COP30: o verniz verde da sujeira do capitalismo
A retórica da transição climática posta à prova na Amazônia, o palco da contradição entre o lucro extrativista e a vida na Casa Comum

Na COP 30, uma Conferência voltada a proteger o clima, recuperar e “salvar o planeta”, os principais agentes poluidores e destruidores
são os que tem voz nas salas de negociação. Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude.
Ao mergulhar na pauta da COP 30, a Conferência das Partes sobre Mudança do Clima, que ocorrerá em Belém entre 10 e 20 de novembro, é inevitável um retorno no tempo. A urgência climática que hoje move líderes e ativistas em direção à Amazônia não é um fenômeno surgido no século XXI, mas sim um alerta que ecoa há décadas. A pedra fundamental da diplomacia ambiental foi lançada já em 1972, na Conferência de Estocolmo, na Suécia, e consolidada no Brasil, em 1992, com a histórica Cúpula da Terra, a Rio 92. Foi neste último encontro que nasceu a própria Convenção-Quadro, o tratado que, três anos depois, daria origem às Conferências das Partes (COPs), cuja primeira edição foi em Berlim, em 1995.
O debate em torno da crise ecológica remonta a um período anterior à sua plena assimilação pela grande mídia. Na década de 1980, a Teologia da Libertação expandia sua análise para incluir a questão ambiental. Nesse contexto, Leonardo Boff se destacou, e sua contribuição alcançou as bases da Igreja Católica no Brasil. Textos relacionados ao clima e à ecologia, de sua autoria ou inspiração, eram acessados pela juventude por meio de veículos como a revista “Mundo Jovem” e cartilhas das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
Esses escritos iniciais eram encarados como autênticas “profecias” acerca do futuro do planeta, antecipando as catástrofes que se manifestariam anos mais tarde. A recorrência de desastres naturais remete à lucidez dos textos do frade, especialmente ao se manifestarem como decorrência da ação humana e da falta de respeito à “Casa Comum”, termo popularizado pelo Papa Francisco na encíclica Laudato Si’, mas que ecoa a reflexão de Boff.
Essa retrospectiva remonta particularmente aos anos 80 e 90, pelo contato com o pensamento visionário do teólogo. Suas reflexões sobre a ecologia e as “profecias” climáticas, fundamentadas na vida do povo e nos documentos da Igreja já sinalizavam a crise que hoje se manifesta com toda a sua gravidade. Boff, com sua participação direta nas comunidades e na elaboração dos documentos eclesiais, captou e traduziu uma preocupação que, no âmbito político global, ganhava corpo lentamente.
No início dos anos 2000 surge a denominação “ecossocialismo” para este campo de pensamento. À época, havia uma avaliação consensual de que a preservação e a recuperação do planeta seriam inviáveis sem uma alteração fundamental no sistema vigente. Tudo bem claro, na mudança radical do modo de produção, que era e ainda é baseado no lucro. Essa avaliação unânime apontava que o sistema vigente deveria ser radicalmente alterado.
Este diagnóstico, que se manifesta hoje em catástrofes climáticas, valida as previsões: colhemos os resultados de um capitalismo que não tem outra bússola a não ser o lucro, ignorando a preservação da natureza para as futuras gerações. O modo de produção industrial, obcecado pela acumulação, se recusa a diminuir as agressões ambientais.

Colhemos os resultados de um capitalismo que não tem outra bússola a não ser o lucro. Foto: Edmar Barros/Amazônia Latitude.
Belém 2025: o palco da contradição global
A sede da 30ª Conferência das Partes na capital paraense é de suma importância, pois coloca a Amazônia e suas demandas de desenvolvimento sustentável e justiça climática no epicentro das negociações globais. O evento decorrerá sob a sombra dos principais acordos firmados nas conferências imediatamente anteriores.
Na COP 28 (Dubai, 2023), as nações alcançaram um marco histórico ao incluir, no documento final, um apelo para a “transição em relação aos combustíveis fósseis”, além de operacionalizar o Fundo de Perdas e Danos e pactuar a meta de triplicar a capacidade global de energia renovável até 2030.
Em seguida, a COP 29 (Baku, no Azerbaijão 2024) dedicou-se majoritariamente às complexas discussões sobre o financiamento climático, focando na negociação da Nova Meta Quantificada Coletiva (NCQG), o montante de recursos que países ricos devem aportar para apoiar ações em nações em desenvolvimento. A COP30, portanto, herdará o desafio de transformar a retórica da transição energética e do financiamento em mecanismos concretos e efetivos. Nesse contexto, a Amazônia se torna um laboratório de soluções, reforçando a urgência da ação climática com equidade social e econômica.
Mas, e na prática, como isso tem funcionado e como funcionará daqui para frente? A floresta amazônica e sua biodiversidade são o que resta ao mundo para que o planeta volte a respirar um ar minimamente puro. Como fica o Estado do Pará e, mais especificamente, o interior do Brasil e do próprio Pará, diante dessa discussão? O que resulta desse movimento: a retomada da vida na Terra ou o avanço do “engodo”?
A crônica da tensão: os laboratórios do extrativismo
A realização do evento em Belém, dentro da Amazônia Legal, abre o foco para a realidade do interior do Pará e do Amazonas. É fundamental entender como pesquisadores e representantes de movimentos sociais de diferentes localidades podem avaliar positiva e negativamente este evento, tanto do ponto de vista da ciência quanto dos sonhos de se construir um mundo melhor, visto que o atual está sob ameaça em grande parte pela ação humana.
Um diálogo com pessoas de três cidades de diferentes regiões do Pará ajuda a compreender essa realidade da prática e da teoria no tempo de um evento de proporções internacionais. Mais ainda, como a COP 30 afeta positiva e negativamente essas cidades e populações na ótica de pesquisadores e ativistas.

A COP 30 na Amazônia coloca as demandas da Floresta por desenvolvimento sustentável e justiça climática no centro das negociações. Foto: Raphael Luz/Agência Pará.
Para esse recorte, foram escolhidas as cidades de Marabá, Altamira e Santarém. Localidades que apresentam características e contradições semelhantes, inseridas em um espaço de luta de movimentos sociais e sociedade civil basicamente com os mesmos ideais.
Marabá, no sudeste do Pará, tem sua economia ligada à mineração e à indústria siderúrgica, gerando pressões ambientais como a poluição hídrica nos rios Tocantins e Itacaiúnas. Altamira, de vastíssima extensão territorial, fica na Região do Xingu, e foi transformada pela construção da Usina Hidrelétrica Belo Monte, que alterou o regime hídrico e gerou um alto índice de desmatamento e de fluxo migratório. Santarém, no oeste do Estado, é um centro urbano importante, com economia diversificada e forte logística de grãos, onde a expansão urbana e a atividade madeireira pressionam os fragmentos florestais.
O que une essas três cidades é a tensão crônica entre um modelo de desenvolvimento extrativista e capitalista – baseado em mineração, grandes obras e o agronegócio – e as formas de vida tradicionais e a conservação da sociobiodiversidade amazônica. Essa tensão se manifesta em disputas fundiárias violentas e violência no campo, com a presença de grileiros e madeireiros que buscam a apropriação de terras. As maiores vítimas são sempre os povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e assentados. Além disso, esses espaços sofrem com o rápido crescimento desordenado impulsionado pelas frentes econômicas, resultando na falta de saneamento básico e na ocupação irregular de Áreas de Preservação Permanente (APPs).
A voz ativa do poluidor e a desmoralização do discurso
Essas contradições do interior da Amazônia colocam a COP 30 em um paradoxo. O evento é uma realização importante para o Brasil, mas precisa focar em seus objetivos verdadeiros: a recuperação e a retomada da vida na Terra, reordenando o clima.
Para Charles Trocate, estudioso e militante do Movimento Nacional pela Soberania na Mineração (MAM), a Conferência se apresenta como uma enorme contradição em relação à prática cruel da realidade amazônida. Marquinhos Mota, indigenista de Belém, chega à mesma conclusão de que o evento é uma realidade contraditória frente ao que se vive no interior do interior do Pará.
“A questão da mineração, por exemplo, é extremamente contraditória, porque as terras brasileiras, sobretudo no sudeste do Estado do Pará, são intensamente exploradas, e o povo é quem arca com os prejuízos. A COP 30 precisaria realmente discutir o que é essencial para salvar a Amazônia e o planeta Terra”, defende Trocate.
“O capital está se agigantando e já demonstra interesse em quase todas as partes. Estão de olho nas commodities, sobretudo com foco na construção de hidrovias para o escoamento da produção de monocultivos de soja e outros grãos”, argumenta Marquinhos. Acrescenta, ainda, que o paradoxo se acentua quando se observa que quem patrocina grande parte do evento são justamente aqueles que destroem o meio ambiente, visando basicamente o lucro.
Nesse cenário, o setor agropecuário busca construir sua própria narrativa. Por meio da AgriZone, um espaço temático coordenado pela Embrapa com forte parceria privada, o agronegócio pretende se posicionar na COP 30 como uma ‘Casa da Agricultura Sustentável’, apresentando tecnologias de baixo carbono e bioeconomia. Contudo, para os críticos, esta é justamente a face institucional da contradição: um esforço para projetar um ‘verniz verde’ sobre um modelo produtivo que, historicamente, é a principal frente de pressão extrativista e desmatamento na região.

“AgriZone” na COP30, em Belém. Foto: Divulgação/Embrapa.
O Professor Raimundinho, da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), classifica como uma vergonha a COP 30 ser realizada em Belém poucos dias após o Governo Federal ter assinado a ordem de exploração de petróleo no Amapá. “A extração de minério fóssil é um dos principais agentes do problema da destruição do planeta terra. E isso está diretamente ligada à desigualdade social que também se manifesta no espaço geográfico de toda a Amazônia”, endossa.
O posicionamento contra a exploração capitalista nas águas dos rios que cobrem a Amazônia é um consenso entre os entrevistados. Vide o Decreto nº 12.600/2025, que incluiu as hidrovias dos rios Madeira, Tocantins e Tapajós no Programa Nacional de Desestatização (PND). A preocupação não se restringe à legalidade, mas foca, principalmente, nas questões hidrográficas e, sobretudo, no avanço das monoculturas de soja na região. As terras indígenas, que deveriam ser protegidas, são constantemente ameaçadas pela ação do agronegócio na floresta.
Marquinhos Mota cunhou o termo “agrocommoditismo” para descrever justamente a junção do agronegócio com o modelo das commodities. Em sua análise, é esse o mecanismo que reflete os objetivos principais do capitalismo que destrói o planeta, tal como já previsto.
É notável a contradição no debate da COP 30 – uma Conferência voltada a proteger o clima, recuperar e “salvar o planeta” – quando os principais agentes poluidores e destruidores são justamente aqueles que cometem verdadeiros crimes ambientais e têm voz nas salas de negociação.
Essa discussão ganha ainda mais relevância após a autorização para a perfuração de petróleo na costa marítima que faz fronteira com o Estado do Amapá. Tal medida, tomada após intensos debates, é fortemente questionada por movimentos sociais, comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhos, bem como por todos aqueles que defendem a floresta amazônica e sua biodiversidade. Afinal, qualquer tipo de ação humana (ou exploração) motivada pela geração de lucro na biodiversidade da Amazônia desmoraliza o discurso oficial de um governo alinhado com o meio ambiente e com as comunidades tradicionais.
Texto: Zé Luís Costa
Montagem da Página: Alice Palmeira
Revisão: Juliana Carvalho
Direção: Marcos Colón
