Sandra Godinho

Paulista radicada no Amazonas, é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB), e tem dez livros publicados.

Omama, o demiurgo Yanomami

Omana é o primeiro homem que surgiu em Hutukara e, lá, ele se tornou grande

Dois jovens Yanomami olham e sorriem para a câmera
Foto: Alejandro Zambrana para Sesai/ Ministério a Saúde
Dois jovens Yanomami olham e sorriem para a câmera

Foto: Alejandro Zambrana/Sesai/ Ministério da Saúde

Quando seu pai, depois de tanto beber, se tornou um homem desfeiteado de si mesmo e sua mãe tinha se entregado em definitivo à vida de deleites, a alma do jovem se anichou em novas ideias, pois o lar tal qual conhecia já não existia mais. Eu já não tinha tanta ascendência sobre ele, agora um adolescente, porque se endurecia com outros pensamentos. Tinha ouvido falar que lá, o alto do igarapé do Uraricoera, os subterrâneos da terra eram mais dourados que o próprio sol e decidiu bamburrar. Se tinha de nadar, que nadasse em ouro.

Com isso em mente, o jovem guardou a saudade na alma, a coragem no bolso e rumou para o garimpo que se desenvolvia com uma parafernália de equipamentos de última geração bancada pelos poderosos da região e além. Pôs em esquecimento o que já estava quase morto, os pais em suspeitos hábitos e os ribeirinhos que pelejavam pelas margens. Mas pé-rapado naquelas beiras não pegava nem respeito.

Se chegasse no Uraricoera, estaria com a vida ganha. Foi esse rio de dinheiro saltando dos olhos que lhe afocinhou a ideia. Um barco o trouxe até os homens do garimpo, com sua pequena trouxa de ganâncias e com ganas de ser gente. Avistou os garimpeiros na margem do igarapé, alguns com os olhos tomados pela cegueira de rio, escamoteados por trás de óculos escuros, os pés dentro de botas, firmes no ofício de garimpar riqueza. Nada disso o abalou. Ele confiava em si para enfrentar o desconhecido. Perguntou a um dos homens sobre o chefe e, depois de informado, apresentou-se ao velho ranzinza com a firmeza de quem se fia em sonhos.

O cabra, ao vê-lo largado da família, o aceitou de pronto, pois os solitários trabalhavam com mais afinco. Ele era um jovem forte, preparado para engolir o mundo e tudo ali correspondia ao que ele havia imaginado. Ao chefe, eram dois braços a mais para ajudar com o árduo trabalho. Havia retroescavadeiras, dragas, motores, geradores e fortes jatos d’água escavavam os barrancos, esfarelando o cascalho, sujando o rio, deixando um lodaçal enlameado na terra. Mais ao longe, o adolescente avistou a pista para as aeronaves que traziam mantimentos, ferramentas, diesel, alimentos e o que mais precisasse para a operação não parar. Seu pensamento ficou ali, plantado naquela terra enlameada que podia trazer o nobre metal dos subterrâneos e enricar os homens miúdos como ele. Ou poderosos, como os que viviam nas repartições públicas, perdidos em brilho próprio.

Assim, o jovem passou as primeiras semanas, espantando sono e mosquito, observando os colegas cegos ou acometidos pela malária descansarem as dores nas redes, ou debaixo de tendas improvisadas. Mesmo os sãos deliravam durante o dia, cavoucando a terra com mãos de sonhos e de cobiça. O estrago na superfície da mata e do rio era visível, especialmente a quem se dispusesse a ver.

Com o mercúrio, as águas ficaram doentes e os peixes amoleceram. A floresta ia sendo deflorada. A paisagem daquelas bandas se desfazia, mas os garimpeiros achavam que era preciso persistir se quisessem vencer. Certa madrugada, quando o sono o tinha abandonado, o pensamento do adolescente se enfumaçou. Saudoso do pai e da mãe, ele chorou naquele acampamento abandonado ao cansaço. Do seu pranto, uma poça se formou debaixo de sua rede até que secou por completo e de dentro da terra se ergueu um redemoinho que ventaniava. Veio-lhe um medo que, aparentemente, só ele sentia. Foi quando um indígena imenso saltou das entranhas da terra e se materializou diante do jovem. Omama, como o desconhecido disse se chamar, apresentou-se com desenhos tribais espalhados por todo o corpo, arabescos em tinta de um negro brilhante, com três bastonetes de madeira fincados na pele abaixo da boca. O rapaz achou que se tratasse de um espírito arrependido da passagem para o outro mundo.

— Você vai dar a eles nossas palavras — o desconhecido disse ao jovem, impositivo.

— Quem é você, o que quer de mim?

— Sou o primeiro Yanomami. Antigamente, eu era grande; agora, o sopro da minha palavra está curto demais, e as orelhas dos brancos não escutam as palavras dos espíritos.

— O que eu tenho com isso?

— Quer ser como os comedores-de-terra-e-mata que chafurdam em buraco de ouro?

— Melhor do que viver feito…

— …o que os brancos chamam de minério são as lascas da lua, do sol e das estrelas que caíram no tempo do antigo céu. Os minérios é que estão sustentando o novo céu. Se tirar o minério da terra, os comedores-de-terra-e-mata vão espalhar a fumaça de epidemia, a xawara, e levar à morte tudo o que é vivo sobre a superfície da terra. Sem minério, o céu perde sustentação e a queda do céu vai acontecer novamente.

— Epidemia?

— A febre, a fumaça, a poluição. A floresta é a pele da nossa terra, e o metal que Omama ocultou nela é seu esqueleto. Gostar dos minérios é coisa ruim, atrai os seres da epidemia e as doenças que sempre os seguem.

— O que você está dizendo não faz sentido. É outro bêbado fraco feito o meu pai?

— Nossa terra é mais sólida que nossa vida, mas o branco só quer comer terra como as queixadas, sem se importar com a floresta, só tem palavras de mentira e medo. Só pensam em mulher e em mercadoria. Só vão enxergar alguma coisa quando não houver mais nada a ver. Entrego a você minhas palavras e peço para levá-las para que todos as ouçam. Os Xapiri virão te visitar em breve, para que você entenda e não se esqueça.

Depois desse arroubo verborrágico, Omama sumiu tal qual tinha lhe aparecido, no meio de uma espiral de fumaça, deixando-o só, com as picadas de mutucas e piuns a lhe alfinetarem a pele. Dessa vez, eu tinha fortalecido o sonho no garoto e soube que a língua do indígena tinha penetrado nele, afinal.

Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB). Com Orelha lavada, infância roubada (2018), recebeu Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019), e com Verso do reverso (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Seu romance Tocaia do Norte (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Outra obra sua, A morte é a promessa de algum fim, recebeu o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, Memórias de uma mulher morta e A Secura dos ossos.

 

Edição: Alice Palmeira
Revisão:
 Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

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