Falta na abundância: ribeirinhos da Amazônia têm pouco acesso à água potável

Rio Solimões
Rio Solimões. Foto: Marcos Colón/Amazônia Latitude
Rio Solimões

Rio Solimões. Foto: Marcos Colón/Amazônia Latitude

No dia 22 de março, celebra-se o Dia Mundial da Água. A data foi criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1993, com o intuito de conscientizar as pessoas sobre a importância do recurso natural e sua preservação.

A data é uma oportunidade também de refletir sobre as desigualdades de acesso à água e ao saneamento básico, que são direitos humanos fundamentais e universais, reconhecido pela ONU como “condição para o gozo pleno da vida e dos demais direitos humanos”.

Mesmo sendo indispensável a uma vida com dignidade, diversas populações têm o acesso à água potável negado, principalmente as que moram em áreas mais afastadas de centros urbanos e estão inseridas em contextos rurais.

Na Amazônia, onde está localizada a maior bacia hidrográfica do mundo, que concentra 81% da água doce do Brasil e 20% de todo o planeta, os ribeirinhos, habitantes das beiras dos rios, lidam com a escassez de água potável em seu dia a dia.

A exuberância da natureza esconde desafios invisíveis. A água é, muitas vezes, um luxo inalcançável para essas comunidades ribeirinhas. Às margens dos rios, onde a terra fértil e as águas vastas sugerem abundância, a realidade é marcada pelo acesso precário.

Segundo o Instituto Trata Brasil, na região Norte, menos de 60% da população têm acesso à água tratada e somente 13% contam com rede de esgoto.

No cenário nacional, 100 milhões de brasileiros não possuem saneamento adequado e 35 milhões não têm água tratada em suas casas. Desse total, 20 milhões estão em áreas rurais e remotas, como é o caso dos ribeirinhos.

População tradicional

Essa comunidade compõe o vasto e diverso mosaico amazônico. Os ribeirinhos da região são formados por diferentes grupos sociais, incluindo indígenas, nordestinos e migrantes. Eles fazem parte da paisagem tanto quanto os rios, árvores e bichos.

A economia dessa população é baseada principalmente na pesca e no extrativismo vegetal. A cultura local é fortemente influenciada pela herança dos povos originários, com práticas alimentares distintas, uso de plantas medicinais e agricultura de subsistência.

Diante da falta de infraestrutura e de sistemas de abastecimento, eles se viram como podem. Muitos caminham até os rios e lagos, às vezes por quilômetros, para encher baldes de água e realizam um tratamento domiciliar para fazer a purificação. Outros coletam a água de chuva, como explica o engenheiro ambiental, pesquisador associado do Instituto Mamirauá e membro do Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas da Universidade de São Paulo (USP), Leonardo Capeleto.

“Cada vez mais, as pessoas que não têm água adequada para beber começam a fazer essas atividades. Ela tem que fazer seu próprio tratamento. Imagina você ter que ir com um balde até o rio mais próximo, trazer um balde de água, levar para casa e fazer todas as etapas de tratamento, filtrando e tentando imitar o melhor possível um tratamento convencional. A maior parte das pessoas acabam consumindo essa água a partir do momento em que ela acha que está adequada — e raramente ela está”, afirma Capeleto.

O pesquisador já demonstrou em estudos que a falta de acesso à água e saneamento afeta especialmente as mulheres, que costumam ser as responsáveis pela coleta e tratamento. É um trabalho prolongado, exaustivo e não remunerado. A situação gera ainda consequências psicossociais, como estresse físico, financeiro e social.

Considerando o recorte de gênero, entre as ribeirinhas, é possível identificar percepções de medo, sentimento de responsabilidade e gasto de tempo em atividades relacionadas à busca por água. Há também o impacto físico relacionado ao ato de carregá-la, comumente nos ombros, braços ou cabeça, sendo uma das principais causas de dor e doenças musculoesqueléticas nas comunidades onde a prática ocorre.

Água: um paradoxo amazônico

“É uma situação paradoxal. Apesar de morar em uma região rica em recursos hídricos, as pessoas terem tanto esforço para conseguir água para utilizar em seu cotidiano”, reflete Capeleto.

Um estudo realizado no ano passado pelo Instituto Leônidas & Maria Deane (Fiocruz Amazônia) analisou amostras de água consumida em comunidades rurais de 12 municípios do Amazonas. De acordo com o levantamento, ao menos 36 comunidades ribeirinhas que careciam de um sistema de tratamento apresentaram água imprópria para consumo.

A pesquisa demonstrou que nos poços, rios e vasilhas utilizados para armazenamento havia presença de coliformes fecais e de minérios, como ferro.

Leonardo Capeleto destaca que a maior parte das amostras coletadas das águas consumidas pelos ribeirinhos apresentam contaminação de patógenos que causam doenças como cólera, leptospirose e hepatite A.

“Elas são muito predominantes na Amazônia inteira e muito comuns. Infelizmente, as pessoas acabam até se acostumando. E isso vai de leste a oeste na Amazônia. A gente acaba vendo na região uma quantidade enorme de doenças que seriam evitáveis, e muito disso é por falta de investimento público e infraestrutura”, pontua.

Leonardo Capeleto monitora a água na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Amanã, no Amazonas. Foto: arquivo pessoal

Tecnologias sociais e soluções para os ribeirinhos

Apesar do cenário preocupante em relação ao saneamento básico nas comunidades ribeirinhas, alguns projetos de tecnologias sociais aplicados a esses territórios têm dado bons resultados.

O Instituto de Desenvolvimento Mamirauá, que é uma organização fomentada e supervisionada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, levou para a região do Médio Solimões alternativas de sistemas para o abastecimento de água.

A tecnologia social se caracteriza por ser uma técnica ou um produto criado com o objetivo de solucionar um problema social, considerando atributos como: simplicidade, baixo custo, fácil aplicabilidade e impacto social comprovado, geralmente construída em parceria com a comunidade local.

Maria Cecília Rosinski é pesquisadora em saneamento e coordenou alguns projetos de implementação das tecnologias nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Mamirauá e Amanã, com aproximadamente 30 mil km², na região da Amazônia Central. O IBGE apontou que nessas áreas vivem 16.212 moradores em 330 comunidades.

Maria Cecília é pesquisadora do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Foto: Bernardo Oliveira/Instituto Mamirauá

Ela considera que a Amazônia ribeirinha também reflete a própria diversidade da Amazônia. Há ribeirinhos que moram próximos da cidade, similar a uma periferia, em condições um pouco melhores de saneamento, e outros residem em locais bastante remotos e distantes, de uma forma mais ligada à natureza e os ecossistemas em seus entornos.

“A gente tem essa variação, essa população que está mais distante, em áreas rurais. Elas são muito carentes de serviços públicos. As prefeituras acabam investindo mais onde tem uma comunidade maior. Na região de várzea, a gente tem as comunidades maiores, aquelas que têm mais de 30 casas. Mas tem dezenas com apenas cinco, dez, 15, 20 casas. Essas são mais desatendidas por serviços públicos”, explica Rosinski.

A pesquisadora comenta a importância das tecnologias sociais para transformar essa realidade. “Na abundância existe a falta. As tecnologias sociais têm uma participação que as torna mais adequadas para diferentes realidades. Na Amazônia, a gente aposta muito nisso porque não tem como ser diferente. São áreas rurais, e as tecnologias vão ser usadas ali no dia a dia como uma solução mais local. Os principais investimentos são voltados para o uso da água da chuva e de rio”, declara.

Área que compreende as Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Mamirauá e Amanã no Amazonas. Ilustração: reprodução/Instituto Mamirauá

Sistema de Água de Chuva Domiciliar

O Instituto Mamirauá destaca que o objetivo dessa tecnologia foi experimentar e desenvolver um mecanismo seguro de captação de água de chuva, que tivesse baixo custo, fosse de fácil instalação e adaptado à realidade local.

Os princípios básicos desse modelo é o descarte automático dos primeiros milímetros de chuva, o tratamento domiciliar da água e a possibilidade de administração ser realizada pela própria família. O uso da água de chuva gerou mudanças nas famílias envolvidas na pesquisa, como o aumento do conforto e do bem-estar.

Sistema de Água Misto com Energia Solar

Esse sistema, implementado em 2010, possui o mesmo princípio do Sistema de Abastecimento de Água. Mas nele foi adicionada uma cisterna de 25 mil litros para captação de água de chuva, por meio de uma bomba com módulo solar.

A cisterna é um novo reservatório, especialmente construído para resistir às inundações anuais. Sua estrutura é de ferro e cimento. E o conjunto foi construído acima do solo, para que não inundasse durante a época de cheia.

Esse reservatório recebe a água de chuva, captada a partir do telhado de um centro comunitário. A captação é feita por uma calha, que direciona a água para um separador automático para que a primeira parte de água seja descartada, e posteriormente conduz o recurso de melhor qualidade para a cisterna.

Os moradores da comunidade buscam essa água por uma torneira coletiva instalada na cisterna, além de receberem a água em casa, pela rede de distribuição do Sistema de Abastecimento. As vantagens da variação de Água Misto são: maior capacidade de armazenamento na comunidade e disponibilização da água de chuva, tradicionalmente usada pelas famílias para beber e cozinhar.

Sistema de Captação de Água de Rio com Energia Solar Fotovoltaica

Painéis fotovoltaicos são colocados sobre o rio em balsas flutuantes, bombeando a água para um reservatório elevado. A caixa d’água é conectada a um filtro de areia, para o pré-tratamento e a remoção de resíduos. Após a filtração, parte da água é distribuída pela gravidade para a comunidade com um ponto de fornecimento em cada domicílio. O recurso destinado ao consumo, e de melhor qualidade se comparado à água do rio, passa por um filtro lento e é armazenado em outro reservatório de uso coletivo.

A tecnologia apresentou impactos positivos na vida das famílias usuárias. Maria Cecília Rosinski conta que a tecnologia diminuiu o esforço físico, principalmente das mulheres e crianças, no carregamento de água da beira do rio até a residência, uma distância que pode ser de até 1 km a depender da comunidade.

De acordo com o Instituto Mamirauá, a medida criou um ambiente de privacidade para tomar banho em um local adequado e diminuiu o risco das crianças pequenas se afogarem na beira do rio. A instituição informou ainda que essa tecnologia social está pronta para ser reaplicada em outras regiões.

Rosinski considera que, depois da implementação, ocorreu uma redução significativa das contaminações através da água.

Houve uma melhora muito grande nas relações domésticas, porque a gente leva água e família tem um esforço a menos, que é o esforço de buscar água. A gente sempre escuta relatos de briga na família, porque a mãe tem que mandar a criança ir buscar. Ou só um que vai, o outro não. Ou a mãe fica muito sobrecarregada por ter que, muitas vezes, buscar. A gente teve relatos de redução de brigas na família. É uma melhora de qualidade de vida bem ampla a partir do abastecimento
Maria Cecília Rosinski

Desafios

De acordo com a coordenadora dos projetos de tecnologias sociais, as dificuldades para a ampliação de aplicação são diversas e envolvem desafios políticos, econômicos e técnicos.

“Políticos porque a gente vê que, às vezes, não há tanto interesse em beneficiar pessoas que estão muito dispersas no território. O outro é um desafio econômico, porque o saneamento é um investimento custoso. O último desafio é o técnico, porque as soluções que a gente coloca em um local não funcionam em outro. O que funciona para o Nordeste não funciona igual na Amazônia, então a gente precisa adaptar as tecnologias”, explica.

Outra questão técnica levantada pela pesquisadora é em relação aos governos e financiadores, que, segundo ela, precisam aceitar o uso das ferramentas não convencionais. Isso se dá porque nem todas as tecnologias que vão ser colocadas na área rural seguem 100% os critérios técnicos da ABNT da Engenharia Civil, por exemplo. 

“Não tem como atender todos os critérios em uma realidade tão diversa. Às vezes, comunidades indígenas em áreas muito isoladas são restritas de acesso à energia elétrica e ao conhecimento técnico para manutenção. Tudo isso tem que ser levado em conta na hora da implementação. É preciso uma flexibilidade para escolha de tecnologias alternativas”, conclui Rosinski.

Um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) demonstra que, para cada dólar investido em água e saneamento, são economizados US$ 4,3 em custos de saúde no mundo. Ou seja, existe uma relação direta entre a saúde pública e os investimentos em projetos de saneamento básico.

Produção: João Felipe Serrão
Edição: Isabella Galante
Revisão: Filipe Andretta
Direção: Marcos Colón

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