Eliane Potiguara e a cadeira que o Brasil deve a si mesmo

Primeira mulher indígena a disputar uma vaga na ABL, Eliane Potiguara representa não só a literatura originária, mas a chance de o Brasil reconhecer as vozes que tentou silenciar

Eliane Potiguara, candidata a ser a primeira mulher indígena imortal da Academia Brasileira de Letras. Foto: Alicia Peres/Divulgação.
Eliane Potiguara, candidata a ser a primeira mulher indígena imortal da Academia Brasileira de Letras. Foto: Alicia Peres/Divulgação.
Eliane Potiguara, candidata a ser a primeira mulher indígena imortal da Academia Brasileira de Letras. Foto: Alicia Peres/Divulgação.

Eliane Potiguara, candidata a ser a primeira mulher indígena imortal da Academia Brasileira de Letras. Foto: Alicia Peres/Divulgação.

Há cadeiras que não são apenas assentos. São lugares de fala, ocupações de territórios roubados, são reparações por séculos ignoradas. Há nomes que não apenas ocupam espaços — eles reparam dívidas e ausências históricas.

O nome de Eliane Potiguara, ao se apresentar para a cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras (ABL), não configura-se apenas a menção de uma autora. Ele ressurge como um marco de lucidez nacional e de justiça decolonial. Um passo coletivo na direção de tudo o que o Estado Brasileiro de raiz ocidental escravocrata tenta, há séculos, silenciar.

Isso porque a história oficial brasileira sempre foi escrita com tinta de esquecimento e de segregação e gerou uma dívida com seus povos originários, que não se paga com títulos, mas que pode começar a ser reparada com gestos simbólicos. E nenhum gesto, neste momento, será mais forte que eleger a primeira mulher indígena da ABL. Não se trata de representatividade pela aparência, mas de ruptura histórica e de justiça literária e urgência política.

Eliane Potiguara é escritora, educadora, mãe, mulher indígena da etnia Potiguara, filha de uma ancestralidade expulsa à bala das próprias terras. Sua escrita não nasceu nos salões da elite — foi gerada na pele ferida da memória, que aos sete anos, escrevia cartas para a avó. Desde então, nunca mais parou de escrever o que o Brasil precisava ouvir.

Autora de obras como “Metade Cara, Metade Máscara”, Eliane não escreve para seguir os cânones da literatura clássica, mas para retomar e reerguer modos de sentir e de pensar discriminados, proibidos e rotulados como inferiores. A sua tessitura escrita traz diversos territórios insurgentes: abriga, denúncia, consola e provoca. Sua voz pioneira na literatura indígena no Brasil, evoca os povos originários que foram apagados das narrativas oficiais, dos cânones, das instituições — inclusive da própria Academia Brasileira de Letras.

A cadeira 33 não será ocupada por uma “representante”. Será ocupada por uma construtora de caminhos. A candidatura de Eliane é mais que um gesto de inclusão simbólica: é o próprio Brasil tentando se refazer de seus escombros coloniais. Por mais de um século, a ABL foi um bastião de vozes brancas, eurocentradas e masculinas. Não é possível falar em literatura brasileira sem reconhecer a Terra Pindorama que lhe serve de território — e as vozes que tentaram calar.

Eliane é fundadora do GRUMIN (Grupo Mulher-Educação Indígena), articuladora de redes internacionais, indicada ao Prêmio Nobel da Paz, Doutora Honoris Causa pela UFRJ. Mas sua maior credencial é a travessia que fez entre o silenciamento e a palavra. A sua luta, como a de tantas mulheres originárias, é feita à custa de invisibilidade, resistência incessante e força ancestral.

Ela chega onde o Brasil ainda hesita em entrar e leva consigo os nomes que nunca couberam nos livros didáticos: os mestres anciãos oprimidos, as mulheres abusadas, as crianças indígenas sacrificadas pelo racismo ambiental, os territórios violados. Cada página sua carrega o que a história oficial tentou sepultar: um Brasil indígena, feminino, insurgente, rico de culturas e cosmovisões espirituais e epistemológicas milenares.

A eleição de Eliane não é um favor, mas pode ser um início de uma reparação histórica cultural do Brasil ao se reconhecer Terra Indígena, lugar de mulheres guerreiras, que adentraram o século XXI para retomar o lugar de fala que lhe fora negado.

Por isso, este não é um mero voto literário. É um manifesto contracolonial, antirracista e antipatriarcal. Expressa um compromisso com os 305 povos indígenas desta Terra Pindorama chamada Brasil, que resistem para manter florestas de pé, que lutam em favor da manutenção das nascentes dos rios e entregam suas próprias vidas diariamente para honrar a Mãe Terra.

Por estas e muitas outras razões, dia 10 de julho, quando a ABL decidir seu futuro, que não decida com negação, mas com memória, coragem e justiça. Que eleja Eliane Potiguara, não só pela excelência de sua escrita, mas porque sua palavra é território sagrado, a sua narrativa é feita de raízes ancestrais profundas. A cadeira 33 da ABL aguarda a prestação de uma dívida de mais de séculos, que ela possa ser ocupada pela primeira mulher indigena, pioneira na palavra que corta e atravessa os paradigmas ocidentais e a sua presença é o que falta para que o Brasil possa começar a se escrever por inteiro.

Texto: Eva Potiguara
Revisão: Juliana Carvalho
Montagem da Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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