Segura o céu, uma poesia cantada contemporânea amazônica para o mundo
Um projeto de quase 30 anos, o primeiro EP de Bruno Malheiro tem influência da MPB, Cantigas de Terreiro, Bumba-Meu-Boi, Ijexá e Marabaixo


Parte da capa do EP “Segura o céu”, de Bruno Malheiro. Arte: Lene Moraes.
Depois de quase três décadas de maturação, acaba de sair o primeiro álbum do geógrafo-músico Bruno Malheiro, “Segura o céu“. No LP, Bruno conseguiu reunir um grande time de músicos, com longa estrada no cenário musical paraense, como o mestre Márcio Jardim, Príamo Brandão e Tiago Amaral, o que já aponta para a qualidade da produção e dos arranjos criados. O título do álbum nos remete ao grande livro A queda do céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert (2010).
O álbum mostra, portanto, um diálogo com as temáticas ambientais e amazônicas buscando se aproximar das vozes da região. Com relação ao estilo, no álbum temos aquilo que chamo de MPB Amazônica, cuja raiz está não em Vinícius de Moraes, mas em Waldemar Henrique, marco zero dessa tradição poética cantada moderna ainda tão pouco estudada, mesmo nas universidades da amazônidas. Nessa outra MPB, os ritmos amazônicos das florestas, interiores e periferias, o Bumba-Meu-Boi, o Marabaixo e as Cantigas de Terreiro, dentre outros, dialogam com a musicalidade que marcou o rótulo de Música Popular Brasileira, com seu canto próximo da fala e sua preocupação poética com a letra.
No que diz respeito às letras das canções, o álbum tem uma característica que, de um certo modo, nos remete a um clássico da poesia cantada na MPB, que é “Sampa”, com suas mensagens cifradas, para falar não DA cidade, mas sim COM a cidade de São Paulo, interlocutora de um sujeito poético fascinado com a grande metrópole. No entanto, se Caetano Veloso fez uma declaração de amor a esse espaço moderno, Bruno lança mão de seu olhar de geógrafo-músico para conversar não com a grande selva de concreto, mas com as cidades e paisagens amazônicas que, como já percebera Mário de Andrade em sua visita a Belém, são diferenciadas em relação à sua pauliceia, não havendo uma divisão clara entre o urbano e natural.
Esse ciframento herdado da MPB traz uma resistência que, para além do sentido usual tão necessário quanto em voga em hoje em dia, se liga à própria interpretação dos sentidos das canções. Essa resistência interpretativa inscreve o álbum na tradição da MPB em que, como disseram Gilberto Gil e Caetano Veloso, “é música para pra pensar”. E, ainda segundo os baianos, “é tão bonito que ela pare”. Em tempos de hiper-aceleração digital, esse parar para ouvir e pensar, como quem busca ver-sentir paisagens é um exercício de reeducação estética necessário. Ouvir “Segura o céu“ nos tira da liquidez rala e rápida da hipermodernidade e nos faz mergulhar na lentidão das águas profundas amazônicas.
As letras desse álbum aprofundam a percepção dos lugares amazônicos, nos trazendo para territórios quilombolas, indígenas, de manifestações populares, mostrando suas festividades e suas lutas. Este último elemento, em tempos de COP 30, é o que diferencia a poética de Bruno Malheiro de muitos letristas paraenses quando falam da nossa terra. O apego ao lugar parece impedi-los de delimitar um distanciamento crítico em relação às contradições que o capital trouxe para a Amazônia.
Ter se distanciado de Belém e ido para a região de fronteira do sudeste do Pará, marcada por grandes conflitos e contradições, assim como por outras belezas, impulsionou em Bruno esse distanciamento que Giorgio Agamben diz ser necessário para se ser um intérprete contemporâneo. Por tudo isso, a audição deste álbum deve ser celebrada e se torna necessária.
Ficha técnica:
Arranjo e Direção Musical: Tiago Amaral
Percussão e bateria – Márcio Jardim
Violões (nylon e aço) e guitarra- William Jardim
Contrabaixo – Príamo Brandão
Piano – João Paulo Daibes
Vocalises – Virgínia Malheiro
Voz – Bruno Malheiro
Berimbau – Edimar Silva
Trombone – Manasses Malcher
Trompete – Geraon Levi
Sax Tenor – Gabriel Becker
Clarinete – Tiago Amaral
Clei Souza é Doutor em Estudos Literários e Professor de Literatura pela Universidade Federal do Pará, letrista, poeta, contista, crítico literário, e artista visual. Venceu diversos prêmios literários no Pará, entre eles os prêmios Inglês de Souza e Dalcídio Jurandir. É autor do livro de poemas Poema pássaro e outros versos migratórios (Fundação Cultural do Estado do Pará, 2016) e do livro de contos O suicidado e outras histórias (Mezanino Editorial, 2021).
Edição e Revisão: Juliana Carvalho
Montagem da Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón