Olho d’Água: Por que conhecer melhor os caubóis e ‘índios’ dos EUA – com Thaddeus Blanchette

Doutor em antropologia e colunista da Amazônia Latitude destaca semelhanças entre lutas dos povos originários do mundo todo e questiona desconhecimento brasileiro sobre indígenas norte-americanos

Thaddeus Blanchette Olho d'agua
Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude
Thaddeus Blanchette Olho d'agua

Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude

Faz algum tempo que se convencionou que devemos priorizar o uso do termo “indígena” em vez de “índio”. “Índio” é uma palavra que carrega estereótipos e simplificações sobre as populações originárias. É um termo criado pelos colonizadores, trazendo uma ideia falsa de que as pessoas encontradas no continente americano pelos europeus seriam todas iguais e inferiores.

Já “indígena” é uma palavra que significa “natural do lugar em que se vive”. Ela mostra que cada povo é único, de onde quer que ele venha.

Essa diferença entre os termos é importante para a gente entender o que é o objeto de estudo do doutor Thaddeus Blanchette.

Eu falo para as pessoas: “Eu não estudo povos indígenas, eu estudo índio, essa coisa que é criada pelos governos coloniais, essa figura que não existe”. Índio não existe. Índio é uma coisa criada pelo governo. Os Tapirapé existem, os Ticuna existem, os Lakota existem… Índio é algo que os governos criam.

Blanchette nasceu nos Estados Unidos, mas mora no Brasil há 30 anos. Ele tem graduação em Português, Sociologia e Estudos Latinoamericanos pela Universidade de Wisconsin-Madison. É mestre e doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde é professor de Antropologia. Trabalha como tradutor para diversos institutos, incluindo o National Museum of The American Indian e o Museu Nacional brasileiro.

Quando jovem, eu era militante contra as guerras americanas na América Central, militante antinuclear. Eu era dessa geração que foi criada na década de 1960, 1970, [tinha] uma noção dos Estados Unidos enquanto império colonizador. Me mudei para o Brasil com 16 anos, durante as Diretas Já. [Depois,] minha questão virou como é que a ditadura brasileira foi criada. Qual foi o papel dos Estados Unidos na criação e sustento da ditadura? E com disso, comecei a desenvolver uma política extremamente anticolonialista. Se você começa a olhar para o colonialismo, a história do colonialismo e o imperialismo americano, ele te leva como uma bússola, apontando para a questão indígena. Porque os povos indígenas da América do Norte foram literalmente as primeiras vítimas do imperialismo e colonialismo norte-americano.

Desde março de 2024, Thaddeus Blanchette é também colunista da Amazônia Latitude. Ele vai publicar periodicamente textos sobre a cultura e a luta dos povos nativos norte-americanos, e sobre como esses assuntos se relacionam com os indígenas na Amazônia. O nome da coluna é “Caubóis e Índios”, por um motivo que o próprio doutor explica:

No Brasil, a única imagem que se tem dos índios dos Estados Unidos é nos filmes do Velho Oeste de 1950 e 1960, que sempre tem o caubói versus o índio. Mas na história verdadeira, muito índio era caubói. Virou-se caubói para sobreviver. Adotou-se com novas tecnologias, novas economias, novas formas políticas, e isso que permitiu a sobrevivência desses povos. Então essa ideia do caubói ser o oposto do índio é uma das coisas que eu acho que a gente tem que explodir.

Este é o Olho d’Água, podcast produzido pela Amazônia Latitude e que propõe um mergulho nos assuntos profundos da maior floresta do mundo.

Ouça abaixo o quinto episódio completo:

Confira trechos da entrevista:

Thaddeus Blanchette: Atualmente, tem mais povos indígenas nos Estados Unidos do que no Brasil, pessoas reconhecidas pelo Estado americano como indígenas. Então nós, enquanto pessoas que se repensam no capitalismo tardio e como podemos sobreviver a isso, temos muito a aprender com esses povos.

Eles estão vivendo dentro da “barriga do bicho” faz quatro séculos. Não seria interessante ler ou saber um pouco sobre seus intelectuais orgânicos, sua história, suas interações com o Estado e com o mundo? Eu diria que sim. E, no entanto, no Brasil, ignoramos quase por completo sua existência.

Amazônia Latitude: Por que você acha que existe essa quase aversão ou falta de identificação entre o indígena brasileiro e o indígena norte-americano, apesar de tantas similitudes entre eles?

Thaddeus Blanchette: Em primeiro lugar, em geral, nas Américas, da Tierra del Fuego até o Alasca, todas as repúblicas das Américas se configuraram como Estados independentes, marcando uma distância, uma diferença entre eles e seus países colonizadores.

E a marca crítica que permitia uma construção de uma identidade nacional, seja no Canadá, nos Estados Unidos, na Argentina, no Brasil, foi sempre o índio. Supostamente, o contato, a miscigenação, a conquista do índio é o que fazia as experiências americanas, de maneira ampla, ser diferentes das experiências inglesas, portuguesas, espanholas e francesas.

Então, desde o início dos Estados-nações coloniais das Américas, você tem uma insistência no próprio nacionalismo sendo marcado por essa marca crítica do índio. O Estado-nação absorve simbolicamente o índio, absorve fisicamente suas terras e ele vira nós.

Você tem uma enorme reação adversa em todas as Américas pensando a questão indígena como uma questão internacional, porque simbolicamente todo mundo aprende, desde criança: índio é americano, índio é brasileiro, nossos índios, índio é nosso, como a Amazônia é nossa. Então, pensar nisso como de fato é, uma condição internacional que tem séculos de história, parece nonsense para as pessoas, vai contra o que você aprende desde criança.

O governo colonial criou o índio na tentativa de conquistar as terras desses povos e mais tarde, colocá-los dentro do controle do governo central. Para mim, o índio é uma construção.

Em relação à política indigenista, tanto brasileira quanto norte-americana, o que podemos aprender com os norte-americanos e vice-versa?

A primeira coisa que eu acho interessantíssima nos Estados Unidos foi a consolidação — minha tese de doutorado fala sobre isso — do artefato do governo tribal. E isso foi na década de 1930, relativamente recente, quando o Estado americano reorganizou a administração indígena para não ser abertamente genocida.

Até os anos 30, você tinha o assim chamado “problema indígena”, que um velho amigo indígena, Lacota, falou uma vez: “o problema indígena pode ser definido como os indígenas existem, e isso é um problema que merece ser resolvido”. Ou seja, como fazer os índios desaparecerem? E todas as administrações indígenas, quase das Américas, antes de 1930, tinha esse fim, fazer os índios desaparecerem. Aí houve uma aliança entre alguns indigenistas mexicanos e americanos.

Moisés Sáenz e Manuel Gamio, no lado mexicano, e John Collier, que era o sujeito da minha tese de doutorado, no lado americano. Eles construíram uma nova maneira de pensar a administração indígena. Em vez de ser uma máquina para eliminar índios, ser uma máquina para proteger e sustentar os vários grupos indígenas na sua alteridade socioeconômica, política e cultural.

Desde então, esse projeto de permitir os índios existirem dentro da república, como um povo dentro de uma república pluralista, tem tido seus altos e baixos. Ou seja, a revolução que Collier, Sáenz e Gamio fizeram no México e nos Estados Unidos muitas vezes foi desafiada nas décadas seguintes.

Mas ela sempre voltou, criou uma nova maneira de pensar no índio, não como um componente inevitavelmente miscigenado e sempre em desaparecimento da república, mas como um grupo de povos que tem direitos e deveres definidos frente à república. Eles também são mais do que cidadãos, têm direitos originários que antecedem a república e precisam ser resguardados.

No Brasil, muitas vezes, eu acho que, como a atual batalha sobre o Marco Temporal demonstra, ainda não chegamos a esse consenso que tentou ser construído por Collier na década de 1930, que os povos indígenas têm uma existência própria. Eles têm direitos, deveres e governos que são próprios e podem até ser resguardados por uma burocracia nacional, a Bia [Bureau of Indian Affaris] no caso dos Estados Unidos, Funai no caso do Brasil. Mas ser índio não quer dizer que você é necessariamente igual a todos os outros brasileiros ou americanos.

Você é Tapirapé, também é brasileiro, tem os direitos resguardados pela Constituição e direitos adicionais, que são criados em função de você ser membro de um grupo sociopolítico cultural, que é o povo originário dessa terra. E o Brasil fugiu disso nos anos 30. Foi convidado para a Convenção de Patzcuaro, no México, em 1940, onde iria estabelecer-se essa nova aliança entre as maiores potências das Américas para criar a nova visão da administração indígena.

O governo de Vargas especificamente recuou, mandou o Roquete Pinto para a conferência. Quando ele voltou, o governo falou: “Não vamos nos meter com isso, porque o que precisamos fazer é absorver a nossa população indígena dentro da nação e fazê-la desaparecer. E os mexicanos e americanos não querem fazer isso, então não vamos fazer”.

Isso não quer dizer que o Brasil nunca avançou em direitos indígenas desde então. Teve muitos avanços, mas esses direitos nunca foram categoricamente estabelecidos pela Constituição da maneira que têm sido pelos mecanismos legal e jurídicos nos Estados Unidos.

O Marco Temporal avança porque o grosso da população brasileira ainda acredita que o destino dos povos indígenas é ser absorvido pelos brasileiros, desaparecer.

Na medida em que eles não são caçadores, coletores, correm nus pelo mato, não são índios de verdade. E na medida em que não são índios de verdade, não têm direitos à terra, à autonomia, nem relativa.

Eu não quero aqui sustentar a hipótese de que os Estados Unidos é um excelente modelo para o Brasil seguir, mas tem determinadas coisas que foram feitas lá que nunca chegaram a ser cogitadas aqui, porque sucessivos governos brasileiros entendem que isso é perigoso. Não é perigoso para a nação, mas para os interesses rurais que pretendem pavimentar um lugar do tamanho do Amazonas e transformá-lo numa enorme mina a céu aberto. Então eles têm evitado a qualquer custo a discussão de como esse tipo de situação funciona nos Estados Unidos.

Você pode ouvir isso nas falas do ex-presidente Bolsonaro, quando ele falou que “a cavalaria brasileira era incompetente”, diferentemente da cavalaria americana, que matou todos os índios.

Quantos brasileiros de esquerda eu conheço que acham que não tem índio nos Estados Unidos porque os anglo-saxões mataram todos? O fato é que nos Estados Unidos tem mais índio do que no Brasil. E os índios dos Estados Unidos têm mais terra do que os índios brasileiros, e mais governo e soberania.

Então, dado os problemas que estamos encarando no Brasil, eu diria que vale a pena olhar para os índios brasileiros e para os índios americanos da mesma maneira como, por exemplo, afro-brasileiros olham para os escritos de Patricia Hill Collins, Angela Davis e Malcolm X, porque essas questões são imbricadas entre si, até nas suas formações dentro do governo.

No entanto, nós não fazemos isso porque mesmo os próprios índios brasileiros acreditam que não tem índio nos Estados Unidos. Se tem, não é “índio de verdade”. Isso é o que eu acho mais irônico: ao mesmo tempo que o índio no Amazonas está lutando contra essa ideia do “índio de verdade”, tem computador, internet, vai para a universidade, tem tudo isso, quase reflexivamente, se você fala com um brasileiro sendo branco, índio ou negro, sobre índios nos Estados Unidos, a primeira coisa que sai da boca dele é: “mas eles não são índios de verdade, são?”

Só para você ver como a gente internalizou essa imagem de que “índio de verdade” mora no meio da mata, corre nu pela floresta, atira arco e flecha, não tem acesso a carro, televisão, internet, nada disso. Então está na hora de começar a questionar isso minimamente. Porque as mesmas corporações que estão destruindo o Amazonas estão destruindo o norte da Canadá e tentando fazer oleodutos que cruzam a América do Norte, um dos quais, o Keystone Pipeline, foi suspenso por causa de uma aliança bem sucedida de índios de três países — Canadá, Estados Unidos e México — e seus aliados não indígenas.

Ou seja, quando eu olho para o trem da Vale, fico pensando: os povos indígenas da América do Norte conseguiram parar um oleoduto de tamanho continental, talvez a gente deveria estar fazendo alianças em conversas e trocas de informações com esse povo.

Para as pessoas como Bolsonaro e seus amigos, o mito de que os Estados Unidos matou todos os seus índios e não tem mais índio oferece uma esperança de que algum dia no futuro o Brasil possa fazer o mesmo. Eles não gostam de ser lembrados que o país mais rico e com o exército mais poderoso do mundo, ainda hoje, 400 anos após a colonização, está periodicamente engajando em guerras com sua população indígena.

Se os Estados Unidos estão fazendo isso, que possibilidade o Brasil tem de apagar os povos indígenas? Eu acho que isso é a grande coisa que temos que aprender com os americanos e os índios americanos. Eles ainda estão lá, como eles mesmos dizem: we’re still here (ainda estamos aqui), we’re not going anywhere (não vamos a lugar algum). E é isso que eu acho que dá uma grande esperança para os nossos povos indígenas da Bacia do Amazonas. Se eles conseguem, nós conseguimos.

Em termos de representatividade política, você acha que os indígenas brasileiros ainda têm muito a percorrer para ter uma representatividade, inclusive parlamentar, como existe nos Estados Unidos ou no Canadá?

Esse é um ninho de vespas. Em primeiro lugar, porque como antropólogo e sociólogo comparativo dos Estados Unidos e do Brasil, eu não tenho tanta certeza que a representação no congresso significa a mesma coisa nos dois países.

Começando pelo fato que nos Estados Unidos, desde sempre, tiveram dois partidos. E o sistema deles só funciona à base do bipartidarismo. E no Brasil, nosso sistema se baseia muito mais em personalidades, partido não significa nada. Então é muito difícil falar numa representatividade no Brasil como é nos Estados Unidos.

Acho que em certos aspectos, por exemplo, em certos municípios do Amazonas, de Goiás e outros lugares, você tem uma representatividade indígena maior do que você encontra nos Estados Unidos, em determinados lugares. Por outro lado, não é nem questionável que tem mais índios em posições de poder nos Estados Unidos no nível federal do que no Brasil. A atual Tesoureira norte-americana [Marilynn Malerba] é uma indígena.

Não quero dizer que os indígenas brasileiros não têm formas de participação política que são lhes próprias. Mas eu acho que, com certeza, os direitos em nível federal não são tão bem traçados quanto nos Estados Unidos.

A sina natural do índio, de acordo com os colonizadores, é a morte. É uma morte imediata, pela matança, ou é uma morte lenta, pela assimilação forçada, destruição de línguas, culturas e religiões. E tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, os povos indígenas têm que lutar com unhas e dentes contra esse destino.

Só acho irônico e problemático que os brasileiros, em geral, pensam no índio dos Estados Unidos como um ser que não existe, quando tem mais índios nos Estados Unidos do que no Brasil. E em todas as contagens.

Se a gente apenas conta os índios que moram em reservas americanas, de fala indígena, que vivem dentro de culturas e organizações políticas indígenas no dia a dia, existe mais índio do que no Brasil. Contado pelo último censo.

A Bia americana conta 2 milhões de índios como registrados pela federação como indígena. Nosso Censo, pela autodeclaração — e o último Censo foi badalado como um dos melhores da história brasileira para a contagem de povos indígenas — conta 1,8 milhão de indígenas. Se você conta norte-americanos, estadunidenses, por autodeclaração, tem entre 7 e 9 milhões de indígenas. Então 6% da população dos Estados Unidos é indígena.

Queria entrar nesse ponto em relação à representatividade nas artes também.

Está acontecendo uma revolução na representatividade indígena nas artes norte-americanas. De fato, eu vejo ela tendo começado no Canadá. O grosso dos atores indígenas que você vê no telão são canadenses ou começaram no Canadá.

O Canadá lá pela década de 1990 começou a fazer seriados de televisões e filmes com conteúdo nitidamente indígena. Um deles que é fantástico e nunca veio para o Brasil, e adoraria traduzir, porque acho que fala diretamente sobre alguns dos problemas dos povos do Amazonas, chama-se North of Sixty. É sobre uma pequena aldeia no norte do Canadá, onde uma corporação, como a Vale, está extraindo mineração no Northwest Territories. É um seriado que teve seis temporadas, foi um excelente sucesso na televisão, em geral, no Canadá. E isso foi no final da década de 1990, após a virada do século.

Muitos dos atores que você está vendo hoje, por exemplo, Graham Greene, outro cara que começou sua carreira na televisão canadense, ou um punhado de outros. E acho que a partir de mais ou menos uma década, década e meia atrás, isso começou a se infiltrar nos Estados Unidos com filmes modernos, como Sinais de Fumaça.

Você tem o famoso grupo 1491, que são comediantes indígenas, que fizeram [a série] Reservation Dogs. Até a Marvel está fazendo uma série de super-herói indígena, Eco. Não sou grande fã da Marvel, mas é muito interessante como até eles têm uma sensibilidade sobre a vida indígena em Eco, que é muito boa.

Então você tem essa explosão que está acontecendo. Mas isso é periódico. Se você volta para a década de 1930, também teve, junto com essa renovação nos assuntos indígenas americanos, na política indígena, uma enorme explosão de conteúdo indígena nas artes plásticas. É que nem aqui com a nossa Semana de Arte Moderna, que tinha muitos artistas americanos que estavam buscando temáticas do sudeste dos Estados Unidos, cores, imagens, e trazendo para dentro tanto as artes plásticas quanto a literatura e poesia.

Se a história vai se repetir, a gente pode imaginar que esse atual boom em representatividade indígena nas artes, talvez dentro de dez, 20 anos, vai criar uma mudança significativa na política também. De qualquer maneira, tem mais cara indígena nas telas americanas do que em qualquer outra época, pelo menos nos últimos 50, 60 anos.

Produção e edição do podcast: Filipe Andretta
Edição de texto: Isabella Galante
Arte e montagem do site: Fabrício Vinhas
Direção: Marcos Colón

Print Friendly, PDF & Email

Você pode gostar...

Assine e mantenha-se atualizado!

Não perca nossas histórias.


Translate »