Conto de Sandra Godinho: Aos bocados (qualquer fome mata!)
Sandra Godinho nos convida a mergulhar num universo em que a natureza decide cobrar o preço


Com as garras no chão atravessado de gravetos, afio as unhas na intenção de me preparar,
engolir homens que fizeram dos nossos dias um deserto. Foto: Maicol Albert / Revista Nómadas.
Grrrr…A realidade exige leituras. A primeira executei ao avistar o buraco no tronco da árvore, um rombo na casca, provável tiro, denunciando a presença dos caçadores, grileiros ou fazendeiros que queriam sumir com os animais da área, fossem invasores de duas patas ou de quatro, salivando uma baba espessa e com pressa de sobreviver… Grrrr… Que os grileiros não tomem esturro por miado, mesmo eu estando em desvantagem, fraca, faminta e frágil… não se enganem, dou o bote quando preciso, não são só os homens que vivem em espreita e maldade, também eu me queimo por dentro, ainda mais depois que meus filhotes se foram, mortos de fome, não por incapacidade minha de caçar, já não havia caça em abundância pelas ravinas e desfiladeiros, já não havia carne o bastante para alimentar a animália desde que os humanos se abancaram naquelas paragens secundárias com intenções terceiras… me obrigaram a seguir me esgueirando pelas ramagens, com olhos de fogo e pelagem de sol, as pintas negras conjuminando com a fome, ardendo de dentro para fora, botando reparo nessa gente que se achega achando que é dona do mundo, rompendo a terra atrás de ouro e diamante, acabando com a mata para vender a madeira, corrompendo almas com a ganância, se enroscando nos barrancos dos rios com olhos de visagens, delírios de um futuro próspero, mesmo com a dificuldade dos caminhos, querendo amansar todo o resto, os incômodos e as injustiças, mas o resto não é como eles; não se amansa. As matas, os rios e as terras voltam sempre para cobrar pagamento pelo usufruto, e voltam em revolta, com a língua amarga, na intenção de restaurar a ordem… Grrr….
Grrr… A segunda leitura faço quando o homem se aproxima em urgência, tem a ferradura de um cavalo tatuada na pele, ainda vermelha, se foi pisoteado por jegue ou por cavalo teve sorte de sair vivo, mas pode ser outra coisa, minha visão é apurada, mas de longe todos os gatos são parvos, e se for queimadura de fazendeiro, algum fazendeiro marcando gado e território com tição quente, vai sair correndo pela campina e voltar depois, para roubar qualquer cabeça da criação que, por essas bandas e nesse tempo de carestia, é sustento e repasto, é bem capaz de todos se tornarem caçadores, basta precisão e propósito… Grrrr …. a interpretação é uma só: aprender o caminho das pegadas que nos levam à profusão de carne, oferta não se deixa passar, então o sigo, pata por pata, focinho apontado para cima, farejando o folhiço seco sem fazer alarde, só na mansidão de movimentos e com o dorso espigado, animada com a possibilidade de bom repasto até dar com o homem.
O desconhecido mora com a família? Alguma corrutela na beira do rio, quem sabe? Mas me engano, o rio já não é rio, mas um fiapo de água, um veio molhado onde as voadeiras já não trafegam nas margens, com medo de encalhar em algum banco de areia, o rio não é nem mesmo um igarapé, mais um lodaçal inanimado, pegadiço e maçante, agonizando lento.
Com as garras no chão atravessado de gravetos, afio as unhas na intenção de me preparar, engolir homens que fizeram dos nossos dias um deserto, nos arrastaram para as enseadas do medo, o medo de perecer, de ver morrer os nossos sem que se importem, esses homens sem raízes e incapazes de fazer brotar semente que preste sobre a terra, esse é o perigo dessa gente fria que se funda em fortuna e ganância. Eu me concentro no infeliz que corre contra o vento, dentro das línguas prateadas de mercúrio no leito do rio que ainda suspira, ao mesmo tempo que penso nas minhas crias que baixaram os olhos pedintes pela última vez, tão em agonia quanto o rio que quer voltar à vida, também ele querendo dar o bote, também ele querendo engolir o que lhe vem pela frente. O homem sobe a escarpa com dificuldade e se junta à família, há várias outras no lugarejo, a trinta metros acima do nível do rio, que logo se reúnem em volta dele, o pobre gesticula os braços, as palavras aflitas lhe solapam a voz e, mesmo esbaforido, avisa a todos que os grileiros estão chegando, os fazendeiros já se abancaram na intenção de botar pasto e o resto da mata abaixo, pra mais se envolvendo em discussões com a mulher, arranca-rabos que fazem esquecer o bebê dormindo na rede, a carne tenra e ainda sem pecado que servirá para a penitência e toda uma raça. De que adianta botar cria nesse mundo-cão?
Meu cheiro acre não é percebido então avanço, mas uma cria a morrer não apazigua ninguém, nem mesmo os mais fortes, ou os mais astutos, esse mundo é um eterno sepultar. Ouço uns rumores subterrâneos, a terra parece estar em revolta, é quando tudo se precipita, um tremor sob as patas e, em seguida, o desmonte do terreno, a cantoria que revolteia os túneis ocos nas profundezas das terras, antes preenchidas pelas águas, agora cedem ante o peso de tudo, tenho tempo apenas para uma derradeira interpretação, fundindo meu desejo ao desejo das águas, engolindo junto secura e saliva, com a fome desenhando no meu corpo um caminho, o único que podia seguir para sobreviver.
Grrr …com as ventas acesas e o focinho farejando o ácido da terra, descambo ladeira abaixo com o restante do vilarejo, desmoronando de supetão, levando junto casebre, corpo e alma, dos homens, das mulheres e das crianças que gritam em desespero, com os olhos muito abertos para o invisível, para o que não entendem, as terras caídas engolem tudo, apressadas para tomar de volta aquilo que lhe tiraram, vida e fertilidade, proteção e raízes, são terras órfãs. Um a um, os casebres tombam, engolidos pela água logo abaixo, um útero molhado a receber ferros retorcidos, madeiras, canoas, palafitas, tudo se desarvorando em direção a um mundo de musgo e água… Grrr… saio dessa simbiose inesperada com as terras e as águas, saio tão rápido que ainda tenho tempo de ver o homem agarrar seu filho, antes de submergir… Grrr… havia quem tivesse mais fome do que eu.
Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB). Com Orelha lavada, infância roubada (2018), recebeu Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019), e com Verso do reverso (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Seu romance Tocaia do Norte (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Outra obra sua, A morte é a promessa de algum fim, recebeu o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, Memórias de uma mulher morta e A Secura dos ossos.
Montagem de página e acabamento: Alice Palmeira
Revisão: Juliana Carvalho
Direção: Marcos Colón