bom. Quando descobri que eu podia falar sobre a minha história, a história da minha vó, da minha mãe, eu fiquei maravilhada”.
A tradição oral indígena é marcada pela contação de histórias, da mesma forma que as histórias em quadrinhos também cumprem esse papel. Apesar da linguagem e da origem cultural serem diferentes, os Quadrinhos Sateré funcionaram como um ponto de confluências narrativas, como destaca a professora Leliane.
Nós, povos indígenas, migramos de nossas comunidades por vários motivos e nos deparamos com várias culturas. A gente retém esse choque cultural. No entanto, o que prevalece para nós é a nossa cultura. Então, um dos nossos legados é repassar esses saberes para essa nova geração. O projeto vem de encontro com tudo isso que a gente almeja fazer. Conseguimos conciliar a nossa oralidade a partir do HQ, que tem muito a ver com o que a gente preza em relação à nossa cultura”.
Apoio para publicação
O professor Evaldo Vasconcelos buscou apoio de editoras para publicar os Quadrinhos Sateré e, apesar do interesse de algumas, as empresas temeram lançar um projeto com autores desconhecidos.
Para viabilizar a iniciativa, foi lançada uma campanha na plataforma Catarse. A meta do projeto é arrecadar R$ 31.500, para pagar todos os profissionais envolvidos, imprimir a publicação e arcar com os custos da divulgação, mas o valor ainda não foi alcançado.
Uma versão mais simples dos quadrinhos será apresentada na 7ª edição da Semana do Quadrinho Nacional, um projeto idealizado também por Evaldo Vasconcelos, a ser realizado nos dias 4, 5 e 6 de abril deste ano.
Reportagem: João Felipe Serrão
Revisão e edição: Glauce Monteiro
Montagem da Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón