Conto de Sandra Godinho: A Caçada
"A caçada" narra a trajetória de um ribeirinho em tempos de escassez, sua luta contra a fome, a fuga para a cidade e a desilusão urbana


Capa do Conto “A Caçada”, de Sandra Godinho. Fotos: Guduru Ajay / Pexels e Carolina Franco / Wikimedia Commons.
Arte: Fabrício Vinhas / Amazônia Latitude
Os Xapiri me contaram outra história, sobre um tempo de chumbo, quando o sol, incapaz de rasgar nuvem, fez a chuva branca arriar sobre a terra. Diacho de inverno trazendo a desgraça, dificultando peixe e pescaria para quem vivia na beirada e nos barrancos do rio. Famílias iam minguando de bucho vazio, só na farinha com água. As águas invadiram as terras, os bichos fugiram pros igapós; os peixes não mordiam o anzol.
Ariscos, os homens e os animais na terra desconforme. Mais um avanço do chuveiro e a mata se afogava nas águas. Nem a maromba aguentava, matando boi, vaca, boiada inteira. O cachorro pirento já era um quase nada. Nem dava mais sinal de onça, anta ou calango. Só no morre-não-morre. Canarana alta, triscando a canela, dificultando passo.
Fosse verão, usariam a terra de várzea, roçariam, limpariam o terreiro para plantar maniva. Agora nem isso. O jeito era usar a canoa ronceira pra furar lago, botar mão no remo com Deus no adjutório pra puxar algum surubim. Com fé, fisgariam algum. A mulher, cara amargosa e sem dois dentes na frente, azedou com a visagem do homem ajeitando a igarité na margem.
— Agora tu quer morrer feito nosso filho, quando caiu da canoa?
— Tô na consumição de ajeitar o de comer, mulher. Assim, sumindo as carnes, acabamos com o mesmo destino do menino. O outro curumim tá descaído. O coitadinho nem tem força de chupar teu peito seco!
— Pois então tome a cartucheira que, da tua mira, ninguém escapa!
O ribeirinho concordou, rio era caminho andante, mas, em época de chuva, virava carestia, peixe fugindo pro fundo sem triscar o anzol; triste ver a mulher de olho inchado, nariz remelento de tanto chorar e de amargar fome.
Colocou a arma nas costas, pesando nos ombros. Não tinha lembrança de errar tiro. A espingarda de estimação nunca negou fogo. Tiro certeiro na cabeça de mutum, anta, cotia, macaco, paca, tatu, jacu, pra não estragar a carne. Fartura por muitos dias. A mulher salgava e a família se ajeitava sem reclamar. Agora, a comida se foi, nem farinha tem para enganar a fome.
No acordado entre os dois, o matuto tomou a cartucheira. Foi obrigado a enfiar a perna até o meio, na beira do lago. O caldo de merda formava trilha na água, subindo na terra.
Anta era bicho cagador, dispersando as sementes na mata. Na terra firme, o cagaço da bicha acabando. Copaíba tombada com raiz e tudo, cortando a trilha na terra fraca até pra segurar árvore.
O matuto se embrenha na mata, pensa na carne salgada, no quente da rede, na palafita aguardando a água do lago baixar. Na árvore buliçosa, macaco guariba faz cisma, criando caso, luxento. Tivesse perto, levava bala no olho. Mulher ia gostar do chá do gogó de guariba macho pra curar doença. Mas o matuto leva um cagado nas vistas, o macaco foge, desorientado, deixando o ardume nos olhos, raiva na alma, vazio no bucho. Mas não deixava o matuto só.
Mutuca, pium, borrachudo, todo tipo de inseto picando a pele do homem, braço e perna já lanhados de tiririca. Cheiro de sangue no ar. O matuto amofina na mata, cansado, esmorecido, tonto de fraqueza. Sem rasto de anta, imagina que a bicha tenha tomado o rumo da beira, bebendo água pra matar a sede.
Tivesse achado algum caititu, um inambu que fosse, não perdia a viagem. Mas anta era esperta, corria que nem gato maracajá, se não acompanhava com os olhos, ficava só no vazio. Bicha arisca.
E o vento foi açoitando, forrando o chão de galhada, cipó, raiz e folhas pra apodrecer no chão. O matuto torava o tabaco, enrolava o cigarro nos dedos, fumava o tempo pensando na precisão. O lombo doía de tanto cortar planta, abrindo picada na mata. Doía do peso da arma, da barriga vazia.
A água não toldada, permanecia limpa, sem rebuliço de pata ou focinho; dizia que a anta não tinha passado por ali. Nem anta nem onça, que essa pisava leve, mas em tempo de chuva não fazia parada. A fome apertava, tonteira. Só na piedade de Deus. A desesperança tomava corpo no corpo doído do homem. Só faltava agora aparecer sucuriju na picada aberta.
O matuto rompeu marcha no caminho de volta. Tivesse cachaça, esquentava o peito, sem medo de onça, de fome, de panema do mato, chamando morto de volta à vida. Ticoã cantava, agourando a alma. Mas não era o único a barulhar perto do igapó. Tinha sapo, grilo, macaco, tudo na gemedeira da noite sem lamparina. A lua no céu deixava a noite clara pra adivinhar o rumo de casa. Coisa linda de ver. O cigarro faz saliva no canto da boca. Até a chuva branca cair de novo, pra terminar de afugentar tudo que era bicho.
Em casa, a mulher amargosa não se conformava com o despacho da viagem. Reclamava do tempo em que era cunhã jeitosa, de muito pretendente. Perguntou se o homem esquecia. Mas os anos não deixavam ninguém esquecer.
O matuto bem que tentava, mas lembrava da rapaziada, da cachaça farta de boca em boca, das farras com as caboclas, do bem-querer. Agora era só a precisão. No inverno, a bicharada fugia. No verão, havia fartura de peixe até a água se acabar, seca no fundo do rio. A privação do matuto tinha de estiar, feito a água do rio.
Na gastura da noite, foram se embolando na rede, esperaram o dia rasgar no horizonte, o sol apontar no céu. Pegaram o de maior necessidade: farinha no saco, menino no braço, canoa na água pra fugir da desgraça, no rumo da cidade para secar a precisão que apertava no bucho roncador. Motor ligado, eles deslizaram no banzeiro em direção a Manaus.
Compadre já esperava no Igarapé do Quarenta, quartinho que fosse. Abria a casa, abria a esperança: dente na boca, estudo, comida, doutor pra cuidar da saúde. Matuto e a família nem piaram de tanta alegria. Nem mesmo o jitinho no colo, na secura do peito, conformado com a fome. Comadre recebeu bem, leite morno na mamadeira pro coitadinho mamar. Parecia até que sorria, desdentado que fosse.
Compadre arranjou trabalho pro matuto de vigilante na fábrica do Distrito. Coisa de responsabilidade. Matuto importante. Assim que desse, alugava um quartinho na zona Norte, ou invadia um terreno que, na cidade, tinha muito. Arribava na nova vida com jeito de gente.
De início, matuto confundia as ruas de asfalto. Não eram caminhos andantes como os da mata, tinham nome e número, mesmo assim vivia perdido. Depois se achou, reparando na mulherada, tudo esperta, atirada na vida, penduricalho no pescoço, braço, orelha e dedo. Dente branco em fileira, bonito de ver. Sem buraco, nem mancha. Imaculado no sorriso. Saía pro trabalho, dele pros bares, dos bares pras camas. Uma nova a cada noite pra experimentar a carne.
Ódio da mulher que, quando ele chegava em casa, só fazia reclamar do pouco ganho, das querências muitas. Brechava uma, se pegava noutra. Nenhuma o deixava só. Bebia e bebia, cachaça da fina. Matuto aprendia fácil o que a cidade trazia. Salário do mês sumindo depressa, sem parar no bolso. Os amigos, um a um, se foram. As damas também, sumindo quando sumiu o dinheiro. Até a mulher do matuto não o quis mais, protegida na casa do compadre. Discussão sem fim, martelando na cabeça.
— Por que não morre, caboco?
Não esquecia a desfeita, dormindo na praça, banco duro como a vida. Desfeita na cidade tanto quanto no interior.
A noite mal dormida, no sobrosso de apertar o peito. Ticoã cantando, agourando a alma. E o vento açoitando, forrando o chão de galhada, cipó, raiz e folhas pra apodrecer no chão. O matuto torava o tabaco, enrolava o cigarro nos dedos, fumava o tempo, Lombo doendo, de barriga vazia.
A lua caindo nas árvores. Lua linda de aclarar a noite, não tanto quanto nas águas perto do lago. Época de inverno, na chuva branca, não tinha anta nem onça, que essa sempre é sorrateira, pisa leve e não deixa rastro.
Nem todo bicho tinha pra onde fugir.
Este conto integra o livro de contos Nós, Cegos – ganhador do Prêmio Carolina Maria de Jesus – , a ser lançado em breve pela Editora Litteralux.
Nós, cegos
Autora: Sandra Godinho
Ano: 2025
Páginas: 119
Idioma: Português
Editora: Editora Litteralux
Lançamento em março de 2025.
Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB). Com Orelha lavada, infância roubada (2018), recebeu Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019), e com Verso do reverso (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Seu romance Tocaia do Norte (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Outra obra sua, A morte é a promessa de algum fim, recebeu o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, Memórias de uma mulher morta e A Secura dos ossos.
Montagem de página e acabamento: Alice Palmeira
Arte e Montagem do site: Fabrício Vinhas
Revisão: Glauce Monteiro
Direção: Marcos Colón