A cultura do interior da Amazônia quer subir no palco na COP30
Enquanto holofotes se voltam para Belém, festivais do interior lançam sua própria luz sobre a floresta que respira, dança e compõe mesmo quando não há palco


“Conhecer o interior é conhecer esses sujeitos que mantêm suas tradições ao mesmo tempo que estão conectados com o que acontece pelo mundo. A maioria dos artistas paraenses são do interior”. Foto: Marcos Colón / Amazônia Latitude.
Quando se fala em Amazônia na COP30, raramente se pensa em rock feito na garagem; em carimbó cantado por mestres que pescam e caçam; tampouco em festivais de cultura autoral acontecendo em cidades com artistas veteranos que atravessam a Amazônia por rotas quase impossíveis, porque acreditam que a arte pode costurar o território onde o Estado não chega.
Um exemplo é o 1º “Cultura em Movimento – Circuito de Festivais do Nordeste Paraense”, que vai percorrer os municípios de Capanema, Primavera, Capitão Poço e Santarém Novo, promovendo encontros entre carimbó, rap, rock, saberes tradicionais e juventude periférica.
Quatro cidades paraenses que, apesar da proximidade com a capital paraense, são inviabilizadas no contexto da Conferência das Partes. Mas nelas se compõem canções, se escrevem poemas e se produzem audiovisuais que expressam que a Amazônia não se resume aos grandes centros urbanos e às florestas inacessíveis.
Da garagem ao palco: quando o interior da Amazônia quer ser ouvido
A apenas algumas horas de Belém, em Capitão Poço, município do nordeste paraense já próximo ao oceano, um grupo de jovens precisou montar o próprio estúdio para gravar suas músicas. Eles usaram instrumentos gastos até conseguirem comprar novos. Ensaiaram em garagens e quartos, incomodando vizinhos e parentes. Sem muitos lugares para tocar, criaram o próprio festival. Lutaram para serem ouvidos em uma cidade onde predomina o forró, herança da forte imigração cearense.
A história é da banda de rock alternativo Los Pelicanos, mas poderia ser de qualquer outra que vive longe dos grandes centros e, ainda que sem palco e incentivo, mantém a obstinação por construir suas histórias.

Banda Los Pelicanos. Foto: Divulgação.
Yan Pereira, 27 anos, um dos integrantes do grupo, é descendente de cearenses e observa que há tantos com a mesma origem por Capitão Poço que é difícil ouvir ritmos genuinamente paraenses, como o carimbó e a guitarrada. No máximo, o tecnobrega.
Eles até compuseram músicas de carimbó e guitarrada, mas foi com o rock e o pop que conseguiram espaço. Ou melhor, um pouco de espaço: até hoje ainda são vistos como “a galera do rock”, “vestida de preto fazendo arruaça e barulho”, como pontua Yan. Para vencer essas barreiras, além de acrescentar os ritmos nortistas ao repertório (ainda que não muito conhecidos pelo público local), a banda faz covers de bandas nacionais e internacionais.
Mas como passar a própria mensagem? Yan conta que, dependendo do lugar, eles tocam suas músicas entre um cover e outro. Mas, se quisessem realizar um show inteiro autoral, seria quase impossível. Assim surgiu o Laranja Mecânica, festival idealizado por eles e outros artistas e produtores culturais. Aos poucos, conheceram as cenas das cidades vizinhas e angariaram vitórias como produções de videoclipes com animação e projetos vencedores na Lei Aldir Blanc em 2021, que renderam gravações ao vivo.
Agora, o evento chega à sua 11ª edição, desta vez dentro do 1º “Cultura em Movimento – Circuito de Festivais do Nordeste Paraense”.
Idealizado pelo Instituto Cultura em Movimento, do produtor cultural Geovane Máximo, o circuito terá quatro eventos: o 11º EcoRock, nos dias 10 a 12 de julho em Primavera. O Laranja Mecânica, de 4 a 6 de setembro, em Capitão Poço; o 7º Festival Ouricuri, de 4 a 6 de dezembro, em Capanema; e o 14º FestiRimbó, de 18 a 20 de dezembro, em Santarém Novo.
Acontecendo gratuitamente em espaços públicos, os festivais vão contar com atrações locais e também conhecidas em todo o Estado; como o mestre da guitarrada, Manoel Cordeiro, a cantora de música paraense, Layse, e a banda Na Cuíra, que toca estilos como guitarrada e xote.
Além dos shows, haverá rodas de conversa sobre produção cultural no interior da Amazônia, gerenciamento de carreira musical e de plataformas digitais.
“Nosso objetivo [enquanto artistas] é de expor nosso pensamento, misturar nossas influências e mostrar nossa música paraense. Muitas pessoas daqui estão desconectadas artisticamente do Pará, mas [todos] temos que conhecer nossa cultura. O artista desempenha o papel primordial de falar não apenas da própria vida, mas de uma comunidade inteira”, explica Yan Pereira.
O circuito que fez florescer o interior
A Los Pelicanos ilustra o que muitas iniciativas culturais do interior vivem: a distância da capital, a escassez de recursos e a falta de reconhecimento institucional — mesmo em um momento como a COP30.
“As pessoas daqui, de maneira geral, não têm o conhecimento aprofundado do que é a COP30 e do porquê ela vai acontecer. Elas não imaginam que ela afete a sua vida. A [Conferência] acaba ficando um pouco distante das camadas mais baixas da sociedade. Parece que não tem a ver com a nossa vida. No máximo tem uma empresa gigante de laranja, daqui, montando estrutura de luxo pra receber turistas, com heliponto e tudo”, conta Yan.
O intercâmbio e a integração entre públicos e artistas são o carro-chefe do Circuito de Festivais do Nordeste Paraense. Desde que uniu a programação dos eventos, que aconteceram por décadas de maneira independente e com produções autorais, o diretor-geral da iniciativa, Geovane Maximo, 31 anos, tem conseguido furar a bolha dentro da mídia da capital.
Ele, que nasceu em Capanema e é filho de camponeses de Primavera e do Estado do Ceará, é um plantador, mas de ideias. Formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém, Geovane sempre tomou gosto pelos livros e foi inquieto a respeito do silenciamento vivido por quem está fora dos grandes centros.
Com apenas 16 anos, o produtor já era engajado em associações que levavam arte aos espaços públicos. Também fez parte da cena roqueira da sua cidade e, enquanto universitário em Belém, foi um dos organizadores do Rock Rio Guamá, que teve mais de 10 edições dentro da UFPA e algumas em Capanema e Bragança. “Mantive minha relação com meu município produzindo cultura lá com o que aprendia na Universidade”, recorda.
Geovane pontua que sempre o incomodou a dificuldade em ouvir estilos como rock, MPB e carimbó sem precisar viajar até Belém, que está a horas de distância de sua terra natal. “Se rolasse um evento desses gêneros, era uma vez por ano e um ‘acontecimento’”, ressalta. Gêneros como o rap tinham ainda menos vez. Só que são justamente os artistas desses estilos os que mais produzem composições próprias.

Geovanne Máximo, produtor musical paraense. Foto: Acervo pessoal.
“Então além de shows, introduzi debates, rodas de conversa, oficinas de elaboração de projetos, saraus literários, capacitações em arte e cultura, e microfones abertos para rap nos nossos eventos”, enumera. Recentemente, o seu instituto integrou eventos como a I Mostra de Obras Audiovisuais, organizada pelo coletivo Cine Barão de Capanema.
Geovane foi conhecendo mais trabalhos em outras cidades pela região e, assim, soube da existência dos Los Pelicanos e do Laranja Mecânica.
Como produtor cultural, ele orientou diversos projetos inscritos nos editais que começaram a ser lançados a partir de 2017. Em 2021, com a Lei Aldir Blanc, 5 dos 10 submetidos captaram recursos. “Só que como é uma cena cultural inteira, todos são conectados, então por tabela todos acabam beneficiados”, explica, acrescentando que lidar com baixos orçamentos é de praxe para quem vive no interior.
“Essa visibilidade que eles vão tendo se torna uma referência para quem passa pela mesma dificuldade que a nossa. A gente vê que a lógica da produção cultural no interior avançou. Há muito mais recursos do que antes. Por isso digo que quem quiser colaborar, ao invés de competir, pode vir: tem terreno baldio o suficiente para virar jardim”, convida.
Antes, se um show era feito com caixa de som simples, hoje há um esforço de profissionalização. Mas o espírito comunitário permanece: cada conquista vira solo fértil para novos artistas.
E por falar em solo fértil, uma das atividades frequentes nos eventos promovidos pelo Instituto Cultura em Movimento é ligada ao bom uso da terra, como a compostagem. “Sempre tivemos atividades ambientais dentro dos festivais. Não é só porque elas vão entrar na pauta da COP30 — que é um evento muito mais para turista do que para o meio ambiente, opinião estritamente minha”, pontua Geovane.
Se a maioria dos artistas são urbanos, os moradores do nordeste paraense no geral são muito ligados à natureza. Geovane traz essa proximidade para os festivais: nomes como “EcoRock” e “Ouricuri” (“um rio onde já teve um balneário e hoje há um córrego poluído”, protesta) enfatizam o mote ambiental.
Através de parcerias com associações de agricultura familiar, os participantes são convidados a plantar mudas nas nascentes e braços de rios. “Falar de cultura sem falar de defesa ambiental é contraditório na Amazônia. Estamos sincronizados”, enfatiza.
A vida ribeirinha, a vida da beira mar, fazem parte das composições de muitas músicas, principalmente do carimbó. Santarém Novo, município que vai sediar o 14º FestiRimbó, é inclusive o berço da campanha pelo reconhecimento internacional do carimbó como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro, em 2014.

Pai e mãe preparam a futura geração na cultura do Carimbó. Foto: Marcos Colón / Amazônia Latitude.
O FestiRimbó, que retorna após um hiato de 10 anos, reúne grupos de municípios de toda essa região “do salgado”: Marapanim, Santa Bárbara, Salinas, São Miguel do Guamá e Maracanã; além de Parauapebas e Belém.
É justamente onde o Estado toca o Oceano Atlântico que o ritmo genuinamente paraense nasceu. Em Santarém Novo, há uma tradição muito forte que mescla o carimbó com São Benedito, cuja irmandade esteve por trás da campanha.
Bicentenária, a irmandade é composta por pessoas que vivem na roça e no mangue, pescando e catando caranguejo. Geovane conta que, durante o festejo de São Benedito, na mesma época do FestiRimbó, as pessoas usam trajes de gala para dançar (em respeito ao santo) e há sorteios disputadíssimos para os rodízios de anfitriões das casas onde a população vai festejar madrugada adentro.
“Os povos indígenas [grandes influenciadores dessa tradição] não diferenciam cultura de natureza e educação. Essa compartimentalização do pensamento veio com o colonizador. Então conhecer o interior é conhecer esses sujeitos que mantêm suas tradições ao mesmo tempo que estão conectados com o que acontece pelo mundo. A maioria dos artistas paraenses são do interior”, explica o produtor cultural.
Quem narra, molda: a COP30 e a disputa por dizer o que é Amazônia
Descolonizar o pensamento sobre o que é a cultura e a Amazônia é o tema abordado no curso que Gustavo Aguiar trouxe para o nordeste paraense. Diretor de Comunicação de um dos maiores festivais independentes do Brasil, o Psica, realizado no mês de dezembro em Belém, Gustavo nasceu em Ourém.
Após viver na capital do Estado, onde se formou em Jornalismo pela UFPA e foi um dos organizadores do Muvuca na Cumbuca, a Semana de Comunicação da Universidade, se mudou para o Rio de Janeiro, onde mora há dois anos e meio.
Gustavo explica que, o que ouve sobre a sua terra ainda carrega o tom de exótico e de fonte ilimitada de recursos para extração, que há séculos permeia o imaginário brasileiro e internacional.
“Eu entendo muito sobre o Rio de Janeiro, por causa do bombardeio de conteúdo midiático ‘nacional’ que recebemos há décadas, mas o carioca não entende muito sobre mim. Acho que toda vez que um paulista vai para o Psica ele parece estar fazendo uma viagem internacional, só que dentro do país dele. Ainda há muito essa visão de ‘olha o que tem lá e como isso é diferente do que tem aqui’”, exemplifica.
Para o jornalista, existe uma disputa clara por narrativas. Há pelo menos dois anos, Gustavo observa que os projetos culturais na região metropolitana de Belém tentam se posicionar como “os salvadores da Amazônia” — uma credencial que pode atrair financiamentos e prestígio.

Gustavo Aguiar, diretor de comunicação do Festival Psica. Foto: Redes Sociais.
Inclusive, Geovane Máximo considerou como um aprendizado do curso de Gustavo ser “possível manter nossos ideais e, ao mesmo tempo, alcançar financiamento privado para crescer nossos festivais, como o Psica conseguiu com o Mercado Livre, Nubank e Petrobras”.
Mas essa disputa de narrativas tem um problema estrutural: ela se concentra quase toda nas regiões metropolitanas de Belém e Manaus-AM. As outras capitais e as cidades dos interiores (com suas culturas ribeirinha, quilombola, indígena, agrícola) ainda são vistas como periferia da periferia.
O desafio é romper com esse olhar colonizador travestido de curiosidade. Mostrar que o Norte também é centro. Que o Brasil pode — e deve — ser pensado a partir da floresta, das margens, das vozes que nunca estiveram nos holofotes.
Eventos como o Circuito de Festivais, que revelam uma produção em outros locais do Pará, “mostram que eles também são Amazônia e querem mostrar a sua Amazônia. É super importante mostrar o quão diverso é esse território e ver a beira de rio e de mar, essas entranhas esquecidas. A gente é um território continental e diverso, mas vendido como uma ideia só”, pontua Gustavo.
É por isso que a COP30 é um momento ímpar para a história da região. Ela é vista com otimismo pelo diretor, que acredita que desde que foi anunciada, houve um deslocamento dos poderes econômico e midiático para o Norte. “O mundo está de olho na Amazônia e o Brasil está sendo visto a partir dela”, destaca Geovane.
Agora, é hora de pensar em uma identidade nacional mais inclusiva, com a visão que os nortistas têm do Brasil. Um caminho possível são cursos e rodas de conversa sobre música e cultura periférica (como o Motins Psica, que aconteceu em janeiro e trouxe criadores e pesquisadores dos outros Estados e até dos outros países amazônicos, e o próprio Decolonizando Marcas).
“Fortalecer esses movimentos culturais descentralizados é importante. Por conta desse direcionamento midiático para o nosso território, muita gente [pelo Brasil e pelo mundo] vai conhecer esses projetos, novas propostas devem aparecer, o que ajuda a estruturar e profissionalizar artistas e empresas. Tem muitos artistas se preparando para se apresentar para esse grande público nessas duas semanas de COP30. A gente já está exportando muita produção, como o Psica sendo atrativo para o turismo, a [aparelhagem de tecnobrega] Crocodilo indo para a Virada Cultural em São Paulo. As pessoas [de fora do Norte] vão entender que também somos o Brasil e se reconhecer aqui. Sou muito esperançoso quanto a isso”, torce Gustavo.

Banda Los Pelicanos em Icoaraci. Foto: Los Pelicanos / Divulgação.
Geovane Máximo também acredita na força de dentro das florestas. “A COP30 é uma oportunidade para as pessoas de fora conhecerem a Amazônia real. Como um rio que nasce dentro da mata, se encontra com outros rios, até chegar na sua foz e encontrar o mar. A gente vê assim as cidades do interior”, afirma.
É nesse espírito que artistas veteranos como Manoel Cordeiro seguem na estrada — ou no que ainda falta de estrada. Com quase 60 anos de carreira e 70 de idade, o multi-instrumentista também nasceu no interior: em Ponta de Pedras, na Ilha do Marajó, no Pará, e cresceu em uma capital, Macapá-AP.
Foi após voltar ao Pará que o mestre da guitarrada alcançou projeção nacional e internacional — assim como seu filho, Felipe Cordeiro, que emplacou músicas até em novelas de alcance nacional.
Presença confirmada nos shows do Circuito de Festivais do Nordeste Paraense, ele leva na voz e na guitarra o peso da história e o desejo de transformação. No seu celular, mostra para a nossa equipe o seu Manifesto pela Música Popular Brasileira feita na Amazônia.
“A música popular brasileira feita na Amazônia é a mais rica, potente e vibrante do país. Mas ela precisa gerar emprego e renda aqui mesmo, pra que ninguém precise sair da região pra viver de sua arte. Formar essa consciência coletiva das nossas potencialidades é difícil. Os desafios são enormes. No ano passado eu e Felipe excursionamos pelo Norte e Nordeste — e como foi difícil se deslocar! Se você mora no Acre e quer ir a Rondônia, precisa ir a Brasília e voltar, porque não há rede de estradas e aviões que nos ligue. Falta integração”, comenta Manoel.
E completa, como quem deixa uma semente:
“Meu manifesto é juntar quem tem a mesma vontade de uma Amazônia grande, integrada e coletiva e torná-la protagonista. Se não, não teremos força. É daqui que tem que partir o próximo movimento artístico do Brasil. Vamos sonhar grande, porque as realizações também podem ser grandes”.
Texto: Nayra Wladmila
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón