Em plena Região Metropolitana de Belém, Quilombo do Abacatal mostra ancestralidade negra na Amazônia
Território onde vivem centenas de descendentes de escravizados luta por acesso a direitos básicos como educação, saúde, transporte e proteção ao meio ambiente
Caminho de Pedras no Quilombo do Abacatal. Foto: Quilombo do Abacatal
Santana Barbosa anda sobre um caminho de pedras que foi construído pelos seus antepassados há mais de três séculos. Ela é um dos mais de 500 moradores do Quilombo do Abacatal, uma comunidade localizada em plena Região Metropolitana de Belém, cidade sede da COP 30, que será realizada em 2025 na Amazônia.
Eu sinto orgulho de trazer esse sangue quilombola nas minhas veias. A escravidão foi abolida do Brasil, mas a gente vê traços dela até hoje. Quando se é preto, tudo se torna mais difícil”
A área foi ocupada por descendentes de africanos escravizados ainda durante o período colonial no Brasil e, hoje, é símbolo de resistência. Mesmo depois de 135 anos desde a abolição da escravidão, remanescentes quilombolas como os moradores do Abacatal ainda sentem os impactos da forma violenta como seus ancestrais foram arrancados do continente africano e trazidos para o outro lado do atlântico.
O Quilombo do Abacatal fica localizado às margens do Igarapé Uriboquinha, um dos braços do Rio Guamá. A comunidade está cerca de 12 quilômetros distante da sede do município de Ananindeua, na Região Metropolitana da capital paraense, e preserva a cultura, os hábitos e a identidade de um povoado que surgiu quando o Brasil não passava de uma colônia de Portugal.
O local pertencia ao conde Coma Mello que deixou a área como herança para três das filhas que teve com a escrava Olímpia. As irmãs conhecidas como três Marias eram: Maria do Ó Rosa Moraes, Maria Filismina Barbosa e Maria Margarida Rodrigues da Costa. A primeira delas teria nascido em 1790.
Vários anos depois, um homem chamado de Justino dos Santos teria recebido o título das terras após viver anos em “relação familiar” com moradores da área. Ele vendeu a propriedade para uma empresa privada que revendeu as terras para uma segunda instituição, a qual as repassou a uma terceira empresa, gerando uma série de conflitos que duraram décadas. Até mesmo o cemítério São Sebastião das famílias de Abacatal chegou a ficar dentro das terras de um dos empreendimentos.
Finalmente, em 13 de maio de 1999, o Abacatal teve suas terras regularizadas, mas a ára foi reduzida de mais de 2 mil hectares para pouco mais de 300.
Para Maria Santana, a história do início do Quilombo se mistura com a história do “Caminho das Pedras”. Foi lá que a comunidade nasceu. O local servia como uma espécie de via que ligava a margem do Igarapé Uriboquinha à sede da fazenda do Conde Coma de Melo, o “senhor das terras”.
Durante o inverno, o terreno ficava bastante alagado. Para não sujar os pés, o conde mandou construir um corredor de pedras brutas, que apenas ele poderia usar. Ou seja: os escravizados que viviam no Abacatal permaneceram pisando na lama.
Mesmo que a construção do caminho de pedras tenha a mancha de sangue de várias pessoas que trabalharam duro para construí-lo, ele é uma parte importante da história da comunidade do Abacatal e da Amazônia. “Esse caminho, ele mesmo conta a nossa história. Para diquer somos negros, somos gente. Nós vivemos invisíveis por tanto tempo e até hoje estamos invisíveis”, defende Santana Barbosa.
Estrada que une e separa
O caminho de pedras que se tornou símbolo de escravidão ainda significa resistência e luta para o povo quilombola que habita a região. Mais de 300 anos após o corredor de pedras ser construído e mesmo depois da titulação das terras passar aos quilombolas, em 1999, a principal estrada que liga a área até os centros urbanos próximos, a Estrada do Abacatal, nunca foi pavimentada. Durante o verão, a via fica tomada por buracos e poeira. Enquanto no inverno Amazônico, a trafegabilidade da estrada cai drasticamente por conta do lamaçal que se forma na área.
Os moradores dizem que já procuraram a Prefeitura de Ananindeua diversas vezes pedindo avanços na acessibilidade e tráfego na área. Sem resposta do poder público,são eles que precisam colocar a mão na massa para resolver o problema.
A Jéssica Teixeira, de 32 anos, conhece muito bem essa realidade. Ela conta que atividades que seriam consideradas básicas se tornam mais complicadas no Quilombo. A ausência da estrada prejudica o ir e vir dos moradores, tornando mais caras tarefas simples como ir ao supermercado, comprar um móvel novo ou receber uma carta. Uma ausência cotidiana para a comunidade que precisa contratar serviços de frete para poder receber mercadores de qualquer natureza.
Se a gente tem a necessidade de fazer supermercado, a despesa acaba se tornando muito grande por conta do frete. Se a gente pretende comprar qualquer móvel ou eletrodoméstico para dentro de nossas casas, a primeira pergunta que os vendedores fazem é sobre o endereço. E quando a gente menciona que é no Abacatal, já é um ponto negativo. Nós temos muita dificuldade para receber entregas, encomendas. A gente não recebe cartas do correio, nenhum tipo de correspondência”.
O atendimento médico para estes moradores da região metropolitana também é prejudicado pelas condições da estrada. Até mesmo serviços de urgência são barrados pela má qualidade da via.
“Já tiveram diversos casos de necessidade de ambulância e a gente não conseguiu [uma]. Nós ligamos pro 192, 190, tudo. E não conseguimos. Em um dos casos, a ambulância chegou, mas a gente teve que ir no meio estrada para encontrar a ambulância, porque não tinha como ela chegar até aqui. A estrada também prejudica os atendimentos no postinho que tem dentro da comunidade. Por diversas vezes a gente chega no posto e avisam que não conseguiram transporte para trazer o médico ou então que o carro dele não passou na estrada”, relata Jéssica.
Amazônia Quilombola
Segundo dados do Censo 2022, 135.033 quilombolas vivem no Pará. É a quarta maior população quilombola do Brasil, ficando atrás apenas de Minas Gerais (135.310), Maranhão (269.074) e Bahia (397.059). Para o pesquisadorAiala Colares, pós-doutor em geografia quilombola, mesmo após o fim da escravidão, as comunidades ainda vivem um processo de invisibilização.
“Embora algumas comunidades quilombolas tenham a titulação do território ou a certificação da sua existência, isso, em hipótese alguma, representou garantia de acesso básico a serviços de saúde, educação, saneamento básico e de habitação”, conta o pesquisador.
O acesso à educação ainda é um desafio na comunidade. O quilombo conta apenas com a Escola Municipal Manoel Gregório Filho, que oferta aulas até o ensino fundamental, etapa onde ainda estão os três filhos pequenos da Edinalva Cardoso.
“O ensino na escola não é de todo ruim, mas poderia melhorar. Dos meus quatro filhos, apenas três estudam lá, porque são crianças. [Mas] o meu filho mais velho precisa ir até a sede da cidade mais próxima para dar continuidade aos estudos. Então, incluir escolas com ensino médio dentro do território facilitaria a vida de muitos jovens”, defende a moradora.
Em junho, a escola municipal chegou a ser ocupada pelos moradores do quilombo que pediam mais professores no local. O espaço só foi liberado depois que a gestão municipal atendeu às exigências dos manifestantes e prometeu tomar medidas para evitar a falta de professores, como contratar docentes da própria comunidade.
No Quilombo, o verbo “resistir” perpassa diferentes gerações. Conjugá-lo foi uma das primeiras lições que o Arthur Cardoso, de 17 anos, aprendeu.
Pra mim, desistir não é uma opção. E jamais será. Desistir de uma luta que os meus antepassados lutaram para que a gente estivesse aqui hoje, pisando nesse solo [não é possível]. São as pessoas que me antecederam que me fazem criar coragem, levantar a cabeça e sair diariamente do meu território e continuar lutando por ele. É isso que me faz crer que o Abacatal vai viver em paz um dia”
Arthur não é uma exceção. No Abacatal, lutar pelo básico é questão de sobrevivência. Proteger a natureza também.
“É defendendo a natureza, defendendo este território enquanto um corpo político, que a gente tem avançado em políticas públicas para nosso território. A nossa titulação é de 1999. Foi daí que iniciou uma grande luta para a efetivação de políticas públicas. Nunca foi fácil, mas defender o Abacatal, enquanto natureza e ancestralidade, é muito importante”, conta Vanuza Cardoso, líder espiritual do quilombo.
Em plena região metropolitana, a comunidade quilombola também se preocupa com a aproximação de empreendimentos nos limites das terras ancestrais. Segundo os moradores, uma unidade habitacional do Governo Federal despeja dejetos do esgoto em um igarapé que é braço do igarapé Uriboquinha, o rio que banha o quilombo. Além de uma área de lazer, o igarapé serve como fonte de alimento para muitas famílias. É lá que eles pescam os peixes que se alimentam, como explica Vanuza Cardoso.
Para nós, o meio ambiente é tudo. A natureza nos oferece tudo aquilo que precisamos. Então, defender o meio ambiente, é defender o território e a vida”
Resistência, cultura e protesto
E a resistência não vem apenas em forma de protesto. Desde 2016, o quilombo reivindica os seus direitos através da poesia e da música, expressas nas batidas da banda Toró-Açu. O grupo nasceu para propagar, por meio de canções, a origem e as heranças culturais do Quilombo Abacatal.
“O Toró-Açu é uma banda que carrega vários sentimentos, uma ferramenta de luta principalmente para dar visibilidade a todas as violência, violação dos direitos humanos e racismo ambiental que acontece no território e [mostrar] como diariamente os moradores do Abacatal, infelizmente, precisam estar em luta”, conta Elis Tarcila, maraqueira da banda.
Em todas as canções, letras que contam a história da comunidade quilombola. As composições começam com pesquisas e conversas com os anciãos da comunidade. Cada aprendizado é, então, registrado e ritmado, perpetuando, assim, a memória e a identidade do quilombo.
Sinto muito orgulho de poder contribuir com pessoas que admiro e acompanho há uns anos e poder, também, estar contribuindo para [a construção de ] uma cena musical paraense riquíssima, cantando verdades e extravasando dores nesta Amazônia que está em chamas e ameaçada”.
Independente qual seja a forma de reivindicação, lutar e resistir está no sangue de quem nasceu na comunidade. Não por vontade própria, mas sim por necessidade.
“Parece que eles não nos vêem como gente. E nós só pedimos o básico: uma estrada melhor, educação eficaz, saúde. Mas, nós somos sempre ignorados”, lamenta Vanuza Cardoso.
Texto: Elielson Almeida e Evely Costa
Edição e Revisão: Glauce Monteiro
Montagem de Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón