Amazônia também é periferia: os atos de criação da artista Sarah Campelo nas quebradas de Manaus
Desde 2021, a artista visual, ativista e curadora Sarah Campelo transforma as periferias de Manaus em ateliês artísticos, com oficinas de arte e meio ambiente destinadas às crianças e adolescentes


As intervenções do Arte Ocupa acontecem na comunidade Mossoró, no Bairro Petrópolis, Zona Sul de Manaus. Foto: Sarah Campelo / Acervo pessoal.
A acelerada e desorganizada urbanização da Amazônia trouxe consigo uma série de desigualdades. Manaus não fugiu do roteiro comum do processo de acumulação do capital (econômico e humano). Atraídas por oportunidades, muitas pessoas do interior do Amazonas e de outros estados do Brasil migraram para as terras manauaras em busca de uma vida melhor, fluxo que se intensificou com a criação da Zona Franca do município, na década de 1960.
Quem chegava era empurrado para as margens da cidade. A elite política e financeira não queria dividir espaço com o povo e fez questão de colocá-lo bem longe, jogando essa gente para áreas de risco, morros e terrenos onde quase não se sabe o que são direitos. Locais em que a principal ferramenta de atuação do Estado é seu braço armado: a polícia.
Manaus, a cidade que matou quase todos seus igarapés, vendeu sonhos e, logo em seguida, condenou à marginalização, pobreza, miséria e violência quem comprou a ilusão. Segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), juntamente com Belém, a capital do Amazonas tem a maior proporção da população vivendo em favelas, fatia composta por 56% de seus mais de 2 milhões de habitantes.
Apesar dos números, as periferias da Amazônia amargam um completo estágio de invisibilidade e, entre os muitos fatores que contribuem para isso, estão os estigmas associados à Região, vendida como um lugar ocupado apenas por floresta e indígenas.
É em uma dessas favelas que mora e atua Sarah Campelo, 24. Ela é formada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), além de curadora, arte-educadora, ativista e co-fundadora do Coletivo Arte Ocupa. Desde 2021, o Projeto transforma a comunidade Mossoró, no Bairro Petrópolis, Zona Sul de Manaus, em um verdadeiro ateliê a céu aberto, levando oficinas de arte e meio ambiente para crianças e adolescentes, atuando também em outras comunidades.

A ativista Sarah Campelo, formada em Artes Visuais, transforma as periferias de Manaus em ateliês artísticos / Foto: Sarah Campelo / Acervo pessoal.
É ocupando a periferia com arte que Sarah faz sua revolução, evocando os valores da coletividade e da justiça climática, pintando portais de possibilidades e colorindo o cinza que atravessa a realidade urbana.
Essa não é uma entrevista sobre morte e violência. Pelo contrário, é uma conversa sobre como as periferias da Amazônia são laboratórios de futuros e berços de potências capazes de sustentar o céu para as próximas gerações.
Amazônia Latitude: Vamos começar falando da tua trajetória e os primeiros contatos com as artes.
Sarah Campelo: Eu nasci e fui criada aqui em Manaus. Já morei algumas vezes fora, mas aqui no Amazonas mesmo. Morei duas vezes no Médio Juruá. Minha mãe é de uma comunidade seringueira chamada Gaviãozinho, localizada no Rio Juruá. Ela e minha família inteira vieram para Manaus na década de 80 e se instalaram aqui. Eu moro nesse bairro desde que eu nasci. Moro na última rua de Petrópolis, exatamente onde se localiza a comunidade Mossoró, que é onde acontece boa parte dos projetos do Arte Ocupa.
O meu encontro com a arte é interessante. Eu sempre fui fascinada por arte, como toda criança. A gente vai crescendo e, como quase todo adulto, a gente vai se perdendo, vai se distanciando desse processo de expressão, de sensibilidade. Eu sempre fui fascinada pela parte teórica da arte. Eu não produzia, não tinha prática, mas estudava muito. Em 2019, eu entro na faculdade de Artes na Ufam e é o meu grande boom no mundo da arte, começo a amadurecer meus estudos por conta das disciplinas e também começo a praticar a arte.
Tu já pintavas?
Nada, foi horrível viu entrar na faculdade sem fazer nada. Foi completamente novo pra mim. Eu tinha amigos que já tinham participado de exposições de arte e eu nunca tinha feito nada.
Foi realmente se aventurar, né?
Fui me aventurar. Eu gostava da parte teórica e tem artistas que são cientistas. Eu achei que iria para essa parte, mas acabou que eu estou me formando e eu nunca nem escrevi um artigo na minha vida. A gente entra na faculdade com uma cabeça e acontecem essas mudanças. Eu gosto muito de escrever, mas não é bem o forte do meu trabalho.
As tuas abordagens em relação às questões de meio ambiente e mudanças climáticas também vieram com a faculdade?
Foi antes. Eu tenho muito a lembrança de que eu comecei a me tornar mais consciente e me politizar ali pelos meus 14 anos e meus professores tiveram muita importância. Eu tinha um professor de História que era muito politizado e muito bem posicionado politicamente. Eu lembro que isso me instigou muito, porque isso não é uma coisa presente na minha família. Não venho de uma família de militantes ou artistas, não tenho esse exemplo familiar. Com 14 anos já fui me interessando pelas causas. Em 2017, eu entro no Greenpeace, que é onde estou até hoje. No ano seguinte, eu já entro no Engajamundo. Eu sou coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) Terra do Greenpeace daqui de Manaus e sou coordenadora geral do Engajamundo aqui de Manaus também. E daí veio o meu interesse, já fui ouvindo os termos ˜ativismo˜, achava muito estranho esse termo, mas foi quando eu fui me familiarizando com essas questões e, principalmente, mudanças climáticas, era o que a gente mais discutia desde então. Mas eu fui amadurecendo esse meu olhar, meu posicionamento, meus discursos. Deixei de acreditar em muitas coisas e comecei a acreditar em muitas outras também.

Intervenção digital de Sarah Campelo / Fotografia: Bruno Barbey.
Como é que a gente explica para as pessoas que a Amazônia não é exatamente um sonho idílico florestal e que, na verdade, tem muito concreto e asfalto marcando nossa realidade?
É muito difícil falar de periferia na Amazônia, não exatamente entre a gente, mas quando a gente fala pra fora. É um discurso que não vende, então as pessoas não querem saber das periferias da Amazônia. Elas não querem saber os espaços de imagem periféricos e urbanos daqui, porque o que vende é essa imagem da Amazônia, do rio, da árvore, do boto. É o mato que vende, aquele ideal que as pessoas têm na mente. Às vezes, a gente posta alguma foto no Mossoró, as pessoas perguntam se é no Rio de Janeiro.
Sempre bato na tecla da gente discutir os nossos contextos urbanos daqui. A Amazônia também é cinza, é asfalto, é lixo. Ela é tanta coisa, que não dá pra gente ficar romantizando a Amazônia no meio do caminho. Temos que falar das diversas realidades que existem aqui, sendo elas definidas como bonitas ou não. Quando a gente fala de periferia e desses territórios de margem, a gente está falando de pessoas de margem, que, nos últimos anos, vem enfrentando acontecimentos climáticos extremos, o que faz refletir sobre esse contraste, porque são exatamente essas pessoas que menos têm poder de fala e que menos contribuem para esses eventos acontecerem na Terra.
E que são as mais afetadas.
SC: Isso, constantemente as casas são alagadas e perdem móveis. Pior ainda é o desgaste mental que tudo isso causa. Minha casa alagou no dia dois de dezembro de 2023. Fez parte da minha vida acordar de madrugada e ver a casa sendo alagada. É um desgaste emocional e que acontece pior ainda com tantas outras pessoas, porque eu ainda moro a três casas do igarapé. Tem gente que mora no rip-rap, que a casa é de madeira. Tem casas que desabam, tem casas que derrapam. E isso tudo porque mais de 90% dos nossos igarapés estão poluídos.
Inclusive, o maior discurso sobre poluição de igarapés que tem na cidade é de que são essas populações que vivem à margem que poluem, mas também a gente sabe que a poluição começou a ser forte com a criação da Zona Franca de Manaus, na década de sessenta. Os grandes empresários são os responsáveis pelos descartes incorretos desse lixo, fora que não existem políticas públicas eficazes de descarte.
Se quisessem resolver o problema de verdade, existiriam programas efetivos, contínuos, dentro das comunidades para não incentivar as pessoas a jogar o lixo dentro do Igarapé, porque realmente isso existe, as pessoas jogam constantemente geladeira, fogão, cama. Mas, por exemplo, aqui na comunidade a gente não tem uma lixeira. O que existe são lixeiras viciadas.

Vista aérea da comunidade Mossoró, em Manaus. As cobras serpenteiam no concreto da ponte erguida sobre um igarapé morto./ Fotografia: Samara Souza.
Como tu percebe a recepção dos teus vizinhos sobre o tema das mudanças climáticas?
SC: O tema das mudanças climáticas e muito das discussões voltadas a ele ainda são muito tecnicistas e não chega em muitos lugares. As pessoas sabem o que são mudanças climáticas porque elas estão vivendo isso. Quando a gente liga a TV e acontece algum desabamento de casa, algum alagamento, o morador fala muito bem o que está acontecendo. Ele só não usa o mesmo termo que outras pessoas usam, mas são pessoas que estão vivendo dia a dia, então elas sabem o que é. Sobre conscientização, a galera está pecando forte. Não vejo que está fluindo. A gente constroi muitos diálogos aqui. Mas as pessoas também têm muita dificuldade de entender a realidade da galera da periferia.
Voltando à questão do lixo, que é uma discussão bem forte aqui, a gente não tem uma lixeira. Pra existir um discurso de não jogar lixo no igarapé, se a gente chegar e falar: “Vamos reunir todo mundo, está proibido de jogar lixo no igarapé”. Tá, não vamos jogar no Igarapé, mas vamos jogar o lixo onde?
A gente está falando de uma galera que, geralmente, tem uma diária de nove horas de trabalho, pega a rota, pega ônibus lotado, chega em casa extremamente estressado, extremamente cansado e, muitas das vezes, não tem nenhuma segurança alimentar. Será mesmo que essa pessoa vai estar preocupada em andar não sei quantos quilômetros para achar uma lixeira e jogar o lixo dela de forma adequada? Separar o papel do plástico, do alumínio. Eu acho que é muito fora da realidade ficar falando como se isso caísse como uma luva em todos os contextos.
Como o Arte Ocupa tem desempenhado esse papel de sensibilização?
Desde que o Arte Ocupa começou a atuar aqui na comunidade, a gente vê que a questão ambiental é um discurso que é muito mais sensível. Por mais que a gente não enxergue o resultado, a semente está plantada e a árvore demora para crescer mesmo. Acredito que tem uma sementinha que é plantada e que ela vai dar fruto de alguma forma. A gente também tem que se desprender, enquanto educador e artista, de dar exatamente o fruto que a gente quer. A gente planta e isso vai reverberar de alguma outra forma que está fora do nosso controle.
É extremamente importante construir esses atos dentro da periferia porque o Estado não está aqui, ele falha aqui. Fica naquele eterno nós por nós, se eles não atuam, a gente faz por onde. A gente vê que isso muda um pouquinho o discurso das crianças, sabe? Tem uma criança ou outra que fala “Ei, não joga a embalagem do picolé no chão”. Mas se a gente ficar só batendo nessa tecla de que não jogar o lixo no chão vai salvar o planeta, a gente sabe que não é assim.
Só de ter aqui atos políticos, da gente combater tudo isso com ternura, com amor, é muito maior. Porque se a gente quer que as pessoas se tornem mais sensíveis, que elas se libertem, o caminho disso é o amor. Às vezes, a gente liga muito a militância ao ódio, aí vem aquela frase do Paulo Freire que ele fala que no ódio do oprimido, a gente encontra um verdadeiro ato de amor. Esse amor, essa ternura, ela vai chegar em algum lugar que pode ser exatamente a sensibilização com causas climáticas.

Obra “A fome foi inventada pelos que comem”. Foto: Sarah Campelo / Acervo Pessoal.
Para quê que serve o artista hoje?
Eu acredito que o artista serve para combater os atos de destruição com atos de criação. A partir do momento que a gente pega esses atos de destruição e cria algo, que é o que o artista faz, ele cria, ele está construindo outras possibilidades de se enxergar na sua própria realidade. Em Manaus tem um contexto muito forte de arte urbana. Falar que a gente não tem artistas que estão dialogando sobre isso, que estão agindo politicamente a partir desse contexto urbano, seria uma falácia. Temos artistas aqui incríveis e que se posicionam politicamente de uma forma admirável, que estão à frente de muitas causas. Para mim, o artista tem o poder de discutir tudo com esse ato de criação, de diversas formas.
Por exemplo, eu vi esses dias o filme ‘Minha mãe é uma peça’. Se você perceber, o Paulo Gustavo, enquanto artista, discute homofobia da forma mais engraçada possível. A forma como ele constrói o roteiro da relação da mãe dele, construindo respeito, uma aceitação a ele, aquilo ali é um ato de criação. Quantas mães não assistem aquilo e, de uma forma muito singela, destrói tantos preconceitos? O artista serve para esse ato de criação. A gente pega atos de destruição e constrói atos de criação.
[No Amazonas] Temos muitos artistas admiráveis na cena contemporânea, sem precisar citar aqueles caras brancos e velhos que já estão ricos com arte, que, inclusive, não se posicionam politicamente e alimentam esse discurso de que a Amazônia é só árvore. Só fazem gente andando em canoa, não é nem uma realidade deles e só ficam vendendo isso, arara e canoa.Arara, canoa e garça.
Só isso.
Isso me lembrou algo. Eu vi o Dighetto, fotógrafo manauara, falando sobre como a periferia é um lugar de inovação, para além daquela estigmatização de violência e miséria. É um lugar de potência e criação. O Arte Ocupa mostra essas outras possibilidades de caminhos a se seguir para crianças que, muitas vezes, são jogadas para situações onde parece que não há escolha. Como a arte inspira a inovação nas periferias?
Quando é arte, parece aquela luzinha que entra pela brecha. Quando é arte, a gente consegue chegar em um lugar onde outras coisas não conseguem. No mês da Consciência Negra, a gente criou uma oficina de arte em que nós iríamos celebrar e homenagear pessoas pretas aqui da Amazônia. A gente fez uma oficina de colagem com as crianças e elas escolheram qual pessoa queriam homenagear. Construímos outras formas de se olhar. Elas olharam para corpos semelhantes ao delas, o Mossoró é ocupado majoritariamente por pessoas não-brancas. Já tem tanta gente falando de coisa ruim, que é importante celebrar.
Se a gente pensa o que a mídia dita sobre um território periférico, é violência, miséria, fome, morte, assassinato.
A partir desses movimentos de arte, a gente pode ver que a periferia vai muito além. Ela é um espaço de fé, de sonhos, de possibilidades, de afetos. Quem sabe disso é quem tá no dia a dia. Se a periferia for protagonista da sua própria narrativa, a gente vai, a partir disso, ver outras formas de enxergar o que é a periferia, porque se um jornal sensacionalista ficar sempre pontuando o que é a periferia, vamos ficar presos nesse discurso de miséria e fome.
O ser humano não cria só porque ele quer ou porque ele gosta, o ser humano cria porque precisa. Nós, enquanto seres sociais, a gente cria porque a gente precisa. Arte e cultura não podem ser vistas como algo superficial ou como um benefício, um privilégio. Arte não é privilégio. O Gilberto Gil, uma vez disse que arte é igual feijão com arroz, tem que estar no prato do brasileiro.

Sarah acredita que a arte é uma ferramenta de transformação social e que pode fomentar a criticidade das crianças. Foto: Acervo Pessoal / Sarah Campelo.
Ela é ordinária, não extraordinária.
Eu não sonho que nenhuma criança daqui seja artista. Eu sonho que, a partir da arte, a gente consiga fomentar nessas crianças a criticidade delas, a sensibilidade delas e elas consigam se enxergar, se admirar. É a partir da arte, a partir desses diálogos, que elas vão conseguir enxergar que elas estão no olho do furacão.
É uma ferramenta de politização, né?
O Gabriel é meu vizinho, ele tem 13 anos, e é em quem eu mais enxergo o crescimento dele. Se você ver como ele discute racismo, pobreza, desigualdade social, é incrível. E foram coisas que ele foi aprendendo e potencializando com os movimentos do Arte Ocupa, conhecendo as pessoas. O Dighetto é uma grande referência pra ele. É o ídolo dele. Eu consigo enxergar muita potência nas crianças daqui e, muito para além delas se tornarem artistas, é nesse sentido de exercitar a sensibilidade delas, a criticidade, a autoestima. É mais por isso mesmo.
Como a energia desse mundo em colapso entra no teu trabalho? Queria entender mais esse processo de captação dos rumos do mundo pela tua subjetividade e como ela pincela teu fazer artístico.
Enquanto artista e educadora, penso muito no legado que a gente vem deixando para as crianças. Não só pensando nas crianças com o amanhã, elas estão vivas hoje, elas já vivem esses destroços todos hoje.
Todos nós somos responsáveis pelas crianças que existem no mundo, elas sendo nossos filhos ou não, nós somos responsáveis por elas, pela existência delas. Não vou muito nesse discurso do fim do mundo. A gente está vivo, caminhando, criando, construindo e circularizando o nosso conhecimento. Se ficar alimentando esse discurso de fim do mundo, não vamos fazer nada. A gente só vai ter medo. E o medo é um discurso político, porque é exatamente o que querem que a gente tenha. Se a gente tiver medo, a gente não vai pra rua, não cria, fica parado. Eu acho que é exatamente o que eles querem, que a gente tenha medo. A gente pode ter medo, mas não pode deixar que ele nos paralise.
Nos meus trabalhos, eu sempre gosto de pontuar questões políticas mais maduras em relação às mudanças climáticas. Eu não curto ficar presa nesse discurso de não jogar lixo no chão, tomar menos banho. Se a gente ficar batendo nessa tecla do ‘bio’, bio não sei o quê, é só um outro mundo que a gente vai ter que destruir. É um mundo destrutivo, mas as pessoas colocam o ‘bio’ na frente e parece que está indo para algum lugar, mas não está. Continua sendo em grande escala, continua sendo exploratório, continua alimentando trabalho análogo à escravidão.
Sobre a parte sensível dos meus trabalhos, eu tenho meus trabalhos de artivismo e tenho também meus trabalhos pessoais, em que eu gosto de falar sobre a minha família, sobre amor. Nos meus processos de pintura venho falando muito sobre a minha família. Mas quando pedem um trabalho de ativismo, sempre bato nessa tecla de falar da Amazônia e dos seus corpos, periferias urbanas, de falar da Amazônia enquanto igarapés poluídos, da segunda maior seca consecutiva, que a gente tá respirando fumaça, falo das realidades e da crueldade.
O discurso de proteção do meio ambiente foi mercantilizado. Virou mais um mercado, muito rentável, em uma dinâmica de apropriação estética, narrativa, discursiva da Amazônia por pessoas de fora, que reproduzem estigmas da região, porque vende. Como a gente pode se defender disso?
É uma pergunta que me gera mais perguntas do que respostas. Tudo bem também a gente não ter respostas definidas. Eu penso muito sobre isso, sabe? Estou desde 2017 nesse mundo ativista e nunca vi tanto esvaziamento de pauta. Nunca vi a Amazônia tão em pauta como hoje e, como você falou, a sustentabilidade virou um mercado.
Eu vejo muita gente que está nesse meio porque viu uma forma de entrar no mercado e não exatamente porque se importa. É um mercado que se construiu ao redor da Amazônia, dessa pauta de sustentabilidade. Tanto que, as pessoas estão tão despreocupadas com essa questão da Terra, que você pode ver que não é o mesmo mercado que existe para o Pantanal, Mata Atlântica. Se estivessem tão preocupados assim, os outros biomas estariam sendo pautados. É a Amazônia porque ela vende. Ela está sendo muito pautada e de forma rasa, com muitas pessoas se aproveitando e entrando na onda de qualquer jeito.
O que eu vejo para a gente combater esses tipos de falas rasas e que acabam gerando caminhos tortos, é a gente enaltecer os nossos, potencializar os nossos, referenciar os nossos. É a gente tomar como exemplo e como inspiração os nossos. Quando eu penso em política, quando eu penso em terra, quando eu penso em educação, eu quero ter como referência gente daqui. Quando criamos uma rede de apoio de pessoas verdadeiramente comprometidas com as pautas e questões daqui, é uma forma da gente coletivizar e circularizar o nosso conhecimento, assim a gente se potencializa.
Se a gente comprar dos nossos, referenciar os nossos, se inspirar nos nossos, a gente vai tomar o protagonismo da narrativa. A gente precisa exercitar mais esse viés de não se inspirar nos outros, não ficar potencializando tanta gente de fora e enxergar que a gente tem potência aqui.

As casas da comunidade Mossoró se transformam em telas para a intervenção dos artistas que colorem a favela. Foto: Rivotrist
É engraçado, nós aqui da Amazônia sempre tivemos como principal demanda a questão da visibilidade, e clamamos: “Olhem para o Norte!!”. Hoje em dia, eu estou mais em uma vibe de “Esqueçam o Norte, por favor. Olhem para lá”
“O Norte não existe!”.
Lutamos tanto para sermos vistos e, agora que estamos no centro do debate, vieram lentes muito equivocadas. Como tu bem falou, o caminho é a gente se fortalecer entre nós. Temos muitas referências, mas elas estão completamente apagadas, é um projeto político mesmo de apagamento, desmobilização de bases, para que não se deixe florescer nossa força, nossa autonomia, nossa soberania sobre o território.
Eu vi esses dias um documentário sobre a Cabanagem. Ela teve tantos herois, tantos revolucionários. Cadê as referências a eles? É uma galera que deu a vida pela libertação da Amazônia, e a gente não escuta um nome desses caras, a gente não vê eles nas praças, nos livros, nos filmes. Então, esse processo de retomada, de referenciar os nossos, é daí que parte. Parece ser utópico porque é um trabalho de formiguinha mesmo. É a gente lutando contra o sistema.
O trabalho que tu faz é uma arma para, justamente, combater esse apagamento e desmobilização. Em um sistema que fragmenta e individualiza a vida, a arte surge como essa grande fogueira que sentamos em volta para partilhar afetos, emoções, sentimentos e exercitar a coletividade.
Texto: João Felipe Serrão
Edição e Revisão: Juliana Carvalho
Montagem de Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón