Verenilde Pereira

Verenilde Pereira é jornalista (UFAM), mestre em Comunicação e doutora em Jornalismo e Sociedade (UnB). Indigenista e pioneira do movimento literário afro-indígena brasileiro, sua obra inclui o romance ‘Um Rio Sem Fim’, escrito em 1998 e republicado em 2025, e a coletânea de contos ‘Não da Maneira Como Aconteceu’, de 2002.

Vem, Jarina: Mergulhe no conto de estreia da coluna de Verenilde Pereira

Conto de Verenilde Pereira retrata a dura realidade das ruas, onde a pequena Jarina encontra no amigo Bambino um raio de esperança

"Quase não sentia a quentura do cimento, incomodava-se com as formigas em seus pés e pernas, depois nos braços."
"Quase não sentia a quentura do cimento, incomodava-se com as formigas em seus pés e pernas, depois nos braços."
"Quase não sentia a quentura do cimento, incomodava-se com as formigas em seus pés e pernas, depois nos braços."

“Quase não sentia a quentura do cimento, incomodava-se com as formigas em seus pés e pernas, depois nos braços.”

Quando Jarina sentiu o primeiro grande frio em sua vida o sol ardia feito fogo derretendo sobre ela. Como se não percebesse o mal-estar que sentia, ela pulava com seu vestido solto impulsionando o ar, cabrita ao léu dos ventos. No dia seguinte, naquela brincadeira diária de “esconde-esconde”, ela não conseguia brincar de desaparecer para o amigo Bambino; ele logo a encontrou sem necessitar procurá-la nos cantos das ruas. A menina estava sentada e encolhida no batente de uma porta e sentia-se zonza. Jarina estava zonza.

O corpo amparava-se na porta cinza tão velha que as lascas de madeira se desprendiam pontiagudas em suas costas. Ela balançava a cabeça para frente e para trás, usava um enorme chapéu feito de papel jornal que os moleques haviam jogado sobre ela. Quase não sentia a quentura do cimento, incomodava-se com as formigas em seus pés e pernas, depois nos braços. Arranhava-se quase sem dó.  O alívio era quando passavam os ônibus de madeira e ela percebia olhares tênues em sua direção, olhares que ela sempre buscava e, às vezes, ainda escolhia alguns que ficavam dentro dela depois que os veículos sumiam na cidade. Jarina compenetrava-se naquela imensidão de olhares comumente envidraçados. Ás vezes os seguia imaginando seus percursos, e então, acomodava-se na penumbra de si mesma e dormia. 

Quando a encontrou daquele jeito Bambino perguntou-lhe que história era aquela de acobertar a cabeça com um jornal, aquele papel onde haviam histórias de um mundo tão longe da deles. “Tira isso da cabeça Jarina! Esse papel velho pode manchar teu sangue”. Intrigado, Bambino perguntou: “Mas que tens? Estás brincando sem graça, brincando sem brincar, sem escolher esconderijo difícil, brincadeira de esconde-esconde assim não vale!”. E amarrou em seus cabelos duros de poeira um laço enorme de seda encardida. “Agora brinca direito sim? Sim Jarina? Estás igual uma princesa feliz, ri, ri um pouquinho Jarina. Aliás um pouco não. Ri muito!”. E ela riu do jeito como sempre riria a ele, aquele amigo de cabelos meio loiros e encaracolados. Era mesmo um Bambino. 

Na outra noite Jarina dormiu enfeitada numa ruela desconhecida. Acordou por um momento com a luz pesada do poste caindo sobre seu rosto. Com a boca seca viu a ratazana sugando um pedacinho do dedão esquerdo de seu pé. Era aquela a de todas as noites? E se a ratazana levasse seu corpo inteiro? E se ela não pudesse mais correr movendo o vento, jogando com seus braços magros as jorradas de ar de um lado para o outro? Quando brincava assim Jarina imaginava “este vento para lá, este aqui para aqui mesmo…. esse outro para Bambino, o garoto mais amigo da terra”. E se não pudesse mais acompanhar a trilha da revoada de pássaros que sempre passava rente a ela nos finais do dia?  Assim sendo suportou o resto daquela noite, queria o outro dia para brincar de roda, correr de tempo cercado em arco-íris, queria o outro dia para encontrar um esconderijo seguro, para brincar de verdade. Quem sabe pudesse pular descalça com aquele laço encardido, seu pedaço de paz e céu reluzente nos cabelos. Mas agora sentia-se tonta, zonza; as ferroadas puxavam seu dedo arroxeado, avolumavam-se as marcas da ratazana. Uma mancha enegrecida começava a margear sua unha. Ela ouvia de forma longínqua as outras crianças gritando “vem Jarina!”. Ouvia mais: “A terra vai subir lá pra cima, vem Jarina, vem depressa, vem já, já! Jarina, onde estás?”. O dedo dela cada vez mais enchia-se de adormecida dor. Como ir ao encontro desses chamados?    

Bambino a encontrou novamente, tocou seus braços mais uma vez: “princesa estás muito quente, parece que engolistes um pedaço enorme de fogo”. É que seus poros eram tão quentes, talvez mais fogo que o fogo, os olhos já não eram olhos de Jarina, eram olhos de tição. “Corre Jarina, segura teu laço, lá vêm eles”: ela ainda ouviu sirenes, percebeu quatro olhos adultos cheios dos ódios costumeiros contra eles, reclamaram de algo que ela não compreendeu e viraram-lhe as costas. Bambino saiu correndo com as outras crianças, voltaria com algo para ela que sorriu com ternura, com quase dor. A maciez do laço amortecia as ferroadas em seu corpo machucado. Decidiu ocultar-se melhor e, como se estivesse brincando, deitou-se todinha sob uma nova marquise. A rua onde estava era linda demais, precisava arregalar os olhos para vê-la e assim assistiu um dia morrendo, a lua nascendo, e aquilo que a própria noite faz com sua escuridão.

No outro dia contaria a Bambino sobre aquele negrume cortado com as luzes das galerias e dos carros que passavam afoitos. Contaria dos passos das horas mortas que passaram rente a ela. Mas aquele presente de Bambino lá em cima, na sua cabeça, sugava o entorpecimento insuportável e, com o mesmo sorriso triste e quase sem dor pensava “brincar em lua como essa, feito esconde-esconde lá em cima é melhor… brincar de findar assim feliz, nunca é morrer de vez”. Diria também a Bambino, “mas só no outro dia, quando ele me encontrar”.

De manhãzinha Bambino a acordou e ofereceu apressadamente o pedaço de pão e um punhado de arroz que havia conseguido e guardado para ela no bolso do calção. Arrumou mais uma vez o laço tão marcado de uma pureza não contaminada: “dorme e amanhã te trago um prato com feijão e te carrego como puder para brincares novamente. Vou arranjar um esconderijo muito escondido onde ninguém vai te achar porque nem podes correr… por que estás tão parada, tão molezinha, Jarina? Estás doente, eu sei…. estás com banzo”. 

A morte conseguiu escondê-la muito bem, ninguém conseguiu encontrar seu corpo. As crianças gritaram juntas espalhadas pelos becos, ruelas, esquinas, alamedas onde a vida dela pudesse estar. “Volta princesa Jarina, a brincadeira de esconde-esconde já acabou, por que demoras tanto?”. Bambino ainda andou entre homens adultos como um menino forte carregando tantos pedaços de laços para ela. Quando a encontrasse diria com seus olhos mansos “princesa, que susto, a brincadeira de esconderijo acabou já faz tempo. Faz muito tempo”!. 

Por isto, às vezes, quando um executivo apressado sai do escritório desembaraçando a gravata e caminha carregando laços reluzentes e entre assobios canta “Jarina volta, pelo menos faz de conta que a brincadeira acabou”, há sempre alguém que indaga por que será que ele repete tantas bobagens. Perguntam por que ele repete o chavão, sempre no mesmo tom, como se buscasse alguém – “Jarina faz tanto tempo, vem brincar de novo?. Jarina onde estás?”.

Já refizeram torres detonadas, os jornaleiros já não gritam o antes nunca acontecido, imagens que seriam eternas viraram cinzas nas catedrais, outras guerras com perigos nucleares já explodiram, vírus desconhecidos transformaram parte da humanidade em monturos de farrapos. Então por que depois de tudo ele ainda repete isso? E ainda parece sorrir, com gosto de planície velando doce descanso: “A brincadeira acabou, já faz tempo…. muito tempo! Vem brincar novamente cabrita Jarina. Vem! Eu já não tenho muito tempo para te esperar”. Bambino segue pisoteando as novas tiranias. E canta mais forte: – “Vem Jarina”.! 

Verenilde Pereira é jornalista, formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), com mestrado em Comunicação e doutorado em Jornalismo e Sociedade pela Universidade de Brasília (UnB). Indigenista e pioneira do movimento literário afro-indígena brasileiro, ela é filha de mãe negra e de pai sateré mawé, do Amazonas. Sua obra inclui o romance ‘Um Rio Sem Fim’, escrito em 1998 e recentemente reeditado após ser redescoberto em 2022, e a coletânea de contos ‘Não da Maneira Como Aconteceu’, de 2002.

Montagem de página e acabamento: Alice Palmeira
Revisão:
Juliana Carvalho
Direção: Marcos Colón

Você pode gostar...

Acesse gratuitamente

Deixe seu e-mail para receber gratuitamente a versão digital do livro e ampliar sua leitura crítica sobre a Amazônia e o Brasil.

Download Livro

Este conteúdo é parte do compromisso da Amazônia Latitude de tornar visíveis debates e pesquisas sobre a Amazônia e o Brasil. Continue explorando conteúdos no site e redes sociais e, se quiser fortalecer esse trabalho independente, considere apoiar via pix: amazonialatitude@gmail.com.

Translate »