Poetas e poéticas que despontam no médio Xingu

Arte: Colagem de Fabrício Vinhas sobre fotos de Marcos Colón

Arte: Colagem de Fabrício Vinhas sobre fotos de Marcos Colón

Resumo: O projeto “Poetas e Poéticas do Médio Xingu” surgiu a partir da observação das recorrentes cenas de fazedores culturais que residem em Altamira (PA), o maior município do país em extensão territorial. Altamira é também um dos epicentros das questões climáticas que envolvem o futuro do planeta e a preocupação em torno de um ponto de não retorno da floresta amazônica, devido à exploração predatória das últimas décadas. Apesar de apresentar altos índices de homicídio, suicídio, prostituição e miséria (muito por influência da hidrelétrica de Belo Monte), existem tentativas de reconstrução de uma cidade culturalmente esfacelada.

O artigo a seguir foi produzido a partir de pesquisa publicada na Revista Baraquitã em setembro de 2023, que está disponível neste link.

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Ao longo desta pesquisa, que envolve a noção de arte poética, levamos em consideração tanto a tradição da teoria da literatura quanto suas heranças posteriores, a fim de se vislumbrar uma dimensão conceitual que possa ser articulada às especificidades do trabalho investigativo. O termo “poéticas”, presente no título da pesquisa, foi assim designado devido à sua amplitude, visto que abrange inúmeras expressões artísticas existentes no Médio Xingu, escritas ou orais.

Dentro da abordagem das manifestações orais, observamos a presença das cosmopoéticas indígenas que nos direcionam a um cenário distinto da literatura convencional. Compreendemos que abordar as poéticas desse território diversificado reafirma justamente a ideia de que a poesia não se restringe a textos escritos e impressos. Ela manifesta-se, por exemplo, nos cantos desenvolvidos pelos povos originários, ou nas letras de rap criadas por jovens talentosos que resistem diariamente à violência, à pobreza e à injustiça social.

A bacia do Xingu e seus afluentes no estado do Pará se tornaram um lar para povos e culturas que fazem parte de um território multilíngue que remonta o Tupi (povos Asuriní do Xingu, Araweté, Parakanã, Juruna, Xipaya e Kuruaya); o Macro-Jê (povos Xikrin e Kararaô); o Karib (povo Arara); além dos já conhecidos sotaques do português do Brasil e suas tantas influências afro-brasileiras dentro e fora dos quilombos e reservas extrativistas.

Essa terra acolhedora, rica em inúmeras narrativas e memórias, já foi e ainda é um espaço de lutas e desafios para quem nela se estabelece. É um lugar marcado por diversos episódios conflituosos que ocasionaram as migrações de diferentes povos para essa região. Todos esses findam por apontar para a formação desse território heterogêneo, resultado das culturas que já habitavam nessa área e também das outras bagagens trazidas pelos imigrantes.

Muitas vezes, no contrafluxo das decisões políticas e forças dos poderes locais, emergem diversas expressões culturais ligadas à região, que integram ou disputam espaço com o massivo da cultura brega, do sertanejo universitário e do gospel. As feiras da agricultura familiar são uma das características da cidade, e se sustentam resilientes diante dos grandes do agronegócio, assim como os festivais voltados à pecuária e à pesca também reforçam e divulgam um pouco desse pluralismo cultural. Os bares e casas noturnas, por sua vez, são outros espaços bastante procurados nas noites quentes de Altamira.

Eventos culturais e literários se fortaleceram nos últimos anos, o que nos chamou a atenção. Afinal, é nítida a heterogeneidade cultural que se apresenta de maneira marcante não só em Altamira, mas também nas cidades circunvizinhas. Vale destacar a existência de uma cultura e vivência literárias reconhecidas pelas Faculdades de Letras e Etnodiversidade; pela Academia Altamirense de Letras e Academia Transxinguana de Literatura de Cordel; pelos Coletivos de Poetas Marginais; pela Festa Literária Internacional do Xingu (FLIX), além de toda sorte de expressões artísticas da oralidade desenvolvidas pelos povos tradicionais da região.

Após essa observação inicial, surgiu o interesse e, ao mesmo tempo, a necessidade de responder às perguntas: quem são os poetas do Médio Xingu? Quais são as produções poéticas dessa região?

A primeira fase da pesquisa enfrentou quase a ausência de bibliotecas e livrarias. Exceto a presença de uma editora comercial ligada ao ensino a distância, localizada em Altamira, não se fala muito sobre edição de obras literárias, senão com o livreiro Moisés Ribeiro, que negocia com editoras brasileiras e sobrevive da venda de volumes essenciais da literatura, filosofia política, antropologia e sociologia no shopping popular denominado Camelódromo.

A partir de visitas a essa e outras livrarias da cidade e do entorno, pesquisas em acervos da Universidade Federal do Pará, da Biblioteca Municipal, em acervos digitais e páginas da internet, identificamos várias publicações locais. Em paralelo, o levantamento audiovisual de produções expandidas (videoclipes, declamações, performances) foi importante para o avanço e a compreensão dos contornos da investigação. Dessa primeira etapa, criou-se um banco de dados sobre o que já foi produzido em poesia e algo mínimo sobre o perfil sociocultural desses poetas.

Quem são os poetas do Xingu?

O Médio ou Pólo Xingu é constituído por dez municípios: Altamira, Anapu, Brasil Novo, Medicilândia, Pacajá, Placas, Porto de Moz, Senador José Porfírio, Uruará e Vitória do Xingu. A pesquisa registrou poetas e poéticas em oito deles.

Ao todo, foram reunidos 75 registros, sendo 55 escritos (levando em conta poetas que publicaram seus livros individualmente ou em antologias) e 20 registros em áudio e vídeo (disponíveis principalmente no YouTube, em canais individuais ou coletivos). Das manifestações expressas por apenas um indivíduo, identificamos 40 homens (56%) e 31 mulheres (44%).

Ao aprofundarmos a pesquisa, observamos que os textos a que tivemos acesso formavam cinco núcleos de práticas poéticas: poetas de confrarias literárias; poetas de expressões populares; poetas alternativos/periféricos/marginais; poetas vinculados às universidades; poéticas, artes verbais e regimes discursivos originários.

Livros pesquisados no levantamento sobre poetas e poéticas do médio Xingu| Foto: Arquivo de Edmon Neto

O primeiro deles envolve os poetas vinculados a confrarias literárias, sendo a Academia Altamirense de Letras, que existe desde o início dos anos 2010, a evidência imediata da circulação de literatura na região do Médio Xingu.

O membro fundador da academia com 37 cadeiras, o notório professor e poeta João Jesus, publica desde o final dos anos 1980. É autor de obras como “Camponeses” (1997) e “Cantos e lamentos” (2018). Com temáticas ligadas à terra, seus poemas exploram uma Amazônia ceifada pelas mãos dos poderosos.

Nessa mesma linha está Sônia Portugal, poeta de Barrinha (SP), há muitos anos em Altamira, publicando também desde os anos 1980 – destaque para a obra “Anamã” (2017), livro composto de um único poema narrativo, a respeito de um acidente ocorrido na Ilha do Marajó com uma lancha que carregava lavradores para Altamira em 1970.

Também da Academia Transxinguana de Literatura de Cordel, fundada em 2019 e que vem desenvolvendo um trabalho junto a cordelistas experientes, encontramos o pernambucano João de Castro, que há muitos anos é um dos principais incentivadores do cordel na região e organizador de diversas antologias.

Como de costume, os cordéis podem abordar as mais variadas questões, sejam sociais, ou até mesmo algum acontecimento regional, como é o caso do “Naufrágio em Vila do Conde” (2016), de Mariano Silva, que narra o desastre ambiental e social que ocorreu na Vila do Conde, em Barcarena (PA), em 2015.

É comum também aparecerem poemas religiosos, além dos numerosos poemas elegíacos sobre figuras que se tornaram martirizadas pela luta popular em defesa dos mais necessitados, como Aldemir Alfeu Federicci, o Dema, e Dorothy Stang. Embora seja perceptível que a região tenha vivido um aumento expressivo de igrejas evangélicas, há ainda resquícios, na igreja católica, de práticas em consonância com a teologia da libertação no Médio Xingu.

“Em Cantos e poesias”, o poeta e agricultor João Mendes, analfabeto que teve seu livro transcrito por vários colaboradores, deixa o leitor perplexo na estrofe que diz:

“Este ano aqui na Prelazia, 80 anos se passaram. Dom Erwin, ele celebrou missa com colete à prova de bala”.
João Mendes, poeta e agricultor

Há, ainda nesse núcleo, poetas envolvidos na luta popular, como Antônio Claret Fernandes, atuante no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Desponta, nesse recorte de vida amazônica, uma juventude periférica, assumidamente marginal, que forma um terceiro núcleo de poetas. Uma juventude majoritariamente preta e de origem (nem sempre reconhecida) indígena.

Práticas poéticas mais evidentes nos últimos anos se deram com o Coletivo de Poetas Marginais, que publicou o e-book “Um pouco de tudo de nós”, com poemas de Vitoriano Bill, Aline Pereira, Devaneios e Soll, dentro de uma série de eventos apoiados pela Lei Aldir Blanc. Muitos desses poetas estão ligados ao movimento hip-hop, singular em Altamira.

Na ocupação de praças e estabelecimentos públicos, poetas talentosos, com a palavra e o ritmo em sintonia, resistem bravamente à violência, à pobreza e à injustiça social. Tudo isso com o peso de suas palavras, na ética esportiva das batalhas de MCs. O Altas Batalhas, evento comandado pelo multiartista Joaka Barros, de maneira exemplar conduz performances de vidas urgentes, executadas por jovens que aprenderam e se habituaram a organizar os seus próprios gritos.

Durante a pandemia, Joaka produziu e dirigiu, na orla de Altamira, a Trapixo Sessions, com videoclipes de vários MCs ligados ao coletivo Reação de Rua. Patinhas, Nego Jão, Lovers Gui, Miúdo de Nome, Sôza, Tahina Kun Galante, Osny Mubarack, Vizage, Rafael MC, Souza, o próprio Joaka Barros, o pré-adolescente Hiago MC, todos esses participam da série com suas letras afiadas e combativas.

Destacam-se também os MCs Fernando de Oliveira (compositor e multi-instrumentista) e Rodrigo Costas (MC Poeta Marginal), segundo o qual “Altamira é mãe severa” e cujas performances voco-corporais estão disponíveis no YouTube.

As batalhas preparam novos MCs que começam desde novos a acompanhar os eventos e a se concentrar na produção de suas rimas e de seus ritmos particulares na evidência de um comum partilhado. Muitos têm participado de etapas regionais e nacionais em outras batalhas, para onde levam a experiência de viver nas periferias de Altamira, muitas tomadas pelo tráfico de drogas e pelas disputas entre facções criminosas.

Um quarto núcleo de poetas envolve aqueles que já passaram pela universidade e com ela mantêm alguma relação. Muitos estabelecem vínculo com o Médio Xingu, ora porque nasceram na região e se mudaram dela; ora porque vieram para cá, mas nasceram em outras regiões.

É o caso de Laura Nogueira, poeta de Uruará, hoje residente em Belém, onde estudou letras. Laura publicou os notáveis “Poema Pequeno” (2016) e “Habitamos sem rosto” (2022), de onde se retira um verso como “Minha poesia vem de um país de cinzas, de um mundo de cinzas”.

No caso do poeta e editor curitibano Jaime Jr., há um trabalho com a poesia e o ensino na Faculdade de Engenharia Ambiental no campus de Altamira. Temas relacionados à terra, à floresta e à vida aparecem recorrentemente em seus poemas. Trata-se de um deslocamento distinto do de Laura Nogueira, assim como no caso do poeta belenense Paulo Vieira – que um dia teve o privilégio de ser lido e elogiado por Benedito Nunes. Paulo é engenheiro florestal e doutor em literatura. Performador conhecido na Faculdade de Etnodiversidade. Publicou vários livros de poesia e, em 2022, a seleção intitulada “Vieiranembeira” com poemas de todas as obras anteriores e alguns inéditos.

No quinto núcleo estão as práticas poéticas e regimes discursivos originários, que se manifestam por meio de cosmovisões partilhadas com os membros das comunidades específicas. As artes verbais dos indígenas do Médio Xingu envolvem histórias tradicionais e cantos, de modo que os universos estudados até hoje vêm da antropologia, da arqueologia e da história.

Alguns tratamentos sobre as artes indígenas podem ser observados na clave da etnomusicologia, como é o caso da artista cearense Marlui Miranda, que pesquisa sobre os cantos de etnias indígenas, incluindo os dos povos do Xingu.

Também são casos específicos os registros de cantos e rituais levados ao LP “Xingu cantos e ritmos” (1972), com apresentação dos irmãos Villas Boas, contemplando os povos do Estado do Mato Grosso. Alguns deles mantêm laços parentais com os povos do Pará, como é o caso dos Juruna.

Os contatos mais profundos com as cosmopoéticas dos povos do Médio Xingu foram registrados ao longo dos anos por antropólogos em estudos de referência. Curt Nimuendajú, etnólogo alemão já chamado de “herói civilizador” pela antropologia, aproximou-se dos povos Xipaya no início do século 20.

Regina Müller, estudiosa dos povos do Asuriní, refletiu sobre a vivência desses povos a partir do pensamento xamanístico em atividade na margem direita do Xingu. Não se sabe, entretanto, se nesses dois casos houve registro e documentação de cantos entoados nas mais diversas situações da vida nas aldeias, como ocorre em “Ieipari” (espécie de poste cerimonial na língua karib), obra minuciosa de Márnio Teixeira-Pinto (1997) sobre a cultura Arara, no interior da qual ele estuda a sua musicografia.

Ao estudar a língua Karib dos Arara, Teixeira-Pinto transcreve cantos (alguns sobre sacrifícios e troféus humanos) e os traduz em um capítulo específico de sua obra. É a contribuição mais relevante e completa sobre os cantos dos povos Arara.

Via tese de Eduardo Viveiros de Castro (1986), sabemos mais sobre os Araweté e sua xamanística estudada nos anos 1980, na qual as divindades e os mortos se manifestam aos humanos.  Viveiros de Castro afirma, contudo, que diferentemente do que se possa pensar:

Os “Araweté, homens e mulheres, nunca se faziam de rogados (ao contrário) para cantar e gravar o repertório musical do grupo – os cantos individuais dos xamãs, vivos ou mortos, longe de serem ‘sagrados’, são sucessos populares”.
Viveiros de Castro, antropólogo

Esse trabalho incontornável da antropologia brasileira é lido pelo também antropólogo e poeta Antônio Risério em “Palavras canibais” (2023), texto finalizado com o “Canto da castanheira”, entoado em 1982 por Kãñïpaye-ro a Viveiros de Castro.

A tradução revista por Risério cria um ritmo próprio para o canto, como se construísse a imagística de um ritual xamânico, mas um ritual em língua portuguesa. E mesmo isso acontecendo, pois o trabalho é também de criação poética, a tradução respeita as singularidades da língua araweté, como por exemplo nas frases ideofônicas que expressam eventos sem serem verbos.

Nai dai dai
Por que você empluma a grande castanheira?
Por que os Maï emplumam a grande castanheira, Modidaro?
Por que os Maï solteiros emplumam a face da castanheira?
Eis aqui os Maï, Ararinhano, emplumando a face da castanheira,
Eis aqui os Maï, emplumando a grande castanheira.
Nai dai dai. (RISÉRIO, 2023, p. 43, grifos nossos).

Trabalho que hoje envolve poética e tradução é desenvolvido de modo exemplar por nomes como Pedro Cesarino (2011), Guilherme Gontijo Flores (2019), a já citada Josely Vianna Baptista (2011), sem se esquecer da contribuição inestimável de Cláudia Neiva de Matos (2010).

No Médio Xingu esse tipo de pesquisa é ainda inexplorado, mas certamente é frutífero, pois talvez envolva o que fora chamado por Alberto Pucheu (2018) de “arcaicontemporâneo”, uma justaposição de tempos e espaços reconfigurados pelas cosmovisões originárias – nesse caso registradas por Bruce Albert a partir das palavras de Davi Kopenawa em “A queda do céu” (2015).

Nesse sentido, o contato entre os muitos povos do Xingu pode se dar dentro ou fora da universidade – de modo que o estudo das línguas originárias e cosmovisões a elas inerentes, sem dúvida, é um caminho pelo qual mais pesquisadores e professores devem percorrer, tendo como efeito prático o necessário aprimoramento do ensino indígena.

Que a escuta é uma arte do futuro, pensamos nessa frase quase como axioma de base. E tornar o ouvido mais arguto implica rever as bibliotecas, afinar intermitentemente os instrumentos de trabalho, recalcular rotas que criem condições de se pensar as diferenças a partir das próprias diferenças. Pesquisar então o que propomos como poéticas do Médio Xingu (no momento em que vivemos e pesquisamos no Médio Xingu) exige uma compreensão cuidadosa sobre o sensível. É, antes de tudo, colocar-se na rota de muitas complexidades.

O artigo “Poéticas do Médio Xingu: Panorama Apriorístico” está disponível na íntegra neste link.

Edmon Neto de Oliveira é doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor Adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Arthur Fernandes Vaz é graduando em Letras pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Eletícia Costa de Castro é graduanda em Letras pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e bolsista CAPES/PRODOUTOR

Edição: Emily Costa
Revisão: Filipe Andretta
Arte e montagem do site: Fabricio Vinhas
Direção: Marcos Colón

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