Olho d’Água: Enchentes no Rio Grande do Sul, crise climática e a Amazônia
No sexto episódio do podcast, Carlos Nobre analisa a relação entre as enchentes no Sul, a crise climática e a Amazônia
Áreas afetadas pelas enchentes em Canoas (RS). Foto: Ricardo Stuckert/PR. Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude
Você já leu Crônica de uma Morte Anunciada, de Gabriel García Márquez? O livro surpreende porque o escritor colombiano diz logo na primeira linha que justo o protagonista, Santiago Nasár, vai morrer. Toda a comunidade sabe de seu iminente assassinato. É uma trama movida por vingança. Mas nada é capaz de impedir o fim trágico.
O Brasil vive, há quase exatamente um mês, uma crônica parecida.
O destino do Rio Grande do Sul parecia traçado no momento que caíram as primeiras gotas de chuva no dia 27 de abril. A chuva se transformou em tempestade, a tempestade se transformou em enchentes e, até o último domingo (26), o desastre tirou 169 vidas, além de deixar mais de 580 mil moradores alojados. O número total de pessoas afetadas é perturbador: 2 milhões e 340 mil.
Pela magnitude, essa já se configura como a maior tragédia do estado gaúcho, talvez até do Brasil. Por isso, o choque. Só que, assim como a morte de Santiago Nasár, foi uma tragédia anunciada.
Este é o quarto desastre do tipo a atingir o Rio Grande do Sul em menos de um ano. Em 2023, três eventos parecidos, ainda que menos intensos, ocorreram em junho, setembro e novembro, deixando somados 75 mortos.
Talvez não desse para prever exatamente o que ia acontecer desta vez no sul do Brasil, mas o aumento da frequência dos chamados “eventos climáticos extremos” é um fato. Essa tendência está diretamente conectada com o aquecimento global, algo que os cientistas se esforçam há décadas para avisar.
E não são só chuvas e enchentes. Publicado no ano passado, o último relatório do IPCC, o painel das Nações Unidas que pesquisa mudanças climáticas, mostrou que ondas de calor, ciclones tropicais, tornados e secas também vão ficar cada vez mais comuns conforme os termômetros forem subindo. Isso já está acontecendo.
Nosso país ainda tem uma particularidade. Quase 60% do território brasileiro é ocupado pela Amazônia. Se bem ajustado, seu mecanismo complexo de rios, árvores e animais desempenha um papel primordial na manutenção do clima global e regional. No entanto, se desequilibrado, pode contribuir para o aumento dos eventos climáticos extremos.
Para ajudar a entender o que a Floresta Amazônica tem a ver com as enchentes no Rio Grande do Sul e como enfrentar as tragédias anunciadas da crise climática, conversamos com o doutor Carlos Nobre. Ele é coordenador do Instituto Nacional de Ciências e Tecnologia para Mudanças Climáticas e um dos pesquisadores do IPCC, que ganhou, em 2007, o Prêmio Nobel da Paz.
O Brasil, como qualquer país hoje no mundo, está correndo enormes riscos desses eventos climáticos extremos. Não tem mais volta. Se nós perdermos toda a Floresta Amazônica, vai ter um enorme impacto, principalmente no Sudeste. Vai aumentar a duração da estação seca no Sudeste, que hoje é na faixa de seis meses, pode passar sete a oito meses. Vai afetar também as chuvas, um pouco no Sudeste e no Sul do Brasil. Tudo isso vai acontecer se nós perdermos a Amazônia. Então a adaptação se torna uma coisa para ontem. Não podemos mais aguardar.
Este é o Olho d’Água, podcast produzido pela Amazônia Latitude e que propõe um mergulho nos assuntos profundos da maior floresta do mundo.
Ouça abaixo o sexto episódio completo:
O município de Eldorado do Sul mistura cenários campestres pelo extenso cultivo do arroz à pecuária; além de grandes empresas ali instaladas, como Ambev, Dell e Grupo Panvel, e casinhas pitorescas devido à chegada de colonos de origem alemã nos anos 1960. Ele fica a 12 km de Porto Alegre e serve de balneário turístico para muitos da capital gaúcha, uma vez que é banhado pelas águas do rio Jacuí e pelo Guaíba.
Foi justamente o Guaíba que encheu e transbordou. Depois de bater um recorde histórico de 5,33 metros — com as chuvas do último mês —, transformando completamente a paisagem do estado, mas principalmente de Eldorado do Sul.
Debaixo d’água há mais de 15 dias, a pequena cidade gaúcha teve o maior número proporcional de pessoas desalojadas, e quase 80% da população afetada pela enchente.
É um cenário de guerra. Móveis pesados, como sofás e camas, foram arrastados para outros lugares com a força da cheia. Ficaram úmidos e cheirando a lodo. Eletrodomésticos, mesas, cadeiras, roupas, frutas e outros alimentos ficaram repletos de lama, assim como qualquer superfície das casas. Janelas e portas quebraram pela corrente de água ou por saques. Mesmo com a água começando a baixar, a cidade virou praticamente um rio imenso.
Cada tragédia é única, pelo sofrimento humano singular que causa. Mas é impossível deixar de comparar essas cenas com as do Paquistão, onde um terço de todo o território nacional ficou submerso em 2022, após tempestades fazerem transbordar o Lago Manchar, no sudeste do país. Ou com o que aconteceu no estado norte-americano da Flórida, no ano passado, quando o Furacão Idalia, o mais forte a atingir a região em 125 anos, provocou perdas estimadas em U$5 bilhões.
Sempre houve e sempre haverá fenômenos naturais cuja força incomensurável provoca danos a ecossistemas. O problema é que, por causa das mudanças climáticas resultado da ação humana, eles estão ficando cada vez mais frequentes e intensos, como explicou o doutor Carlos Nobre:
Os estudos mostram que, por exemplo, ondas de calor já estão até 30, 40% mais frequentes do que antes do aquecimento global. E chuvas intensas e secas estão muito mais frequentes. Então um evento de chuva muito intensa, como o que aconteceu no Rio Grande do Sul — que podia acontecer talvez uma vez a cada século, dois séculos —, agora, com esse aquecimento, pode acontecer uma vez a cada poucas décadas.
O “X” da questão é que um planeta mais quente não só pode evaporar bastante água do solo, baixando a umidade de uma região e provocando secas intensas, mas a evaporação extra pode levar tanta água para a atmosfera que, em outras regiões, provoca uma sobrecarga de precipitações. Por exemplo, o último relatório do IPCC estimou que para cada 1ºC de aquecimento, as rajadas de chuva ficam até 20% mais pesadas.
Além disso, todo esse vapor acumulado na atmosfera carrega uma energia tão grande que é capaz de alterar os sistemas de alta e baixa pressão, causando ventos mais fortes e poderosos (os ciclones, tornados e tempestades).
Esses fenômenos estão ficando mais visíveis porque o planeta já está superaquecido. No ano passado, a Terra chegou à temperatura mais alta desde sua última época interglacial, 125 mil anos atrás. E, pela primeira vez, ultrapassamos o limite de aquecimento estabelecido como “seguro” pelo Acordo de Paris: 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais (dos anos 1850 a 1900). Mais do que nunca, ficou claro que a crise climática é aqui e agora.
Isso é motivo de preocupação para o mundo inteiro, afinal, é um fenômeno global. As partículas de carbono da queima de combustíveis fósseis, que aquecem a atmosfera, não conhecem fronteiras. Mas, como lembra o Carlos, aqui no Brasil, temos uma razão muito específica para se preocupar: a Amazônia.
Se continuarmos com as emissões, vamos chegar em 2050 a 2,4-2,6ºC. Quer dizer, realmente, se formos nessa velocidade, vamos fazer com que grande parte da Amazônia desapareça. Aí é um enorme risco para todo o planeta. Vamos perder mais de 250 bilhões de toneladas de gás carbônico. Isso tudo vai tornar impossível ficar abaixo de 1,5°C.
Porto Alegre fica a mais ou menos 4 mil km de distância da capital do Pará, Belém, cidade que fica encrustada nas bordas da Floresta Amazônica. Pode parecer muito longe, mas, diferentemente de Las Vegas, o que acontece na Amazônia não fica na Amazônia — e chega sim no Sul.
O Brasil tem cinco principais ecossistemas distintos, mas todos estão conectados. No caso das enchentes do Rio Grande do Sul, o desmatamento no Norte do país teve um papel crítico, porque compromete a capacidade da floresta de regular o clima.
As árvores da Amazônia atuam como climatizadores. Elas absorvem a água do solo e liberam vapor na atmosfera. O desflorestamento, que já eliminou 20% do bioma original, compromete o processo de regulação climática e provoca mudanças no padrão de chuvas em regiões distantes, que trocam umidade com a floresta por meio da atmosfera.
Além disso, a perda de florestas como a Amazônia reduz o poder de absorção do carbono liberado pela queima de combustíveis fósseis, contribuindo para o aquecimento global.
E não é só o Sul que sente o desmatamento no Norte. Com menos vegetação, um ar mais quente tem passado da Amazônia para o Cerrado, induzindo ondas de calor que chegaram até o Pantanal. E, lá em 2014, uma seca extrema atingiu a região Sudeste porque os chamados “rios voadores” da Floresta Amazônica, que carregam água evaporada da região para irrigar outros pontos do país, foram desviados, devido às alterações de pressão na atmosfera provocadas pelas mudanças climáticas.
Os estudos mostram que se passarmos o ponto de não retorno da Amazônia e perdermos pelo menos 50% da Floresta, vai ter um fluxo muito menor de vapor d’água vindo da Amazônia. Porque pelo menos 30% diminui a chuva na Amazônia, em pelo menos 30% a chuva anual. Então vai ter muito menos evapotranspiração, e menos transporte de vapor d’água para o Cerrado. A estação seca vai crescer no Cerrado, pelo menos um mês, talvez até dois. Menos chuva no Cerrado, e ondas de calor muito maiores.
Ou seja, cenas apocalípticas. Mas não precisa ser o fim do mundo, pelo menos enquanto não chegamos ao ponto de não retorno.
Tem uma questão que o Carlos levantou no início do episódio, sobre a necessidade urgente de adaptação. Esse é um dos lados da moeda para evitar o fim do mundo.
O que é adaptação ou mitigação? Significa justamente tentar se preparar para a nova realidade de um mundo mais quente, que já nem bate à porta, mas escancara.
No Rio Grande do Sul, por exemplo, seria o caso de recriar cidades inteiras. Um estudo do Centro Nacional de Monitoramento de Alertas e Desastres (Cemaden), publicado em 2019, elencou 825 municípios com áreas de risco de deslizamentos e inundações no Brasil. Pelo menos 8 milhões de brasileiros moram em áreas de risco, e 2 milhões em áreas de altíssimo risco.
Com uma nova contagem usando o Censo de 2022, esse dado deve aumentar ainda mais.
Tem um gigantesco esforço de remover, talvez, milhões e milhões de brasileiros dessas áreas de altíssimo risco, também outros setores. De agricultura, pecuária e indústrias. Vimos no Rio Grande do Sul quantas indústrias foram afetadas principalmente pelas inundações.
Carlos também falou sobre usar a resiliência dos próprios biomas brasileiros para reduzir o impacto das mudanças climáticas, inclusive dos desastres naturais.
A natureza se adaptou por milhões de anos para resistir aos extremos. A própria Amazônia venceu centenas de inundações, secas e queimadas, com até 20 mil km² consumidos pelo fogo. Isso porque a floresta recicla a água, aumenta a chuva e a umidade, mantém a biodiversidade e diminui a erosão do solo, protegendo a si mesma.
Se restaurarmos os ecossistemas, cumprindo a meta de desmatamento zero até 2030, os ecossistemas teriam mais força para lutar contra o aquecimento e reduzir a intensidade de fenômenos naturais. Também é bom sinal que o Brasil lançou na COP28, em Dubai, o projeto Arco da Restauração Florestal. Financiado pelo BNDES, a proposta é restaurar 24 milhões de hectares em toda a parte degradada do sul-leste da Amazônia brasileira.
Uma mini restauração de biomas ainda poderia ser feita em escala reduzida. Carlos deu o exemplo de Singapura, onde o governo está plantando vegetação por todo lado, até em cima de prédios e casas, para regularizar o sistema de chuvas e diminuir a temperatura da cidade.
Entretanto, o mais importante mesmo é o outro lado da moeda — e a parte mais complicada: interromper, e depois reduzir, a escalada das temperaturas no planeta.
Temos que atuar para não deixar a temperatura chegar a 2-2,5ºC. Mesmo se a gente parar o desmatamento e a degradação, criar a restauração e a temperatura passar de 2,5ºC, a Amazônia não resiste. Ela passa do ponto de não retorno. Se a gente considerar o que os países escreveram, se comprometeram na COP27, no Egito, as metas de redução das emissões, chegaremos em 2050 com 2,4-2,6ºC mais quente. É quase um planeta impossível. Quase 70% das emissões dos gases de efeito estufa é a queima de combustíveis fósseis, petróleo, carvão e gás natural. Então esse é o principal fator do 1,5ºC que o planeta já atingiu. Globalmente, temos esse desafio, até 2050, zerar as emissões líquidas.
O Brasil é uma espécie de ponto fora da curva quando falamos em produção energética e emissões. No ano passado, 92% de nossa eletricidade foi renovável (hidrelétrica, eólica e solar). Já na China, por exemplo, 85% da geração de energia elétrica ainda vem da queima de fósseis.
Mesmo assim, grande parte de nossa frota de automóveis consome gasolina e diesel. O governo continua insistindo em começar a explorar petróleo na Foz do Rio Amazonas. A mentalidade geral ainda está baseada em combustíveis fósseis, e não existe plano para uma transição energética.
Evitar tragédias como a do Rio Grande do Sul, ou calamidades como a possível destruição da Amazônia, exige uma mudança imensa. E urgente.
Mas Carlos sempre dá um jeito de olhar para tudo isso de uma forma menos pessimista:
Eu, na minha faixa etária, nunca vou me esquecer que o Brasil teve duas grandes áreas que éramos líderes mundiais. Éramos líderes por muitas décadas em futebol. Não somos mais. E éramos líderes em samba. O samba foi criado aqui. Então agora vou propor um desafio: vamos ser o primeiro país de grandes emissões a zerar as emissões. Precisamos, sim. E vamos liderar.
Produção, roteiro e locução: Amanda Péchy
Edição sonora: Júlio César Geraldo
Revisão: Isabella Galante
Arte e montagem do site: Fabrício Vinhas
Direção: Marcos Colón