João de Jesus Paes Loureiro

Professor de Estética, Filosofia da Arte e Cultura Amazônica, na Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Teoria da Literatura e Semiótica pela PUC/Unicamp, e Doutor em Sociologia da Cultura pela Sorbonne Paris, na França.

Poema de Paes Loureiro: Macunaima vê o Brasil

Uma corbélia de versos em memória de Marielle

Uirapuru-verdadeiro, ave amazônica - poema Macunaíma
Uirapuru-verdadeiro. Foto: Lindoulfo Souto/Wikimedia Commons
Uirapuru-verdadeiro, ave amazônica - poema Macunaíma

Uirapuru-verdadeiro. Foto: Lindoulfo Souto/Wikimedia Commons.

O Uirapuru Narrador,
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤmeu amigo,
pássaro da Amazônia,
pousa no jardim da janela do apartamento.
Traz urgente mensagem de Macunaíma,
habitante das encantarias
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤda poética do imaginário
da cultura amazônica.
Herói da metamorfose lúdica.
Perito no livre jogo entre astúcia e desejo.
Macunaíma confiara-lhe que me alertasse
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤde uma ocultada verdade.
Que me falasse.
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤUrgentemente.
— Onde foi essa conversa que tiveram?
Responde-me o Uirapuru narrador.
— Macunaíma
ㅤㅤㅤㅤㅤfugindo às chuvas
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤchuvas
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤchuvas
alagando
ㅤㅤㅤㅤinundando
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤrecobrindo o chão e as casas,
subira o Monte Roraima até ao cume
para ver o panorama que no Brasil se esconde.

— E qual foi esse País desconhecido
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤque ele flagrou escondido?
O Uirapuru Narrador
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤfazendo um voo a galope
vem pousar na tampa do meu laptop.
— Poeta.
Macunaíma pediu-me que lhe alertasse
a não temer as chuvas que das nuvens caem.
Mesmo com as atribulações possíveis.
São dos ciclos vitais das estações.
Alimentam ecologias e gerações futuras.
Que devemos temer as tempestades
que nascem inversamente
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤdo chão para as alturas.
Da terra para as nuvens.
Essas devem ser temidas.
Elas nascem de fontes escondidas
em perícias, mandatos e decretos,
nas mortes de encomenda, nas perdidas
pistas que têm pegadas apagadas,
nos gabinetes de ódio, nos secretos
becos e bancos onde em segredo dormem
não mais as trinta bíblicas moedas,
mas os milhões de minérios e dinheiros
enquanto indígenas morrem
quilombolas morrem
camponesas, camponeses morrem
desnutridas criancinhas morrem
todos afogados nessas tempestades
que sobem da terra nesse dilúvio inverso
do Hades para as nuvens.

Inversas tempestades a subir
cheias de raios desonestos
de trovoadas corruptas
de relâmpagos de mentiras
de raios assassinos
de gestos antiéticos
de políticas corrompidas
de linguagem degradada
de rejeitos que envenenam as águas
de palavras de ordem da mentira.
Tempestades não do céu e sim do Hades.
Vulcão do inferno
afogando o povo brasileiro.
Continuando a afogar sem piedade
o meu povo Yanomami.
O meu amado povo Yanomami.

Um silêncio amortalhou nossa voz e gorjeios.
Ergo a mão esquerda.
O Uirapuru Narrador pousa no indicador.
Respondo-lhe:
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤ— Meu canoro mensageiro.
Diz ao Macunaíma,
que assim como os pássaros
sou um poeta mensageiro da poesia.
Vou lançar no internético mundo
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤo seu apelo.
Que também é meu.
Mesmo que pensem que o poema é um nada.
Porém, para nós,
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤo poema é um nada que também é tudo.
Um finito contendo o infinito.
Que antes de nós,
os Yanomami que te criaram
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤna poética do imaginário
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤjá pensavam
que só também pela poesia buscaremos
essa terra sem males que queremos.
Essa terra sem males pela qual sempre lutaram.
Essa terra sem males pela qual sempre lutamos.
Essa terra sem males pela qual sempre lutaremos

João de Jesus Paes Loureiro é um escritor, poeta e professor universitário brasileiro. Foi professor de Estética, História da Arte e Cultura Amazônica na Universidade Federal do Pará de 1978 a 2009. Mestre em Teoria da Literatura (PUC-SP), doutor em Sociologia da Cultura (Université de Paris IV). Autor de Cultura amazônica: Uma poética do imaginário e Açaí – Cacho de signos.

Edição: Alice Palmeira
Revisão:
 Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

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