A abolição da escravidão no Amazonas e as lutas (de classes?) pela memória

Artigo reconta o processo de abolição da escravidão no Amazonas, destacando a atuação popular e os movimentos sociais que o impulsionaram

Montagem sobre a abolição da escravidão no Amazonas com imagens de Vinicius Matsumoto, do Acervo Abrahim Baze, de Walter Hunnewell, da Sociedade Ave Libertas e do Arquivo Nacional do Brasil. Arte: Alice Palmeira
Montagem sobre a abolição da escravidão no Amazonas com imagens de Vinicius Matsumoto, do Acervo Abrahim Baze, de Walter Hunnewell, da Sociedade Ave Libertas e do Arquivo Nacional do Brasil. Arte: Alice Palmeira
Montagem sobre a abolição da escravidão no Amazonas com imagens de Vinicius Matsumoto, do Acervo Abrahim Baze, de Walter Hunnewell, da Sociedade Ave Libertas e do Arquivo Nacional do Brasil. Arte: Alice Palmeira

Montagem sobre a abolição da escravidão no Amazonas com imagens de Vinicius Matsumoto, do Acervo Abrahim Baze, de Walter Hunnewell, da Sociedade Ave Libertas e do Arquivo Nacional do Brasil. Arte: Alice Palmeira

Em 2024 comemoramos os 140 anos da abolição formal da escravidão no Amazonas. Oficializada em 10 de julho de 1884, cerca de três meses após a província do Ceará e quatro anos antes do restante do Império, ela foi resultado de um conjunto de políticas públicas de compra de alforrias pelo Estado iniciadas em 1869 e da pressão de um movimento social que se desenvolveu na província desde a década anterior.

O que prevaleceu foi o projeto “emancipacionista”, que previa a indenização dos senhores pela perda de suas “propriedades” e que não organizou nenhum tipo de política pública que se propusesse a integrar os recém libertos à sociedade.

Datas redondas como essa proporcionam a oportunidade para que os debates acerca dos processos históricos saiam por um instante do campo restrito de algumas dezenas de acadêmicos especialistas para atingir um público mais amplo, de alguns milhares de pessoas, por meio de reportagens nos grandes veículos de mídia (impressos ou audiovisuais), sessões públicas e postagens em redes sociais acerca da data.

Embora, nesse ano, as referências à efeméride tenham sido bastante tímidas e modestas, talvez em parte devido à coincidência do aniversário de outros eventos históricos que chamam mais atenção atualmente, como os 60 anos do golpe civil-militar ou os 100 anos da revolta tenentista em Manaus.

Na historiografia mais tradicional (como nas obras de J. B. Farias e Souza e Arthur Reis) são destacadas as figuras políticas envolvidas no processo – os chamados “heróis” ou “grandes homens” – tais como os presidentes que governaram a província no período da campanha abolicionista – José Lustosa da Cunha Paranaguá e Teodureto de Farias Souto – ou os deputados da Assembleia Provincial que aprovaram as leis de emancipação, bem como os membros da Maçonaria, que a partir da ação benemérita e humanitária, supostamente teriam conduzido todo o processo.

Dr. Theodureto Carlos de Farias Souto. Governou a província do Amazonas de 1l de março a 12 de julho de 1884 - Foto: Acervo Abrahim Baze

Dr. Teodureto Carlos de Farias Souto. Governou a província do Amazonas de 1l de março a 12 de julho de 1884 – Foto: Acervo Abrahim Baze

Além da atuação dos “grandes homens”, também são destacados os fatores econômicos: o reduzido número de escravizados no Amazonas (que era a província do Império com o menor número de cativos) e o aumento das rendas públicas com os impostos da exportação do látex, então ganhando vulto, que teriam permitido o emprego dos recursos financeiros na libertação dos escravos de forma pacífica. De maneira geral, esse tom laudatório também é o viés dominante nas publicações e reportagens que rememoram a efeméride.

Estudos como os das historiadoras Angela Alonso (2015) e Maria Helena Machado (1994) demonstraram que o fim da escravidão no Brasil pode ser explicado por outros fatores, como as ações de resistência dos próprios escravizados, que organizavam fugas (individuais ou coletivas), quilombos e revoltas, e do movimento abolicionista, que ganhou força a partir final da década de 1860, mobilizando milhares de pessoas de diferentes segmentos sociais nos principais centros urbanos do país.

Tal perspectiva pode ser estendida ao Amazonas, onde surgiu uma das primeiras sociedades abolicionistas em atividade no Império, a Sociedade Emancipadora Amazonense, fundada em 1870. Esses fatores conjugados fizeram com que a escravidão entrasse em declínio na segunda metade do século XIX, de forma que quando a lei áurea foi promulgada, apenas 5% da população brasileira era escravizada.

Além das províncias do Ceará e do Amazonas, diversos municípios e cidades espalhados pelo Brasil já haviam se declarado “territórios livres”, principalmente no Rio Grande do Sul e em Pernambuco; na província vizinha do Pará, algumas cidades também já haviam extinguido a escravatura antes de 1888, como Benevides e a vila de Pinheiro. O ato da princesa apenas oficializou um processo que já estava ocorrendo e era, àquela altura, irreversível.

A assinatura da Lei Áurea no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, é acompanhada por uma multidão, em 13 de maio de 1888. Foto:Coleção Gilberto Ferrez (Antonio Luiz Ferreira/ Acervo Instituto Moreira Salles)

A assinatura da Lei Áurea acompanhada por uma multidão, em 13 de maio de 1888. Foto:
Coleção Gilberto Ferrez (Antonio Luiz Ferreira/ Acervo Instituto Moreira Salles)

Apresentar o processo histórico dando destaque às ações das autoridades políticas – governadores ou princesas – ou assinalando apenas as estruturas econômicas, pode levar à falsa impressão de que as “pessoas comuns” assistiram passivamente o processo ou que nem mesmo teriam possibilidade de fazer qualquer coisa a respeito.

Neste sentido, cabe aos historiadores comprometidos com as classes subalternas resgatar a participação ativa dos segmentos populares nos processos político-sociais e colaborar para a construção de outra memória a respeito deles.

E com “construir outra memória” não queremos dizer fabricar, fantasiar ou inventar um passado heroico que efetivamente não existiu, mas resgatar a participação efetiva desses sujeitos, mesmo que ela tenha sido tímida, ambígua e contraditória, afinal, em nenhum processo histórico as pessoas ditas “comuns” simplesmente assistiram passivamente o desenrolar dos acontecimentos, atônitos e “bestializados”.

As classes políticas dirigentes sempre tomam suas decisões – “conduziram a história” – tendo em vista aqueles que elas dominam, para manter ou ampliar a dominação, mas também para fazer concessões ou impedir transformações mais amplas que estas ameaçam arrancar.

Os segmentos populares e subalternos do Amazonas atuaram ativamente de diversas formas a favor da causa libertária: os próprios escravizados fugiam ou guardavam pecúlios para comprar sua carta de liberdade, com intuito de reconstituir os laços familiares que a escravatura cortava, ou ainda estabeleciam relações de compadrio que os beneficiasse, conforme assinalado pelo historiador Ygor Olinto Cavalcante (2015).

Estudantes das escolas primárias e secundárias, profissionais liberais e mulheres das elites locais fundaram sociedades emancipacionistas que promoviam saraus, bazares, sorteios e festividades com o intuito de arrecadar fundos para a compra das cartas de alforria.

Elas se utilizavam de diversas formas de comunicação, tais como jornais – fosse os de grande tiragem ou os especificamente abolicionistas –, palestras, conferências, discursos e peças teatrais (como o clássico estadunidense A cabana do pai Tomás, encenado nos teatros manauaras), em espaços públicos ou privados, para trazerem à esfera pública o debate sobre o escravismo, denunciarem os horrores aos quais os escravizados estavam submetidos no cotidiano e fazerem a propaganda da causa libertária, conforme destacado pelo historiador Provino Pozza Neto (2021).

Pessoas escravizadas no Amazonas em 1865. Foto: Walter Hunnewell

Pessoas escravizadas no Amazonas em 1865. Fotos: Walter Hunnewell

1 É importante destacar que as imagens produzidas por Walter são fruto da expedição realizada pelo casal Louis e Elizabeth Agassiz, da Universidade de Harvard, com o objetivo de conduzir um estudo eugênico, que atualmente é reconhecido como racista e ultrapassado.

A campanha não ficou restrita à capital, mas se espraiou pelas vilas, freguesias, lugares e municípios do interior, onde também foram fundadas associações abolicionistas, tais como a Sociedade Abolicionista de Manicoré, a Sociedade Abolicionista Itacoatiarense 11 de Junho, a Associação Libertadora Codajaense e o Clube Abolicionista Manacapuense. Também foram formadas comissões libertadoras nos municípios de Coari e de São Paulo de Olivença, dentre outros.

Vários membros das elites políticas e econômicas realmente fizeram parte dessas associações libertadoras, mas elas não eram compostas exclusivamente pela “alta sociedade”. Em trabalho recente (Braga, 2024), destacamos a participação dos trabalhadores urbanos, livres e qualificados, denominados no período como “artistas” ou “artífices”, na campanha abolicionista.

Eram tipógrafos, ferreiros, alfaiates, barbeiros e sapateiros que fizeram parte das associações emancipacionistas, compareceram às conferências e passeatas e colaboraram financeiramente para a alforria de vários escravizados.

Alguns mais radicais podem até mesmo ter auxiliado na fuga dos cativos, praticando o “acoitamento” (como se chamava na época o ato de abrigar ou amparar aos fugitivos). Foram atores no processo histórico, não meros coadjuvantes ou espectadores.

Para falar em termos mais concretos, o processo de abolição formal da escravidão no Amazonas obra apenas dos presidentes e deputados provinciais, mas também de vários sujeitos destacados pelas obras citadas acima, tais como Bernardo Dias de Souza e Antônio Faustino de Oliveira, dois dos catraieiros que fecharam os portos manauaras para a carga e descarga de escravizados em 1884, inspirados pelos jangadeiros do Ceará que fizeram o mesmo anos antes.

Ou pelos tipógrafos dos jornais manauaras, que fizeram parte de várias sociedades emancipacionistas e organizaram a publicação pró-libertação Ave Libertas. Ou pela dona Carolina Braga, uma das diretoras da associação Amazonas Libertadoras, formada exclusivamente por mulheres, que arrecadava fundos para a manumissão de escravizados.

Ou ainda por Domingos, que fugiu de seu senhor na região de Codajás, em 1875; pela liberta Maria Carlota, que com muito esforço acumulou pecúlios e em 1876 comprou a carta de alforria de seu filho, Januário; e por Brazília Maria, que acumulou pecúlios que foram complementados com parte do funde de emancipação para comprar a própria carta de alforria.

Capa do Jornal da Sociedade abolicionista Ave Libertas que lutava contra a escravidão. Foto: Sociedade Ave Libertas

Capa do Jornal da Sociedade abolicionista Ave Libertas contendo sua diretora Leonor Porto. Foto: Sociedade Ave Libertas

Tendo isso em vista, a província poderia contar com o menor número de escravizados do Império naquele momento e seus cofres poderiam estar folgados devido a arrecadação dos impostos advindos da exportação do látex, mas os 300 contos de réis destinados para a manumissão dos escravizados em 1884 talvez não fossem propostos e aprovados se não houvesse uma vigorosa mobilização popular pela extinção da escravidão na província, que mobilizou diversos segmentos sociais e atuava pelo menos desde a década anterior.

Sem ele, o Amazonas poderia ter abolido apenas em 1888, acompanhando o restante do país, apesar dos fatores econômicos favoráveis. Abolir a escravidão foi considerada uma prioridade por amplos setores da população local, o que demonstra que ela pode participar nas decisões de como se utiliza o orçamento público do Estado.

A campanha abolicionista é afinal um processo histórico que merece ser relembrado, pois talvez tenha sido o primeiro movimento social contemporâneo do Amazonas e mobilizou com êxito segmentos populares e subalternos da então modesta capital da província (cuja população foi estimada em cerca de 38.720 habitantes no ano de 1890).

No que pese os seus limites, que também devem ser assinalados, já que a população recém liberta, em geral com baixa instrução e quase nenhuma posse, foi preterida nos mundos do trabalho, ocupando os postos mais precarizados e com menor remuneração, e teve suas manifestações culturais (religiosas, artísticas ou de sociabilidade, dos cultos aos orixás à capoeira e ao batuque) reprimidas no imediato pós-abolição, já na nascente República.

O resgate da atuação das pessoas ditas comuns nos processos históricos pode inspirar aquelas do presente a se mobilizarem pelas causas contemporâneas. Cabe aos historiadores sociais revelar não apenas os processos históricos de rebeldia e resistência explícitas e deliberadas, geralmente ignorados e apagados pela histórica oficial e oficialesca, como também lançar luzes acerca da participação de membros dos segmentos populares e subalternizados nos grandes eventos dessa mesma história oficial, como a Abolição, seja no Brasil ou no Amazonas.

Foi este o intuito deste texto ao destacar figuras como as de Brazília Maria, Carolina Braga e Bernardos Souza, responsáveis pela abolição no Amazonas tanto quanto Teodureto Souto, embora bem menos lembrados do que o então presidente da província.

Referências

Marcos Lucas Abreu Braga é graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Amazonas (2015-2018). Mestre em História Social pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (PPGH/UFAM).  Atualmente é professor na rede pública de educação básica do Amazonas (SEDUC-AM). Possui interesse nos campos da História Social do Trabalho e do Movimento Operário na Amazônia na Primeira República.

Revisão e edição: Glauce Monteiro
Montagem da Página e Arte: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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