Kuarup: a celebração da vida e da resistência dos povos do Xingu
Na aldeia Yawalapiti, cerimônia de homenagem aos mortos se junta ao alerta contra ameaças aos rios, aos peixes e aos Indígenas da região


No Kuarup, a noite que antecede a pesca sagrada é marcada pelo ritual do fogo. Foto: Diego Baravelli/SUMAÚMA.

Chegar ao Território Indígena do Xingu é atravessar um limiar. Depois de dias de estrada, quando as plantações de soja parecem não ter fim, a Floresta se abre como um respiro. O ar muda – mais úmido, carregado do cheiro de terra molhada e folhas em decomposição. O verde não é mais monocórdio, mas múltiplo, vibrante. As primeiras casas xinguanas surgem ao longe, com seus tetos de palha e pátios circulares, como se desenhassem a geometria do coletivo na própria paisagem. É assim que se anuncia a Aldeia Yawalapiti, lar de cerca de 300 pessoas.
No coração do Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso, os meses de julho, agosto e setembro concentram um dos rituais fundamentais da região: o Kuarup. Dos 16 povos indígenas que habitam o Xingu, boa parte – o número exato pode mudar de um ano para outro –, especialmente os do Alto Xingu, realiza anualmente o Kuarup. Comumente descrito como uma homenagem aos mortos do ano anterior, o ritual é também uma celebração da vida, da coletividade e da resistência cultural de povos que há séculos lutam para manter vivas suas tradições.
O Kuarup reúne Indígenas do Alto Xingu durante vários dias em celebrações espalhadas pela região. SUMAÚMA e a revista Amazônia Latitude acompanharam o Kuarup na Aldeia Yawalapiti, do fim de julho ao início de agosto, junto a cinco etnias do Xingu.
Na Aldeia Yawalapiti, painéis solares e pequenas antenas de internet brilham entre as casas de palha. A chegada da energia elétrica trouxe televisores e geladeiras, diminuindo a dependência dos barulhentos geradores. E as conversas ao redor das fogueiras e nas reuniões comunitárias sempre retornam a uma mesma preocupação: o futuro da Floresta e das águas.
Nos últimos anos, os Yawalapiti têm acompanhado com angústia as barragens erguidas em fazendas de soja no entorno do território. “Essas represas fazem o Rio Tuatuari morrer”, alerta Tapi Yawalapiti, liderança da aldeia. “A água some, o peixe desaparece. E sem peixe, nossa comida, nossa cultura e nossa vida ficam ameaçadas.”

A pesca coletiva que antecede o encerramento do Kuarup alimenta a aldeia e os convidados. Foto_ Diego Baravelli/SUMAÚMA.
A preocupação não é nova. O cacique Aritana Yawalapiti, que morreu de covid-19 em agosto de 2020 e era uma importante liderança da região, já havia advertido sobre a pressão crescente sobre os rios do Xingu e o risco para o seu povo: “A nascente do rio não está bem. Já existe construção de barragem. Vão fazer outras barragens. Isso nos preocupa muito mesmo. […] O rio tem que ficar bom porque nós temos que ter peixe, e o peixe tem que fazer a piracema. Por isso nós estamos preocupados com o rio”. E dizia aos descendentes: “Está na responsabilidade de vocês, os jovens, cuidar da Floresta, do rio e da terra. Amanhã você pode estar presenteando o seu filho com essa terra, com essa Floresta, com esse rio. O teu neto vai precisar desse espaço”.
Além da ameaça das represas, invasores insistem em entrar no território. Piracumã Yawalapiti, guerreiro e líder político, é direto: “Eles vêm atrás de madeira, de ouro e até de pesca esportiva. Acham que nossa terra é vazia, que podem tirar dela o que quiserem. Mas aqui é nossa casa, é onde estão nossos mortos e nossos espíritos. Não vamos permitir”.
Ainda assim, a vida segue com alegria. O reencontro entre parentes e amigos é marcado por risos e histórias repetidas que, a cada nova versão, arrancam gargalhadas.

A dança sagrada xinguana do Kuarup representa uma homenagem e o fim do luto dos povos do Alto Xingu. Foto: Diego Baravelli/SUMAÚMA.
Quando a noite cai, o céu do Xingu se impõe como espetáculo. As estrelas parecem mais próximas, formando desenhos que a ciência ocidental não enxerga, mas que os Yawalapiti reconhecem há séculos. Entre eles, o da constelação da Onça-pintada. Ao redor do fogo, os anciãos contam histórias: a criação do mundo, as crenças do povo, a origem do Kuarup. O silêncio da Floresta, cortado apenas pelo som dos insetos e o estalar das chamas, faz com que cada palavra soe mais forte. Como a tradição é oral, detalhes mudam de narrador a narrador, mas a essência se mantém: o Kuarup é despedida e recomeço.
Durante o tempo do Kuarup, os Indígenas se preparam para o ritual principal, que acontece num dia só. O sol nasce sobre a praça central, onde troncos de madeira – os kuarup – foram fincados verticalmente, enfeitados com grafismos, penas e folhas verdes ainda úmidas de orvalho. Eles representam os mortos homenageados: líderes, pajés, guerreiros. As famílias se aproximam, choram, cantam, tocam os troncos como se tocassem os próprios ancestrais. A dor é visível, mas no choro há também alívio: o luto se transforma em continuidade.
O Kuarup pulsa. Os corpos se pintam de vermelho, preto e branco. Os cantos das mulheres ecoam longos e cadenciados, como ondas que conectam o presente ao passado. Então, a arena se abre para a luta de Huka-huka. Homens das diversas etnias convidadas se enfrentam em duelos rápidos, a poeira subindo do chão, os gritos atravessando a aldeia. Não é luta de destruição, mas de vitalidade, de afirmação da força coletiva.
O Kuarup é mais que uma cerimônia fúnebre. É celebração da vida e resistência. Em um tempo de rios ameaçados, florestas cobiçadas e invasores que buscam explorar madeira, ouro e até peixes, manter viva essa tradição é reafirmar uma identidade. Como resumiu Tapi Yawalapiti ao final do ritual: “O Kuarup é a alma do nosso povo. É quando mostramos ao mundo que, mesmo diante das dificuldades, seguimos de pé, dançando, lutando e lembrando de quem nos ensinou a ser quem somos”.

Indígenas lutam Huka-Huka, a arte marcial xinguana celebra a vitalidade e a força coletiva dos povos da região. Foto: Diego Baravelli/SUMAÚMA.

Vista aérea da aldeia Yawalapiti, no Parque do Xingu, às margens do rio Tuatuari. Foto: Diego Baravelli/SUMAÚMA.

Mulheres Yawalapiti preparam as vestimentas e os adornos usados no Kuarup. Foto: Diego Baravelli/SUMAÚMA.

No corpo do Indígena, detalhes da pintura xinguana. Foto: Diego Baravelli/SUMAÚMA.

Um grupo de Indígenas Yawalapitis busca na Floresta a árvore sagrada que simboliza o Kuarup. Foto: Diego Baravelli/SUMAÚMA.

Indígenas do povo Yawalapiti durante a pesca sagrada que antecede o rito final do Kuarup. Foto: Diego Baravelli/SUMAÚMA.

Marcar o corpo com a arranhadeira, feita de cabaça e de dentes do peixe Cachorra, é uma prática para fortalecer os guerreiros. Foto: Diego Baravelli/SUMAÚMA.

O Kuarup, nome dado ao tronco que representa os mortos, aqui aparece decorado para o ritual. Foto: Diego Baravelli/SUMAÚMA.

Flautistas saem de uma casa xinguana para se apresentar no ritual do Kuarup. Foto: Diego Baravelli/SUMAÚMA.

Depois de pôr os troncos sagrados em memória aos mortos, familiares choram os que se foram. Foto: Diego Baravelli/SUMAÚMA.

Cantores se apresentam no ritual de despedida dos mortos na aldeia Yawalapiti. Foto: Diego Baravelli/SUMAÚMA.

Grupo de convidados chega para a luta Huka-huka, que encerra o ritual do Kuarup. Foto: Diego Baravelli/SUMAÚMA.

Momentos da luta corporal Huka-Huka, a arte marcial xinguana, nas festividades do Kuarup. Foto: Diego Baravelli/SUMAÚMA.

A dança sagrada do Kuarup, ritual que celebra os mortos e encerra o luto dos povos do Alto Xingu. Foto: Diego Baravelli/SUMAÚMA.
Esta fotogaleria foi produzida e publicada em parceria com a SUMAÚMA.
Diego Baravelli é fotógrafo profissional há 15 anos e formado em Geografia, unindo estética e compromisso social em sua produção. Teve trabalhos publicados em veículos como National Geographic, The Wall Street Journal, El País e O Globo, e já colaborou com instituições como MEC, UnB e UFT. Documenta também o trabalho de organizações como Médicos Sem Fronteiras, Greenpeace, ACNUR e World Animal Protection, reafirmando a fotografia como instrumento de transformação social e ambiental
Texto e fotos: Diego Baravelli (SUMAÚMA)
Edição: Marcos Colón, Juliana Carvalho (Amazônia Latitude) e Fernanda da Escóssia (SUMAÚMA)
Edição de fotografia: Lela Beltrão (SUMAÚMA)
Edição de arte: Cacao Sousa (SUMAÚMA)
Checagem: Caroline Farah (SUMAÚMA)
Revisão ortográfica: Valquíria Della Pozza (SUMAÚMA)
Montagem da página e acabamento: Alice Palmeira (Amazônia Latitude)
Coordenação de fluxo de trabalho editorial: Viviane Zandonadi (SUMAÚMA)
Editora-chefa: Talita Bedinelli (SUMAÚMA)
Direção de Redação: Marcos Colón (Amazônia Latitude) e Eliane Brum (SUMAÚMA)