Sandra Godinho

Paulista radicada no Amazonas, é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB), e tem 10 livros publicados.

Fora dos Eixos

Árvore e terra Fora dos Eixos
Foto: Bertrand Gabioud/Unsplash
Árvore e terra Fora dos Eixos

Foto: Bertrand Gabioud/Unsplash

— O amigo ouviu que a mata está queimando pro norte?

— Desde que não acabe com a lavoura de cana! — disse Cosme, ao balcão, com o beiço pendurado no copo de cachaça, inconformado com o fato de um trabalhador como ele ter perdido o emprego, a casa e a vergonha. Há tanto tempo vivia nas ruas e fora do mundo, que já nem sabia das novidades.

— O amigo já tá fora dos eixos? — o atendente arriscou.

— Não sou cabra de se dobrar fácil.

Duas horas se passaram. Cosme e o atendente se debulharam em conversas sobre queimadas e destemperos do clima até o homem criar ânimo para levar o material reciclado, que aguardava na carroça, para o depósito da cidade. Não que ele acreditasse em preservação do ambiente, mas fora o único trabalho que conseguira arranjar. Garrafas de vidro, latinhas de alumínio, gravetos, pedaços de toras e um tanto ainda a percorrer até chegar ao destino, mas Cosme se deixou ficar naquele ambiente penumbroso de garrafas ardilosas.

Era uma boa pernada em direção ao depósito, e outra tanta de volta ao viaduto, onde morava com a mulher. A distância requeria a coragem que só um copo de cana podia lhe dar. Ou dois, para que a danada não escapasse. Ou três, para não haver desculpa ou erro. O homem descansou o desespero no copo, bebeu as três doses, e um pouco mais. Depois, arregaçou as forças das pernas, já meio bambas, e se pôs a caminho, borrando a borda do olho com poeira, fumaça e fuligem para ver só o que lhe apetecia, o restante dos objetos rejeitados pelas ruas, e não a réstia de homens esfarrapados que, como ele, estavam à caça do que sobreviver. Assim que chegou debaixo do viaduto que lhe servia de teto, soltou a novidade, um tanto enviesada pelos copos, para a companheira: a Terra estava fora dos eixos.

— Como assim? — Flora perguntou, querendo saber dos detalhes.

— Ninguém sabe ao certo — Cosme respondeu cambaleante, forcejando a voz para a firmeza se impor e evitar o tombo.

— Está tudo fora dos eixos, Flora. A Terra está revoltada.

Cosme disse que os polos foram os primeiros a se rebelar, pesados de tanta chacota e descaso dos dirigentes que negociavam a esmo os desmandos do tempo. Ninguém os viu deslizarem, fizeram tudo na surdina.

— Como assim, homem? — a mulher se exasperou.

— Chisparam-se com tanta chateação, devem ter se sentido diminuídos. E, diminuídos, deslocaram-se do centro, num desvio de rumo e de rotação. Ficaram como nós, rodando a esmo.

A mulher matutava, tentando compreender.

— A Terra ainda está em movimento ou anda à deriva? Não está girando bem? O caso é grave? Explique-se, homem!

— Parece que perdeu o prumo — o marido arrematou.

— Como aconteceu, Cosme?

O marido, metido a demonstrar sabenças, fingiu entendimento:

— Sabe-se lá. Parece que um país acabou com a água de seus subterrâneos de tanto que os sugou; outro surrupiou os minérios das entranhas, e ainda outro forrou o solo com tanto concreto que acabou desequilibrando as cinzentas massas.

— Não acredito.

— Acredite, mulher, disseram que o desvario começou com a revolta do clima. Os rios se esvaziaram de tanta tristeza. A seca, para os consolar, cobriu-os com seu calor, mas parece que exagerou na dose. As geleiras, para equilibrar tão caloroso abraço, resolveram se despejar no mar, que se avolumou e acabou avançando às terras, engolfando os gemidos dos que viviam às margens. Tanta mudança de massa acabou lhes desbaratando o juízo. O fato é que a Terra já não é mais digna de confiança. Quem diria que um simples desequilíbrio de abraço iria destapar tamanha desgraça, não é? É o que dá tanto descostume de afeto.

E emendou:

— É por isso que nunca me gastei com abraços. Afeição demais faz estrago.

E, de desafeto, a mulher bem entendia. Passou anos vivendo ao lado da secura do marido. Flora afastou a tristeza e deitou novo pensamento com a premonição na cabeça. O sertão vai virar mar. Lembrou-se da antiga letra da música. Nunca imaginou que a promessa das águas, de alagar as várzeas e os povoados, iria se cumprir afinal. Eram chegados os dias de aflorar as cicatrizes da Terra, que agora cobrava os desmandos e os desandos dos homens sobre ela. A profecia ia se concretizar; aloucada, a Terra dava um basta.

Tanto Flora passarinhou essas ideias pelo juízo, que a ameaça de um fim de mundo acabou mordendo os sentidos, comendo seus sonhos à noite, mais que a fome, mais que as tonturas que disputavam seus membros, mais que os nervos tensos pelo nada ter, mais que a penúria de quem vive de restos. Tanto temor acabou causando um esvaziamento da alma. Um dia, ela alvoreceu radiante e disse ao companheiro:

— Pois se a Terra se amalucar de vez, eu quero ser árvore.

— Como assim, mulher? Endoidou você também?

— Nunca falei tão sério. Quero pesar só o que preciso. Quero escutar somente o necessário sem tombar em desespero. Quero ramificar só o que puder aguentar.

— Ramificar? Mas você nem pode ter filhos.

— Por isso mesmo. Como árvore, vou seguir meu ofício de ser semente. Quero plantar e povoar. No caso, repovoar. E ninguém há de me desplantar desta vez. Renasço com o fim do mundo.

O marido encasquetou com o desejo destrambelhado da mulher. Buscou coragem em muitos copos de cana, mas tanto esforço não surtiu efeito. O caso era mais grave do que pensava. A mulher ousava na empostação e na empolação. Tanto pavoneamento da companheira exigia atitude. Cosme mudou de manobra, parou de beber para melhor pensar, enquanto ouvia, encenava uma paciência que não tinha, com a mulher a delirar seu desejo naquele leito raso, feito de jornal e papelão:

— Estarei sempre a olhar os céus, a cabeça nas nuvens, sentindo o perfume das plantas em minhas folhas, respirando o ar puro. Meus galhos abraçarão outras árvores, em genuína demonstração de afeto, atraindo abelhas para a multiplicação das sementes e, assim, criarei uma linhagem perfeita de seres.

Ao pensar nisso, e talvez inspirada por alguma deusa, ela exagerou:

— E, quando me sentir sozinha, atrairei os pássaros para que me façam companhia. Que eles me alegrem com seu canto. Que me distraiam com seu saltitar. Que me façam sonhar com o cicio de asas alinhavando o céu em voos rasantes. Eles me trarão notícias das distantes terras, já que não as poderei alcançar com minha visão, mesmo com minha copa verdejante quase tocando as alturas. Estarei sempre florida, vestida em diversos tons de verde, exuberante em grandeza e graça. E nunca tombarei, nem pelos homens, nem pelas pragas, porque o fim do mundo já teria se dado. Tinha chegado o tempo de renascer — a mulher desabafou, alfinetando uma raiva encruada de tempos.

O marido se recolhia; aos seus ouvidos, o destempero soava como um delírio. Com a insistência da esposa, Cosme partiu-se em cacos, sem poder recompor-se, sem poder inteirar-se, tão abandonado estava, a mulher já em antecipação de passo. Flora sozinhava-se, em total desapego. Raiz, há tempos não tinham, acostumaram-se a perambular pelas margens, sem madeira suficiente para suspender as paredes e, agora, a mulher ia à forra, com um desejo desaforado de ser tronco, toco e galhos. Mas cabeça ele ainda tinha e não queria nela galho de qualquer espécie. Alheia às ideias do companheiro e já sem ouvi-lo, Flora se armava com uma ansiedade inaudita, perguntando a cada noite:

— Como vai a maluquice da Terra?

— Dizem que chegaremos ao final dos tempos.

— Que seja logo.

— Que seja lento.

— Que seja em lava, para fazer arder todos que a consumiram.

— Cada louco com sua lama.

— Cada louco com sua alma.

Cosme achou que a mulher estava tão ruim da bola quanto a Terra. Onde já se viu tanta ousadia? Como se atrevia a retrucar? Isso nunca havia ocorrido. Era certo que tinha gastado tudo que a mulher poupou em negócios infelizes, como também era certo que a fez demitir-se do emprego, como também era certo que não conseguiu manter o seu, mas ele não merecia isso.

Por fim, deu de ombros e não deu mais trela àquele discurso desarvorado de quem tinha o miolo mole. Se já lhe faltava telha, agora lhe faltava também o parafuso, que a tristeza fazia isso com uma pessoa, era só uma questão de assombro.

Certa noite, ouviu a mulher murmurejar algo indistinto, um som semelhante ao de “Gaia”. Nem tomou conhecimento, porque quem trabalha no pesado durante o dia quer descanso sagrado à noite. E, assim, com o sono tão orquestrado ao sonho, Flora adormeceu em prece à deusa.

No dia seguinte, Cosme perdeu o rumo da mulher, procurou-a sob o viaduto, sob as pontes, nos becos, mas não descobriu seu paradeiro. Gritou, mas sua voz foi abafada pelos ruídos dos carros. Exasperou-se, perdeu-se nas proximidades, maldizendo as preces e a ingrata precipitação da companheira que se dispôs a desaparecer de suas vistas sem nem ao menos uma despedida pelos anos de desdicação. O desamparo da carroça, vasculhando em vadiagem aqui e ali, o incomodou.

Os baldios terrenos também o inquietavam, assim como o vazio do leito, mas sua busca foi infrutífera. Depois de tanto andar e outro tanto a resmungar com impróprios xingamentos, Cosme deu atenção à imensa árvore plantada à sua frente, tão frondosa de galhos que se perguntou como se havia feito da noite para o dia. Sim, porque nunca nela havia reparado. Despido de bons sentimentos, o homem deixou-se engolir pela sombra majestosa, cansado pelo esforço, sentindo as folhas balançarem no ar, a árvore em dança de alegria. Foi quando ele atinou: um disjunte amoroso podia ser pior que o final dos tempos. Ou não seria uma separação o próprio fim do mundo?

Tanto rezou em desespero, pedindo que Gaia (palavra que lhe pareceu sem sentido) viesse em seu auxílio, que a deusa acabou aparecendo em seu sonho. Ele abismou-se. Alguém ainda o ouvia, mesmo assim, maltrapilho? Alegrou-se, deu graças, depois despejou à deusa os destemperos, recriminando o desaforo da companheira.

Gaia, etérea e sem dar bons ouvidos ao desafortunado, disse nada poder fazer, pois seu desejo não era puro de coração. Não era de viço que se tratava, mas de vigor de homem reclamando possessão. Ademais, ela tratava somente dos nobres assuntos. Os relativos aos subterrâneos, ele que se entendesse com Tártaro, que foi chamado às pressas para peitar um Cosme arredio e muito arreliado de modos. Tártaro, para se ver livre do estorvo, resolveu atender ao seu pedido. Bastava Cosme se lembrar do que mais importava na vida a dois para ficar próximo da sua mulher. Cosme forcejou o pensamento, buscou a lembrança mais premente e, então uma ideia saltou à memória. Que assim fosse, Tártaro disse ao vê-lo decidido. Em seguida, o deus do caos soltou o encanto para que a magia se fizesse.

Cosme, agora transformado em grãos de terra argilosa, forrava o chão da árvore que um dia foi Flora. Satisfeito com a transformação, iria permitir que as raízes da mulher se entranhassem nele para agrilhoá-la para sempre ao seu lado. Era ele o marido, aquele que sempre a obrigou às obediências. Nunca permitiria que ela se fosse, assim tão aflorada e dada aos ares. Mesmo transformado em chão, iria prendê-la ao raso e ao rastejo, tão firme quanto uma corrente de ferro. Foi quando ouviu uma risada pairando sobre ele.

Nunca poderia imaginar a maluquice de Tártaro, que se divertia, porque o fez terra com uma só intenção: de ser pisado pelos superiores seres, e que essa importância, assim trocada, lhe servisse de rega para o resto da vida. Cosme nunca poderia atinar que o deus era chegado às espertezas, exatamente como ele.

Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB). Com “Orelha lavada, infância roubada” (2018), recebeu Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019), e com “Verso do reverso” (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Seu romance “Tocaia do Norte” (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Outra obra sua, “A morte é a promessa de algum fim”, recebeu o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Seu mais recente romance é “Estranha entre nós”, publicado em 2022. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, “Memórias de uma mulher morta” (inédito) e “A Secura dos ossos”.

 

Revisão: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

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