Arte das Letras Flutuantes: Apropriação Cultural e/ou Valorização?

Letras usadas por comunidades tradicionais em barcos amazônicos enfrentam debates sobre apropriação cultural por grandes marcas. O Instituto que representa os profissionais pede visibilidade e reconhecimento dos “abridores de letra” como artistas detentores de uma prática única

Idaias Freitas, artista marajoara. Foto: Idaias Freitas/ Arquivo pessoal
Idaias Freitas, artista marajoara. Foto: Idaias Freitas/ Arquivo pessoal
Idaias Freitas, artista marajoara. Foto: Idaias Freitas/ Arquivo pessoal

Idaias Freitas, abridor de letras marajoara. Foto: Idaias Freitas/ Arquivo pessoal

“Não podemos permitir que outros se apropriem indevidamente do que é nosso, dos ribeirinhos, copiando nosso trabalho para lucrar. As letras amazônicas são parte integrante de um conhecimento que é nosso.”

O levante é de Idaias Freitas, abridor de letras do Marajó. Há mais de três décadas, ele “pinta as letras” que nomeiam os barcos usados por ribeirinhos na região. A arte dos abridores de letras da Amazônia, que enfeitam embarcações com nomes e inscrições decorativas, tem atraído atenção além das fronteiras regionais.

Os letreiros dos barcos da região são uma forma de arte desenvolvida ao longo de décadas pelos letristas ribeirinhos. Ela surge da necessidade de identificação das embarcações, após exigência da Capitania dos Portos. Mas, desde então, essas letras evoluíram com formas e estilos mais elaborados, para representar a rica diversidade cultural e visual dessas comunidades. No entanto, o recente uso dessa identidade para além dos barcos, na moda ou na decoração, tem gerado debates sobre apropriação cultural. 

O Instituto Letras que Flutuam, dedicado à valorização e preservação das letras decorativas amazônicas, emitiu uma carta pública manifestando seu descontentamento com o uso não autorizado desses elementos culturais por grandes marcas comerciais. 

A controvérsia surgiu após a campanha “Manifesto do Afeto” das Lojas Riachuelo, desenvolvida em parceria com o professor-letrista e artista visual Filipe Grimaldi, que segundo a instituição, incorporou os letreiros tradicionais em sua coleção de moda e decoração, sem reconhecer ou compensar os artesãos locais. Em 2023, outra coleção feita pelas Lojas Renner já havia gerado desconforto pela semelhança com essa forma de arte. 

O documento destaca que a coleção incorporou elementos emblemáticos das letras de barcos sem envolver os artistas responsáveis. A crítica do Instituto é de que os artesãos enfrentam um duplo apagamento: são ignorados e suas técnicas são apropriadas sem o devido reconhecimento. Por fim, a instituição pede que futuras colaborações respeitem e incluam esses mestres de ofício em todas as etapas de criação.

Homem pintando as "Letras Flutuantes" em barco em Macapá. Foto: Instituto

Homem pintando as “Letras Flutuantes” em barco em Macapá. Foto: Instituto Letras que Flutuam

Os abridores de letras…

Idaias Freitas, o abridor de letras da comunidade Rio Pracuúba, do município de São Sebastião da Boa Vista, no Marajó, tem dedicado sua vida à arte de pintar barcos ribeirinhos. Com 35 anos de experiência, Freitas se tornou uma das figuras centrais na preservação dessa tradição cultural. 

“Eu comecei a trabalhar com abertura de letras aos 15 anos, e hoje, aos 50, vejo que o trabalho só ganhou valor fora da nossa comunidade por causa do projeto Letras que Flutuam”. 

O artista enfatizou a importância de uma valorização justa e do respeito pelos saberes tradicionais. Ele afirma que essa arte é uma parte essencial da identidade cultural da região e que os artistas devem ser incluídos e respeitados sempre que ela for evocada.

“Precisam nos incluir! As letras amazônicas são um conhecimento nosso. Se alguém de São Paulo compara ou copia nossas letras de barco para uso próprio, tudo bem, mas usar nossas letras decorativas para lucro sem nossa autorização é algo que sou completamente contra. É uma questão de respeito pelo nosso trabalho e pelo conhecimento que temos aqui na Amazônia.”

Idaias Freitas destaca ainda o impacto positivo que o instituto trouxe para sua vida e a de outros artesãos. “O projeto Letras que Flutuam mapeou a ilha do Marajó e nos reconheceu, posso dizer que ele resgatou nossa cultura e nos deu visibilidade, não apenas nos nomeando, mas também nos incluindo”. 

Idaias Freitas. Foto: Arquivo pessoal

Idaias Freitas pintando. Foto: Idaias Freitas / Arquivo pessoal

O Instituto Letras que Flutuam…

Antes um projeto cultural, agora uma instituição, O ‘Letras que Flutuam’ foi fundamental para dar visibilidade ao trabalho dos abridores como o Idaias. Criado pela designer Fernanda Martins, em 2004, ele se dedica à preservação e valorização da arte dos abridores de letras amazônicos. O objetivo é fortalecer e dar visibilidade aos artesãos que, de outra forma, poderiam ser esquecidos.

Mesmo reunidos sob o Instituto, os abridores de letras ainda enfrentam desafios significativos relacionados à visibilidade e à apropriação dessa arte.

“Não é que a letra não possa ser desenhada por outras pessoas, [nosso maior desafio] é que essas pessoas tirem o lugar de reconhecimento e de renda dos verdadeiros artistas. Então, o nosso desafio é conseguir fazer com que esses artistas [amazônicos] sejam reconhecidos no mesmo patamar que um artista que tem visibilidade na internet, que, claro, vai ser mais facilmente acessado”, pontua Sâmia Batista, coordenadora do “Letras que Flutuam.

Uma das diferenças fundamentais que torna o conhecimento dos “abridores de letras” artístico tanto quanto cultural (e único!) é o fato das “letras dos barcos” serem letreiros, não tipografias. Elas são feitas para serem vistas tanto quanto para serem lidas. Tipografias têm por caraterística serem pensadas para facilitar a leitura de grandes massas de textos – que aqui também não é o caso. As letras amazônicas são mais próximas a ilustrações, do que de tipografias.

No Instituto, um conselho diversificado que reúne representantes da cultura, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e do mercado de trabalho dos abridores associados, é quem produz respostas embasadas frente às polêmicas de uso das letras amazônicas como nas coleções de moda recentemente lançadas.

Crianças na Escola Marajó das Letras. Foto: Instituto Letras que Flutuam

Crianças na Escola Marajó das Letras. Foto: Instituto Letras que Flutuam

Apropriação ou homenagem?

Sobre os questionamentos do Instituto Letras que Flutuam de uso da arte dos abridores de letras na coleção, a Riachuelo ainda não se manifestou. Mas Filipe Grimaldi, artista responsável por ela, reforçou que trabalha há uma década com sabedorias populares e que, nesta coleção em especial, usou peças de um alfabeto amazônico criado e registrado por ele há três anos, durante uma homenagem aos abridores de letras e ao mestre Luis Jr, em especial.

O artista disse ainda que parte do valor recebido no trabalho foi revertido ao Mestre Luís como forma de repartição de rendimentos e que, em toda divulgação feita da coleção, o mestre é nomeado e há sempre uma explicação sobre essa forma de arte.

“Pesquiso sabedorias populares Latino Americanas há 10 anos, dentre elas estão o Fileteado Portenho, Carroceria de Caminhão, Letra de Barco Amazônica, Cartazismos e letra Chicha Peruana. Todas essas sabedorias foram passadas de pintor letrista para pintor letrista e sempre cito meus mestres, mestres pelos quais fui autorizado a replicar e propagar esses saberes, trabalho diário que realizo em minhas redes”.

Filipe Grimaldi afirma ainda que divulga o trabalho dos abridores e que foi incentivado, ao longo dos anos, a “transmitir a sabedoria da letra amazônica e a usá-la fora da região”, inclusive em parcerias com o Instituto Letras que Flutuam.

Barco com tipografia tradicional. Foto: Idaias Freitas / Arquivo pessoal

Barco com tipografia tradicional. Foto: Idaias Freitas / Arquivo pessoal

Artistas tradicionais amazônicos precisam de visibilidade

Sâmia Batista destaca que incluir os artistas que desenvolveram e mantêm a prática cultural de “abrir letras” nos projetos comerciais é essencial para evitar que suas técnicas sejam exploradas sem o reconhecimento adequado. 

“O nosso maior desafio mesmo é gerar processo de autonomia para que os artistas populares, que são os abridores de letra, consigam estar no mesmo patamar de prestação de serviço, de criação artística, que uma pessoa que tem uma ampla visibilidade na internet, tem acesso aos mercados, a grandes marcas, a criativos. Então, o nosso desejo é esse: que os nossos artistas alcancem esse patamar para que eles sejam reconhecidos e façam os trabalhos que outras pessoas estão fazendo atualmente”

A coordenadora enfatiza a importância da educação dos mercados e consumidores sobre o uso ético das referências culturais. Uma conscientização sobre o consumo como um ato político e cultural, promovendo relações mais justas e educadas entre criadores, marcas e consumidores.

“É preciso uma educação dupla: educar os mercados sobre o uso ético das referências culturais que as empresas desejam investir. [Já há uma marca com este tipo de parceria. Que foi a primeira] a procurar o projeto para desenvolver um alfabeto e passou a utilizá-lo em suas coleções. Além disso, é importante educar os consumidores para que se tornem críticos e reconheçam que seu consumo é não apenas cultural, mas também político. Esses dois aspectos educacionais são fundamentais para promover relações mais justas”, destaca Sâmia. 

Barcos em São Sebastião da Boa Vista, no Marajó. Foto: Instituto Letras que Flutuam

Barcos em São Sebastião da Boa Vista, no Marajó. Foto: Instituto Letras que Flutuam

Além disso, o Instituto reforça o esforço contínuo para que a estética gráfica seja reconhecida como parte do patrimônio cultural da região amazônica, similar a outras expressões artísticas reconhecidas nacionalmente. O objetivo é ampliar e garantir que a prática criativa dos abridores de letras seja preservada e valorizada de maneira que beneficiem diretamente os artistas e comunidades que as mantêm.

“Nós temos o reconhecimento patrimonial, por exemplo, de uma cerâmica marajoara, de uma comida típica e de um estilo musical como o carimbó. No entanto, não possuímos o reconhecimento de uma estética gráfica. O projeto visa destacar que a letra decorativa amazônica é um aspecto cultural significativo de nossa paisagem, sendo produzida por indivíduos em contextos específicos. Isso a caracteriza como um bem cultural”.

Ela explica que “o processo educativo para aqueles que desejam utilizar essa estética em suas artes, designs e moda é essencial. É preciso que elas [artistas “não abridores de letra” e marcas] entendam que isso também é um bem cultural e que tem um vínculo patrimonial que ainda precisa ser reconhecido. Esse é um grande desafio e a gente espera conseguir contribuir para que esse reconhecimento seja ampliado”.

A discussão sobre apropriação cultural levanta questões importantes sobre o respeito e a inclusão dos artistas locais na exploração de suas tradições e saberes. É necessário garantir que as práticas culturais sejam valorizadas e que os artesãos sejam devidamente reconhecidos por suas criações.

Texto: Lucas Duarte
Montagem da página e acabamento: Alice Palmeira e Glauce Monteiro
Revisão: Glauce Monteiro
Direção: Marcos Colón

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