‘Vidas em Confluência’: Vozes contra a devastação ambiental

Em entrevista, autores da obra 'Vidas em Confluência' relatam a luta contra a mineração em Barcarena e Abaetetuba

Autores do livro Vidas em Confluência
Organizador e autores da obra no V Sialat. Arte: Fabrício Vinhas
Autores do livro Vidas em Confluência

Organizador e autores do Vidas em Confluência. Arte: Fabrício Vinhas

A prática da mineração vem se tornando cada vez mais voraz em regiões como Barcarena e Abaetetuba, no nordeste do Pará. Num contexto de “desenvolvimento”, as empresas mineradoras têm explorado e destruído gradualmente os territórios que resistem nessas cidades.

Comunidades tradicionais, ribeirinhas, quilombolas e moradores dessas regiões sofrem há anos com um desenvolvimento que só mata. São igarapés contaminados pelos rejeitos altamente tóxicos de bauxita, árvores sem frutos, rios sem peixes e o povo local sem saúde.

Que desenvolvimento é esse que mais agride do que ajuda? Que mata e destrói a casa daqueles que precisam da terra para viver?

Neste episódio do LatitudeCast, conversamos com dois dos oito autores e com o organizador do livro Vidas em Confluência: cotidiano e luta em comunidades tradicionais de Abaetetuba e Barcarena, que estavam presentes no V Sialat.

Daniela Araújo, da Comunidade Agroextrativista Pirocaba, Mário do Espírito Santo, da Terra Quilombola Gibiries de São Lourenço, e Guilherme Guerreiro relatam a construção da obra e sua importância para a luta contra a mineração nos territórios.

Confira agora o episódio do LatitudeCast:

Amazônia Latitude: Como surgiu a oportunidade de participar do Vidas em Confluência?

Mário do Espírito Santo: O Vidas em Confluência surgiu a oportunidade com o Guilherme. Ele nos contatou e convidou para uma conversa. Longe de nós em pensar que ele ia transformar essa conversa em livro. Ele chamou e disse: “vem que tem pupunha, tem café, e a gente senta e conversa”.

Há quanto tempo essa luta contra as grandes empresas de mineração começou?

Daniela Araújo: Sou de um território agroextrativista, e já tem muito tempo que encabecei essa luta. Foi a partir de 2017, quando meu território teve ameaças em relação ao porto da Cargill, que eu precisava estar naquela luta, porque amo meu território, sinto muito orgulho de meu território e quero que ele permaneça do jeito que está.

Então acredito que [a luta começou] pela necessidade e por já saber que esses empreendimentos nunca vêm para ajudar, que o desenvolvimento nunca é para a gente, e que, principalmente nós, como mulheres, sabemos que essa luta pela casa não é só minha. Se o empreendimento afeta a vida de um território, afeta principalmente a vida das mulheres.

Como os territórios e as cidades próximas sentem os impactos gerados pelo descarte de resíduos nos rios e igarapés?

Mário do Espírito Santo: Com coceira no corpo, com diarreia, com o cabelo caindo. É comum entre as áreas de famílias tradicionais, ribeirinhas, agricultores e também o próprio morador das áreas urbanas.

A gente sente saudade hoje de se banhar no rio. Nossos rios estão todos poluídos. Isso a dra. Simone, que é pesquisadora da Universidade [Federal do Pará], prova. Tem vários estudos apontando isso. Nossos afluentes todos na Vila do Conde e chega até a Abaetetuba.

A gente discute a questão de que não existe “primeiro impactado”. Eles costumam dizer que tem o primeiro impacto, os primeiros que foram impactados. O impacto direto e indireto. Não existe isso. Existe impacto. E quando fomos medir o impacto dentro da cidade, desde a cidade onde aconteceu, foi só para quem mora na beira do rio? Não, para quem mora na cidade também.

Quem mora lá no Conde ficou impedido de acessar a praia, os igarapés. É diarreia, coceira no corpo, cabelo caindo e tu não sabes por quê. Ainda não teve um estudo epidemiológico. No que foi feito até agora, as empresas disseram que não serve. É por isso que as empresas estão demorando para contratar a auditoria, que é para medir os impactos.

O que foi colocado para a empresa fazer, para liberar sua produção, ela fez. E o que foi para ver esses estudos socioeconômicos, de contaminação, não foram feitos.

Temos crianças nascendo sem órgãos, de barriga aberta, sem cérebro, Alzheimer altíssimo, câncer de todo o tipo. Não é feita uma pesquisa a quanto grau essas contaminações estão nos destruindo.

Antigamente, dizíamos “o fulano morreu apaixonado”. Morreu apaixonado porque não quer tomar banho, não quer comer, só vive preso dentro de casa. Hoje tu dá o nome de quê? Depressão. O fulano morreu, chorou, chorou, chorou tanto. A gente não reparou. Se suicidou. É comum isso tanto na cidade como também nas ilhas.

O que esse livro representa para vocês?

Daniela Araújo: É um pouco difícil de falar, principalmente pela generosidade do Guilherme. As pessoas perguntavam para mim: “Dani, como foi que tu escreveu?”. Quando a gente olha e vê que ele coloca “organização e apresentação Guilherme Guerreiro”. A generosidade dele de afirmar que somos nós os autores é o mais importante. É nosso eterno agradecimento, porque a gente sabe que vivemos dentro de um território, somos não só coagidos, mas ameaçados, difamados.

Então ter pessoas que reconhecem esse trabalho e que publicam, para nós, é muito importante. A gente já recebeu tantos elogios por esse livro… Não sei explicar o que estou sentindo, o que eu senti e o que ainda vou sentir em relação a ele.

Mário do Espírito Santo: Há pouco, disse que o Guilherme hoje é doutor porque transformou nosso saber em ciência e foi muito humilde em reconhecer o que ele recebeu. Recebeu, mas também nos devolveu. O poder de fala. E ele diz: “A fala não é minha, eu só organizei”.

Ele mostrou a cara de quem é a fala. Isso deixa a gente emocionado. Devolveu para nós nosso poder de fala. Porque isso é o que o governo não faz, não nos dá o poder de fala. Apesar que não precisamos que o governo nos reconheça. Nós nos reconhecemos, nós somos o território. Somos nós que fazemos o território, que cuidamos do território.

E o Guilherme botar nossas palavras, um pedaço de nossa história num livro desse, é sinal que vamos eternizar, vamos ancestralizar. Nossa ancestralidade vai ficar. Quando um neto nosso, um bisneto acessar a universidade, um dia vai se deparar com esse livro e dizer: “Olha, esse aqui é meu bisavô, ele está aqui”.

Existem muitos grupos de trabalhos e pesquisas sobre neoextrativismo e desenvolvimento. Para vocês, como pessoas que foram impactadas drasticamente por esse chamado desenvolvimento, o que isso significa?

Mário do Espírito Santo: O desenvolvimento não chegou para nós. Até hoje, nossos parentes que acessam a fábrica, os portos, não vão para o cargo de chefia, vão para o subemprego. Vão varrer, cuidar do administrativo, pegar pasta. O que é dito é que o projeto veio para desenvolver a comunidade local.

Faz uma pesquisa para ver se os filhos de Abaetetuba, de Barcarena, de Igarapé-Miri, de Moju, de Belém estão em poder de direção de porto e de fábricas.

O que nos trazem? Prostituição, exploração, expropriação, porque ficamos reféns de uma guerra jurídica. O território é nosso. O território é do governo. O governo quer fazer o que quer.

O que é lucro e riqueza para ti não é para nós. Riqueza para nós é subir em nossa árvore de açaizeiro, tirar cinco cachos de açaí, bater. Ir em nosso matapi, tirar dois, três quilos de camarão, cozinhar. Ir em nossa rede, tirar nosso peixe, comer, e depois do almoço, deitar um pouco, até três, quatro horas da tarde. Quando a gente vai para debaixo da mangueira varrer nossas mangueiras, capinar nossa roça. Isso é riqueza para nós.

A visão de riqueza do povo é ter uma Hilux, um iate, vários apartamentos. Para nós, não. “Mas vocês querem ficar na mesmice?”. Não. Mas para que acumular se a gente não leva? Nunca vi ninguém quando morre passar com um carro forte e depositar lá em seu túmulo. A não ser os faraós, mas isso não é para nós.

Guilherme, você pode falar um pouco sobre o Vidas em Confluência?

Guilherme Guerreiro: Esse livro é um compilado de um pensamento crítico social da Amazônia. Esses autores e essas autoras são viventes, lideranças, mas são também pensadores e pensadoras sobre sua realidade. E o pensamento deles e delas está aqui.

Anazilda Dias, Daniela Araújo, Dilmara Araújo, Euniceia Rodrigues, Lourdes Nery, Luciene Pinheiro, Mário do Espírito Santo e William Costa. Todos com as suas realidades. Cada um de seu território, mas com realidades que se misturam, que confluem, por isso essa referência ao Nego Bispo, ao Antônio Bispo dos Santos, que nos deixou ano passado e aparece em referência com a palavra “confluência”. São histórias que se cruzam, se tocam. Por isso. aparecem juntas.

O relato tem a ver com todo esse processo em Barcarena que já tem mais de 40 anos de invasão do capital agromineral. As grandes mineradoras, Albraz, Alunorte, Hidro, mas também, mais recentemente, outras empresas. Hoje, tem um distrito industrial, tem empresas ocupando todas as beiras de Barcarena.

Essa frente de expansão do capital agromineral, que é também patrocinada pelo Estado, avança para a Abaetetuba. O que as comunidades como o Pirocaba, da Daniela, fazem é tentar barrar essa invasão, essa expansão para a Abaetetuba, que é ameaçada agora por uma empresa chamada Cargill, da área de commodities alimentícias. Não é só a mineração, é o capital agromineral se expandindo, ajudado pelo Estado, tentando se sobrepor a uma série de vidas, de histórias.

O que o Mário e a Dani trazem, além do pensamento, é mais do que a resistência a esse processo. São os modos de viver, de estar no mundo. São as grafias de vida com que elas e eles mantêm e nos permitem pensar em modos alternativos de existência, de estar no mundo.

Se vocês forem no território do Pirocaba, por exemplo, vão ver a riqueza, a fartura que é os fins de semana, com os mutirões, com todo mundo arrodeando nos momentos de almoço, de café, conversando e trabalhando em prol desse espaço comum. No território de Gibrié do São Lourenço, um quilombo que permanece com todas as invasões de Barcarena e permanece ali, onde se tenta retomar a vida no território.

Eles trabalham com abelhas, fazendo com que os jovens, que muitas vezes perderam o encanto pelo território, retomem esse encanto. Então o que esse trabalho registra não é algo propriamente que eu construí, mas são as autorias dessas mulheres, desses homens que estão na vida diária, e que trazem um sentir e um pensar; onde o fazer do trabalho e do sentimento não se separa da construção de um pensamento crítico.

Tudo o que eles fazem está contado aqui, além das resistências, das possibilidades de vida de outro modo, que não é aquele que nos é imposto por esse capital agromineral e pelo Estado. Do modo como eles se apropriam das regiões da Amazônia.

Mário do Espírito Santo: Nossos jovens estão se reapaixonando por nosso território. Temos um projeto chamado Abelhas e Flores, que planta nossas mudas, nossas frutas, principalmente o açaí, que nos dá força, e [ensina a] lidar com as abelhas. Temos muitos jovens que não pensam somente em trabalhar nas fábricas, mas também em manter seu território, seu costume. Por isso, a gente diz que nossa força está na juventude.

Quanto tempo levou para organizar e gerar o livro?

Guilherme Guerreiro: O trabalho é fruto da tese de doutorado no Núcleo de Atos e Estudos Amazônicos [Naea-UFPA], dentro do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido. Foi orientado pela professora Edna Castro e levou o período do curso, mas especialmente nos dois últimos anos, 2022 e 2023, que foi o principal de organização.

No fundo, é uma luta profundamente ligada à ancestralidade. O Mário fala: “Não chegamos agora, estamos aqui há 314 anos”. Mais de 300 anos aí, com toda uma história da luta quilombola nessa região da Amazônia. Então o livro é um pequeno registro do que acontece nesses territórios. Ainda tem muita coisa para a gente olhar e reconhecer.

Produção, roteiro e locução: Yris Soares
Edição sonora: Júlio César Geraldo
Edição de texto: Alice Palmeira e Isabela Galante
Arte e montagem do site: Fabrício Vinhas
Direção: Marcos Colón

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