Descolonizando afetos: uma entrevista com Geni Núñez sobre outras formas de amar

Escritora, psicóloga e ativista indígena, Geni Núñez, fala sobre obra que aponta relação entre colonização, monogamia e não monogamia

Geni NÚñez discute descolonização ao refletir sobre relações monogâmicas. Arte Isabela Leite.
Geni NÚñez discute descolonização ao refletir sobre relações monogâmicas. Arte Isabela Leite.
Geni NÚñez discute descolonização ao refletir sobre relações monogâmicas. Arte Isabela Leite.

Geni Nuñez discute descolonização ao refletir sobre relações monogâmicas. Foto: Divulgação. Arte: Isabela Leite.

“Vivem juntos quanto tempo querem”, escreveu indignado, em carta, o padre jesuíta Diogo Ferrer sobre os indígenas guarani em 1663. O clérigo continuou: “[…] e quando o marido quer se casar com outra mulher deixa aquela, e o mesmo faz a mulher, e não parece que estes índios em seu natural conhecem a perpetuidade do matrimônio. A nenhum deles isso soa ofensivo”.

Os padres, a serviço da invasão portuguesa, se atormentaram ao ver que haviam povos indígenas que tinham outras formas de se relacionar e não conheciam a santidade do matrimônio monogâmico, com uma ideia de amor condenada à eternidade.

Até que a morte nos separe? Sério?

Deve ter dito algum indígena guarani na língua da sua etnia, se perguntando como esses homens de bata podiam prever o futuro e prometer um tempo infinito a alguém.

A colonização europeia na América inaugurou o início de uma era de imposição do projeto de poder cristão-mercantil-ocidental-epistêmico, não necessariamente nessa ordem. Os povos indígenas tiveram que renunciar a sua cosmologia e aceitar um sistema monoteísta, que pregava a existência de um deus único. Foram forçados também a renunciar seus modos de vida e formas de amar, tendo que se “contentar” com uma pessoa pelo resto da vida, em um sistema monogâmico. 

A renúncia ainda era uma espécie de “misericórdia” oriunda da reflexão de alguns teólogos, que chegaram à conclusão de que “pegava mal” escravizar indígenas, considerados pela igreja católica como sujeitos em um estado de transição entre o “primitivo” e o “civilizado”. Para a Europa, essas almas poderiam ser salvas, catequizando-as. Não era o caso dos negros escravizados da África.

De forma muito “civilizada”, durante as missões militares de pilhagem do território, os invasores europeus deviam ler para os indígenas, diante de um escrivão público, um “Requerimiento Que Se Ha de Leer A Los Indios“, de 1513, que os incentivava a se converter à fé católica, como num ritual burocrático. Segue um trecho:

Senão o fizerdes, ou nisto puserdes maliciosamente dilação, certifico-vos que com a ajuda de Deus eu entrarei poderosamente contra vós e vos farei guerra por todas as partes e maneira que puder, e vos sujeitarei ao jugo e obediência da Igreja e de Sua Majestade e tomarei vossas mulheres e filhos e vos farei escravos, e como tais vos venderei, e disporei de vós como Sua Majestade mandar, e tomarei vossos bens e vos farei todos os males e danos que puder.

Detalhe: não tinha intérprete. Parece uma proposta e tanto, hein?

A partir daí, os povos indígenas da chamada América foram apresentados a um mundo binário, permeado por culpa e pecado, encapsulado em categorias encharcadas de valores cristãos. Bem X mal, homem X mulher, sagrado X profano, humano X animal, morte X vida. 

Outras formas de amar

O que lhe vem à cabeça quando se fala em não monogamia? Calma. Não precisa fechar a reportagem. Essa é uma daquelas conversas que são interditadas logo no começo, muito por conta de um certo fanatismo e pela ausência de uma comunicação adequada que envolve a discussão deste tema.

Há pessoas que se sentem sinceramente ofendidas pelo fato de existir outras formas de se relacionar. Há também as que vendem um discurso sobre não monogamia meio embalado, esbarrando quase ali em um discurso de seita, como se fosse a solução para todos os problemas do mundo, quando não é. Nos nossos tempos, além de política, futebol e religião, parece que está proibido também falar de não monogamia.

É um assunto que é tão complexo, quanto é simples. Da mesma forma que as pessoas, principalmente depois que elas desenvolveram essa tecnologia moderna chamada “amor”, fundamental para a sobrevivência da nossa espécie no planeta. Não sei se soou piegas. Mas gosto de pensar o amor nesses termos da tecnologia, precisamente uma tecnologia da natureza, da mesma forma que a cultura, o corpo, a linguagem, o gênero, o espírito, entre outras.

Vínculos emocionais com outras pessoas parecem ser uma boa quando você está em um grupo que precisa de comida, cuidado e proteção. Não que eu curta critérios utilitários, mas essa foi uma das principais formas com as quais tivemos contato e experienciamos a categoria abstrata e diversa que é o amor.

Além de impulsionar a criação dos poetas, infinitas músicas e filmes, o amor também se demonstrou uma excelente ferramenta de dominação usada pela colonização na América. 

Você já parou para pensar como você aprendeu a amar? E se eu te disser que isso está relacionado à catequização, propriedade privada, privatização de corpos, feminicídio e à imposição de uma monocultura de afetos?

Descolonizando afetos

Mais de 330 anos depois que o padre jesuíta Diogo Ferrer escreveu abismado sobre as relações amorosas entre os guarani, especificamente, no dia 28 de fevereiro de 2024, tive a oportunidade de conversar com uma descendente da etnia: Geni Núñez, também conhecida como Genipapos, no Instagram, rede social onde ela acumula mais de 360 mil seguidores.

Geni é ativista indígena, escritora, psicóloga e doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina. Em suas pesquisas, ela abre um leque de outras possibilidades e formas de compreender e praticar o amor, assentado nas cosmologias do povo guarani, mas não apenas. 

Em 2023, ela lançou o livro “Descolonizando afetos – Experimentações sobre outras formas de amar” (Planeta de Livros – Selo Paidós), uma ampla pesquisa histórica e política da monogamia, abordando a não monogamia como um ‘não modelo’, ao invés de uma alternativa.

De forma bem sucedida e poética, a autora enriquece o debate partilhando reflexões contracoloniais sobre o tema, tanto do ponto de vista histórico e macropolítico, quanto em relação às nuances cotidianas e interpessoais.

Nos encontramos para conversar ao cair da tarde de uma quarta-feira, em um auditório da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), em Manaus, na ocasião do lançamento do seu livro na capital amazonense.

Não pude deixar de notar que quem marcava presença no ambiente, majoritariamente, eram artistas das quais eu conheço bem o trabalho. Artistas trans que, de alguma forma, trazem em seu trabalho a subversão e o questionamento de padrões de comportamento e códigos morais da sociedade capitalista-cristã, e as imposições sobre a alma e o corpo. Mulheres musicistas inseridas em um circuito cultural alternativo que também questionam os papéis sociais ligados a marcações de gênero, raça e classe.

Senti um tipo de energia de insurreição pairando no ar, uma rebeldia nas entrelinhas que irradiava de corpos e mentes dissidentes que se encontravam para celebrar as possibilidades de amar, florescendo nos escombros de uma sociedade em colapso, que se arrasta em um sistema econômico-subjetivo que não dá mais conta da realidade. Geni foi cortejada com muito carinho pelos seus leitores enquanto autografava os livros.

Era a retribuição do acolhimento que seus escritos causavam. Me pego pensando como palavras tão envernizadas de poesia e carinho podem também ser, uma a uma, um golpe de flecha no âmago da colonização que está dentro e fora da gente.

Como a autora diz ainda na introdução do livro, essa é a proposta da obra.

A descolonização pode ser sentida como uma desordem, um caos, porque a ordem e a normalidade são as características da colonização. […] É por isso que minha aspiração neste livro é poder contribuir, um pouco que seja, para que essa desordem, esse chacoalhar aconteça”. 

A Revista Amazônia Latitude conversou com a autora, que nos respondeu com seu tom de voz sereno, sempre enunciando com carinho as palavras que escolhe com sabedoria e responsabilidade.

Amazônia Latitude — Pensei em começar essa conversa falando sobre apocalipse. Invocando uma fala do filósofo quilombola Antônio Bispo, que diz que estamos passando por um apocalipse, mas não é exatamente aquele que tá na Bíblia cristã, mas sim um apocalipse de modos de vida, de ser e estar nesse mundo. E isso tem a ver também com a nossa forma de amar. Que outras formas de amar são essas que você fala no seu livro?

GENI NÚÑEZ  Eu penso que a gente vive, como o Mestre Bispo dizia, uma falência de velhas respostas e há um esgotamento tanto da Terra, quanto do ponto de vista cosmogônico e político desse sistema. Não é algo novo, mas talvez seja recente o interesse por essas perspectivas. Um exemplo que eu queria trazer é de que as relações também são afetadas pela colonização, como todas as dimensões da vida são e umas das características que definem esse modo cristão-colonial é a fixidez, a imutabilidade e a permanência. Essas outras formas de amar não teriam esses pressupostos como fundamento. Então vai ter a possibilidade de concomitância, a possibilidade de não fixidez, o tempo não é necessariamente eterno. São outros referenciais, outros pontos de partida.

Uma triste ironia é que o agronegócio, além de financiar monoculturas de soja, trocando a biodiversidade de um território por uma plantação única, também financia uma monocultura musical nas rádios, que é o sertanejo. Esse estilo atua quase como um porta-voz de uma sociedade cis-heteronormativa, falando sobre relacionamentos, traição, apegos. Não tem como deixar de fora o papel da cultura na reprodução desses comportamentos e formas de amar. Somos ensinados a conduzir nossos afetos de uma determinada maneira colonial e eurocêntrica. Como funciona essa monocultura do afeto?

Essa pergunta me lembrou o trabalho da Vandana Shiva, que é uma grande referência mundial sobre as monoculturas. Ela comenta de um projeto de várias empresas relacionadas a essa devastação do meio ambiente, que tem tentado implementar uma agricultura para o mundo todo. A tentativa deles é de que no mundo todo, as formas de cultivo específicas e tradicionais sejam substituídas por uma só. A gente vai ver que em todos os campos da sociedade, o desejo, o final feliz dessa história é de que haja uma homogeneidade absoluta. Então tudo aquilo que desobedece é visto como um problema, um entrave pro progresso, pro desenvolvimento, pra civilização. Essa imagem da monocultura, ela ilustra muito bem aquilo que não admite a concomitância. Ao passo em que a floresta é exatamente a expressão mais absoluta da multiplicidade.

Existe um discurso comum na internet, de pessoas que falam com muito orgulho de serem monogâmicas. Me causa estranheza da mesma maneira que aquelas pessoas que afirmam ter orgulho de ser hétero ou de ser homem. Não monogamia é um tema polêmico, que toca em um ponto desconfortável nas pessoas. Por que é tão difícil falar de não monogamia e outras formas de amar?

Há vários fatores, mas um deles é essa internalização, em que a maioria das pessoas vai acreditar que aquilo [monogamia] é efeito de uma escolha individual e que, portanto, elas devem defender aquilo como devem defender a si mesmas. Então, deixa de ser algo desvinculado de uma moral, para ser uma defesa daquilo que se é no mundo. As pessoas se sentem muito atacadas com a mera menção, às vezes, a esse tema.

Qual a relação entre a forma de amar que nos é ensinada com feminicídios e casos de violência contra a mulher?

Essa violência é muito explicada através do machismo no geral. Só que, se fosse simplesmente uma questão de machismo, a gente teria homens quaisquer, aleatoriamente, assassinando outras mulheres, mas o que a gente vê é que, na maioria dos casos, os crimes são cometidos por companheiros ou ex-companheiros das vítimas. A gente vê nesses dados que é o jeito de amar e que produz a violência. É esse tipo de situação que promove essa autorização de que aquele corpo não é da própria pessoa e que, se ela desobedecer, ela tem esse efeito político de sofrer essa punição.

Você acredita que o amor é uma tecnologia?

Interessante. O debate que eu conheço sobre essa discussão me remete à Teresa de Lauretis com a noção de tecnologia de gênero. Nesse sentido, eu posso entender que faz parte sim desses dispositivos e aí é muito importante desassociar o amor de algo transcendental, para pensar o amor como uma ferramenta, se a gente pensa na etimologia da palavra tecnologia. É algo que se maneja com as mãos. E é de fato isso que acontece. Penso que a grande eficácia dessas violências se dá porque elas vêm em nome do amor. Então, uma coisa é a gente se defender de quem a gente vê como inimigo, outra coisa é se defender de quem a gente foi ensinado a vida toda a respeitar e amar mais do que tudo.

Existem outras formas de amar que nos foram negadas?

Eu penso que elas vêm sendo silenciadas, mas elas sempre existiram. O fato da norma se colocar de modo tão incisivo e invasivo denuncia a sua própria insegurança, que é paradoxal, né? Mas se ela fosse assim tão consensual, ela não precisaria da violência para se afirmar.

Na orelha do livro, você afirma que “quando a gente questiona essas monoculturas, é comum nos sentirmos em perigo, mas não estamos. O risco real está em permanecer nelas”. Porque parece ser tão doloroso desafiar essas formas empurradas pra gente? Pessoas com corpos e gêneros dissidentes,  com os corpos marginalizados, não internalizam esse jeito, porque lhe é estranho e elas buscam novas formas. Por que é tão doloroso romper com essa essa reprodução?

Eu tenho pensado que, assim como essas violências da monocultura estão no alimento que a gente consome, na roupa que a gente veste, no ar que a gente respira, também isso ocorre de certa maneira nas nossas veias. Então, é um processo de muitos séculos que dar-se conta dessa discussão não tem o efeito automático do seu desaparecimento. E isso é importante de ser acolhido. A gente também é limitado, é frágil, dá conta de pouco, né? Penso muito na importância de algo coletivo nessa caminhada. E eu penso que dói em um lugar também de que a gente aprendeu que o nosso valor no mundo está posto no quanto a gente completa alguém. Se essa conta não fecha, a pergunta que vem é: o que que eu fiz de errado? O que faltou? Por isso que não é um debate de teoria e prática. A teoria é uma prática. 

Qual é a contribuição dos saberes indígenas para construção de um novo mundo que seja bonito e poético não só para uns, mas para todos?

É um paradoxo, mas ao mesmo tempo algo muito importante, porque eu penso que só nomear a violência e expor a violência também é uma violência. Então, a gente tem insistido em trazer nossa arte, nossa poesia, nossas pinturas, nossas cosmogonias. Enquanto isso existir, vai existir a possibilidade de outros mundos. Algo que a gente diz no povo guarani é que a gente nunca teve o desejo de converter outro povo aos nossos deuses. É algo que o Franz Fanon também diz, que o sonho de dominar o mundo é um sonho branco. Então, o nosso objetivo de luta não é dominar o mundo, mas libertá-lo da dominação.

Monogamia e feminicídio: quando o “amor” mata

A partir da palavra monogamia, nascem outras: traição, infidelidade, desconfiança, insegurança, deslealdade. Termos muitas vezes abstratos, genéricos, pessoais até. Como Geni propõe, é necessário descamar essas palavras e ver o que elas carregam dentro de seus significados.

O Código Civil afirma que é dever de ambos os cônjuges a fidelidade, mas poderia estar escrito “você, apesar de adulto, não tem direito ao seu próprio corpo. É preciso pedir a autorização de um outro adulto para decidir o que fazer com ele“. Deste ponto de vista o romantismo dá lugar ao receio porque a monogamia prevê um domínio, uma exclusividade que dá ao parceiro(a) controle sobre o conjugue por meio da promessa de fidelidade e felicidade.

E neste quesito, o amor se aproxima da violência.

 Ato denúncia em frente à Câmara Municipal, organizado pelo campanha Levante Feminista contra o Feminicídio, colocarão 210 cruzes nas escadarias do Palácio Pedro Ernesto, simbolizando cada uma das 111 mulheres assassinadas no estado em 2022 e as 99 mulheres assassinadas em 2023. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Ato denúncia em frente à Câmara Municipal do Rio de Janeiro pela campanha Levante Feminista contra o Feminicídio. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Como demonstra o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a maioria esmagadora dos feminicídios cometidos são considerados feminicídios íntimos: significa que foram praticados pelo parceiro íntimo da vítima, ou seja, por um companheiro ou ex-companheiro.

Daso 1.467 mulheres mortas em crimes cuja motivação foi apenas o fato de ser mulher ou ser reconhecida socialmente como pertencente ao “feminino”, 64,3% foram assassinadas dentro de casa. Apenas em 2024, foram 258.941 agressões em casos de violência doméstica. Nos casos de feminicídio, 90% dos assassinos são homens, sendo 63% deles parceiros íntimos e 21,2% deles ex-companheiros dessa vítima.

A estatística aterrorizante aponta ainda que 88,2% das vítimas de estupro são mulheres. Aqueles que tem seus corpos (memória, história e mentes) invadidos porque pensa que merece ter acesso à eles independente da vontade daquela mulher.

A “posse” inerente a este tipo de relacionamento – abusivo e violento – é o oposto do que Geni Núñez apresenta em sua obra. Ao questionar como aprendemos a amar e sermos amados vemos uma dimensão onde toda a estrutura social tenta dos convencer que só existe um caminho onde um labirinto de sentimentos, escolhas e possibilidades sempre existiu.

Ao discutir como “uma estrada”, na verdade, pode ser um “labirinto infinito”, podemos – apenas talvez – repensar se a monogamia é uma escolha que fizemos ou a estrutura de controle imposta pela educação, religião, família, indústria cultural e outras instituições a cada um de nós. E tudo bem, se essa for a opção particular de relacionamento afetivo-sexual entre duas pessoas, mas também deve estar “tudo bem” se não o for. 

Capa "Descolonizando afetos: Experimentações sobre outras formas de amar" de Geni Nuñez.Descolonizando afetos: Experimentações sobre outras formas de amar

Autora: Geni Núñez

Ano: 2023

Páginas: 192

Idioma: Português

Publicado por: Editora Planeta de Livros (Selo Paidós)

Garanta sua cópia aqui.

Texto: João Felipe Serrão
Edição e Revisão: Glauce Monteiro
Montagem de Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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