Professores reinventam a educação indígena frente às mudanças climáticas
A chuva, o rio seco, a distância e o sol quente são motivos que impedem os alunos de estar na escola
Alunos indígenas Nukini navegam por rio seco em Mâncio Lima. Foto: Hellen Lirtêz
O ano de 2023 foi marcado por grandes mudanças climáticas das quais todos sentimos, mas não da mesma forma. Essas oscilações também refletiram na educação indígena.
O racismo climático tem sido uma pauta cada vez mais comum. As altas temperaturas, secas extremas e inundações afetam especialmente populações tradicionais, quilombolas e ribeirinhas.
Alunos e professores indígenas, por exemplo, necessitam e dependem dos rios para acessar a escola que, muitas vezes, fica a várias horas de barco.
No município mais ocidental do Brasil, em Mâncio Lima (AC), os alunos realizam longas caminhadas mata adentro para chegarem à escola devido à seca. As chuvas não enchem o rio suficientemente no verão, impossibilitando a passagem dos barcos.
A professora Eliana Nukini leciona há alguns anos na Escola Indígena Pedro Antônio de Oliveira, localizada na Aldeia Isã República. Ela conta que acompanha de perto as dificuldades enfrentadas pelos estudantes, especialmente os que possuem problemas de saúde e precisam caminhar por mais de duas horas.
“Eles já chegam muito cansados e às vezes até cochilam na sala, entendeu? Cansados mesmo de caminhar. Isso afeta muito o aprendizado deles, porque já chegam estressados, com dor de cabeça”, conta Eliana.
A educadora relata que a estratégia para driblar a situação é realizar relatórios com os alunos, para que possam justificar todos os fatores que os impedem de estar na escola. A chuva, o rio seco, a distância, o sol quente. Assim, ela pode direcionar os trabalhos para evitar reprovações.
A professora ainda faz um comparativo com a realidade da educação urbana no município em que estratégias são pensadas para que os estudantes estejam na escola. Já nas aldeias, não podem contar com o mesmo investimento.
Ney Nukini (15) é estudante da Escola Indígena Pedro Antônio de Oliveira e é um dos vários alunos que sofrem com o impacto das mudanças climáticas em seus estudos. O Rio Moa foi um dos afluentes atingidos pela grande seca na Amazônia, ficando intrafegável em diversos trechos.
Em entrevista à Amazônia Latitude, ele explica um pouco dos desafios que enfrenta para ser um aluno presente: “Minha dificuldade é porque tenho que caminhar muito, quase uma hora. Se eu correr, gasto só 45 minutos. A farda, eu só tenho duas. Às vezes, eu tenho que ir com uma roupa normal mesmo. E na viagem, dá muita sede, porque é longe. Tem só um igarapé. Tem que carregar água, e eu fico muito suado.”
Duas realidades
Rasu Inu Bake Huni Kuin é professor na Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental e Médio Huni Kuin Tuwe, localizada no município de Feijó, no alto Envira, na aldeia Nova Olinda. Além disso, ele cursa o doutorado em Linguagens e Identidades (PPGLI) na Universidade Federal do Acre (Ufac). Sua rotina é dividida entre o interior e a capital, como pesquisador e educador.
Em suas andanças, ele percebeu que o rio está cada dia mais seco, o que dificulta a locomoção por barco. E quando chega o inverno, o rio enche e alaga os arredores da comunidade. Isso dificulta o acesso das crianças à escola devido às lamas. No verão, a pouca água gera uma dificuldade para o barqueiro, que não consegue chegar no horário certo.
Também falta estrutura para lecionar, materiais específicos e até merenda de qualidade para motivar os alunos a estudarem.
“As mudanças climáticas têm afetado as comunidades indígenas, não só as cidades que sofrem e que têm consequências. As comunidades indígenas também sentem o impacto dessa mudança. Por exemplo, minha comunidade era riquíssima em água potável. Hoje, ela sofre com essa questão. A gente já não tem mais fontes que têm água potável. Nossas fontes foram comprometidas”, explica.
Apesar da formação em Artes, Rasu trabalha com três disciplinas: Artes, Educação Física e Ciência. Isso porque educadores na Secretaria de Educação do estado são escassos.
Em 2021, apenas 428 dos mais de 483 mil professores de Ensino Superior eram indígenas, de acordo com o Censo da Educação Superior.
“Na escola não indígena você tem um data show, a linha de internet… Recursos para facilitar a compreensão dos aprendizes. Já na comunidade indígena, você não tem esses recursos. Isso dificulta a transmissão de alguns conteúdos. Então são inúmeros desafios”, conta Rasu.
A Educação Escolar Indígena, segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9394 deve ter um tratamento diferenciado das demais instituições e dos sistemas de ensino. Isso é enfatizado pela prática bilíngue e intercultural. No entanto, o professor considera que é preciso ir além, pois as salas de aula deveriam oferecer condições mínimas, como iluminação e climatização, para que os alunos indígenas tenham as mesmas oportunidades que os não indígenas da cidade.
“Sei que nos documentos a educação é um direito de todos, que deve ser igual para todos. Mas essa igualdade não acontece, porque os recursos que existem nas escolas de zona urbana não existem nas escolas indígenas”, relata.
Educação indígena para todos
Rasu é o primeiro indígena do Brasil a integrar um mestrado de Artes Cênicas. Tal feito é motivo de grande orgulho, mas também preocupação. Indígenas universitários representam apenas 3,3% dos mais de 1,4 milhão de pessoas que se identificam como indígenas no País, considerando os dados parciais do Censo Demográfico de 2022.
“São poucos os que conseguem se destacar, porque só ao se manter fora da sua comunidade já é um custo muito alto. Além do desafio de conhecimento que você vai ter que enfrentar, existe o uso da tecnologia para se adaptar num ambiente totalmente diferente, capitalista e preconceituoso”, reflete.
O pesquisador ainda conta que para mais indígenas poderem acessar esses espaços, o planejamento do país deve considerar as comunidades indígenas.
A forma como esse conhecimento tradicional tem sido pensado é complexo, na perspectiva de Rasu, uma vez que a língua do próprio povo é estudada como estrangeira, mesmo sendo a língua de origem. Isso dificulta a entrada dos estudantes nas universidades por meio do Enem: “Os conhecimentos que a gente tem não são certificados. O MEC não certifica pelos conhecimentos tradicionais dos alunos. Portanto, isso não vai servir para o currículo deles. Quando o estudante vai fazer uma prova do Enem, não vai precisar desses conhecimentos, dos conhecimentos tradicionais do seu povo.”
Além disso, o professor ressalta que a educação índigena deve ser pensada a partir da base, e não por pessoas que não conhecem a realidade de cada comunidade indígena. É necessário considerar o contexto social e as especificidades.
Produção: Hellen Lirtêz
Revisão: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón