Caubóis e Índios: Bad River, Davi e Golias no Estado de Wisconsin
Nesta "Caubóis e Índios", Blanchette reflete sobre o filme Bad River, sua juventude militante e a luta indígena contra políticas de genocídio
Capa “Caubóis e Índios” com o poster do filme “Bad River” e a imagem dos protestos contra e a favor dos ojibwe. Poster: 50 Eggs Films. Arte: Fabrício Vinhas
O novo documentário “Bad River”, pela diretora Mary Mazzio é, talvez, um dos melhores filmes introdutórios já feitos para aquilo que o governo Estadunidense chama de “Indian Affairs” (assuntos indígenas).
Tomando a experiência do povo Mashkii-ziibii (também conhecido como “A Banda Bad River LaPointe da Tribo de Índios Chippewa do Lago Superior) como uma espécie de fato social total, reconta os últimos dois séculos de políticas de genocídio aplicadas pelo Governo Federal americano, destacando como essas medidas impactaram a banda e como está a situação atual desse grupo com menos de dois mil indígenas ojibwe (chippewa) que enfrentam Enbridge, uma das maiores corporações de energia da América do Norte.
Essa história é de interesse especial para mim por duas razões. Em primeiro lugar, a reserva Bad River fica perto de onde nasci e cresci e, como garoto, passei meus verões canoando em suas adjacências.
Minha juventude foi marcada pela “Guerra dos Walleye”, recontada no filme. Elas envolviam as lutas dos ojibwe e outros povos nativos de Wisconsin para fazer valer seus direitos, consagrados em tratado, de caçar e pescar fora da reserva.
Embora apoiado pelo sistema de justiça do estado e do governo federal, os grupos indígenas envolvidos na luta precisavam enfrentar verdadeiras turbas de brancos, sedentas de sangue, gritando insultos racistas, para exercer seus direitos de tratado.
De 1987 até 1991, as docas dos lagos no norte do estado eram bloqueadas para grandes grupos de manifestantes brancos, às vezes armados e sempre empunhando bandeiras com slogans racistas. Os ojibwe e outros indígenas tinham que atravessar essas, muitas vezes sob agressões, para poderem chegar a seus barcos de pesca.
Na época, eu estava cursando sociologia na Universidade de Wisconsin, Madison (UW). “Reverend” Jeff Goldstein, um velho militante pacifista, mobilizou dúzias de alunos – inclusive eu – para ir até as docas e apoiar o movimento indígena.Foi a primeira vez que enfrentei, cara a cara, brancos armados que, seguramente, assassinariam todo mundo presente se não fosse a massiva presença policial os prevenindo.
Descendentes de avós, membros do Ku Klux Klan, e pais de futuros eleitores de Donald Trump. Até hoje, quando um aluno me pergunta “O que é racismo, afinal?”, penso nesses caras: jovens que pareciam idênticos a mim, rifles de assalto em seus punhos brancos, uivando pela morte de meus vizinhos e me chamando de “traidor racial”. Não foi minha primeira experiência com os “assuntos indígenas”, mas seguramente foi a mais forte. Por enquanto.
Foi nesta mesma primavera de 1989 que eu também fui apresentado a grande razão pelo qual esse filme deveria ser de interesse para os brasileiros. Cursei na UW a aula “Sociologia Rural e Desenvolvimento” do Professor Stephen G. Bunker, escritor do livro clássico (porém pouco conhecido em terra brasilis): Underdeveloping the Amazon.
A tese central de Professor Bunker era que – muito além do que o senso comum poderia esperar – a situação do norte de Wisconsin mais aparecia aquela encontrada no centro do Amazonas. “Em ambos os lugares você tem uma história e uma estrutura social tremendamente semelhante”, dizia ele.
Ambos – o norte de Wisconsin e o Amazonas – foram configurados como fronteiras extrativistas por nações de colonizadoras (settler nations), que buscavam nessas regiões soluções para crises econômicas através do extrativismo puro – soluções sustentadas, muitas vezes, por capital internacional. Em ambos os lugares, essas políticas envolviam a apropriação de terras indígenas e a destruição de povos indígenas.
Crucialmente, tanto em Wisconsin quanto no Amazonas, os supostos “milagres econômicos” naufragaram, deixando não só um legado de degradação ecológica, mas também uma população racialmente dividida e economicamente devastada.
“Vocês que estão indo às docas para dar apoio aos ojibwe”, dizia Prof. Barnes, “devem reconhecer que não estão participando de um drama provinciano: estão fazendo parte de uma luta intercontinental, onde o capital está remexendo em terras e povos já sacrificados, buscando mais lucros sob a justificação de ‘desenvolvimento’. E precisam entender que essa luta não é de hoje: é ancorada em séculos de abusos e injustiças”.
Nenhum filme demonstra tão bem essa realidade quanto “Bad River”.
A primeira metade do documentário é necessariamente histórico e relata o longo envolvimento do povo Mashkii-ziibii com os “assuntos indígenas”. Embora cheia de informações que são desconhecidas pela maioria dos brasileiros, essa parte do filme é quase um “mini-manual da história dos povos indígenas da América do Norte”.
A obra relata as sucessivas políticas empregadas pelo governo americano para resolver o assim-chamado “problema indígena” – definido no filme, sarcasticamente, como “os índios ainda existem e isto é um problema”.
É fato pouco reconhecido no Brasil que, diferente do que ex-presidente Jair Bolsonaro afirmou, o genocídio dos povos indígenas dos EUA não foi, como largamente falando, causado pela cavalaria americana.
O grosso dos planos para eliminar os povos indígenas foram implementados bem depois do confinamento desses em reservas, no final do Século XIX e no início do Século XX. Escrevi um livro sobre o início desse processo e o envolvimento da antropologia americana nessas políticas (Cidadãos e Selvagens).
Sob o lema “matar o índio – salvar o homem” sucessivas políticas de desapropriação territorial e assimilação forçada foram empregadas para dizimar as populações indígenas dos EUA entre 1870 e 1970. “Bad River” não só explica cada uma dessas políticas – remoção forçada, loteamento de terras comunais, rapto e “desindianização” forçada de crianças, terminação tribal, administração maléfica através da burocracia indigenista federal – coloca rostos e vozes nestas, demonstrando como elas afetaram, concretamente, os Mashkii-ziibii.
Neste sentido, e de uma forma clara e sucinta, o documentário serve para orientar leigos sobre os principais coordenados dos últimos dois séculos dos “assuntos indígenas” nos EUA, sem nunca afogar o espectador num excesso de informações.
Francamente, não posso pensar num filme melhor para servir como aula básica, introdutória, sobre a história indígena pós-conquista nos EUA. Se só fosse esse o grande feito do Bad River, o filme mereceria uma tradução imediata. Mas tem mais.
O filme concretamente demonstra como essa história de abuso e genocídio concretamente construiu a principal ameaça que os Mashkii-ziibii encaram hoje e como os deu força política e aliados para a enfrentar.
Na década de 1950, a Interprovincial Pipeline Company (IPL) do Canadá construiu um oleoduto conectando os novos campos de produção de petróleo da província de Alberta com os Estados Unidos.
Correndo para o sul pela cidade fronteiriça de Superior, no estado de Minnesota, o novo empreendimento, rotulado como “Linha 5” deu uma guinada súbita para a esquerda no norte de Wisconsin, passando justamente pela Reserva de Bad River antes de continuar ao leste, rumo às metrópoles sedentas por petróleo do leste do país.
Na época, a Reserva estava empobrecida e os ojibwe estavam de frente a ameaça do término de seus direitos tribais, num processo político semelhante ao “marco temporal” de hoje no Brasil.
Sem dinheiro e com pouca força política, o governo tribal dos mashkii-ziibii cederam aos desejos da corporação canadense, esperando que o projeto, pelo menos, trouxesse um rendimento financeiro à banda.
Sete décadas mais tarde, a IPL já se foi há muito tempo, apenas existindo como componente da mega-corporação Enbridge Inc. a maior operadora de oleodutos da América do Norte.
Exatos 540 mil barris de produtos de petróleo ainda fluem, todos os dias, pela Linha 5 embaixo de Bad River… e, agora, o oleoduto decrépito está demonstrando claros sinais de fadiga e desgaste. Um trecho significativo foi descoberto por uma mudança no curso de um rio e agora está exposto e sem sustento.
Entre 1999 e 2010, os oleodutos da companhia romperam 804 vezes, derramando em torno de 161.475 barris petróleo nas terras ao redor de suas linhas.
Mesmo que considerada culpada nos tribunais por esses desastres, que potencialmente causaram bilhões de dólares em danos ao meio ambiente, a Enbridge ainda não assumiu a responsabilidade por vários deles, mesmo que existam evidências de que os engenheiros da companhia sabiam – em alguns casos com anos de antecedência – das fragilidades de seus oleodutos.
Em Bad River, os mashkii-ziibii reportaram os problemas físicos no trecho exposto da Linha 5, mas a Enbridge recusou-se a tomar medidas adequadas para resolver a questão.
O governo tribal então usou seus poderes para ordenar que a companhia se retirasse da reserva. A Enbridge recusou, ainda que a companhia não devesse ter nenhum recurso legal para ignorar o pedido da tribo.
Em resposta, a gigante de energia ofereceu a banda empobrecida USD$ 80.000.000 para “resolver” a questão, tentando influenciar as eleições para o governo tribal.
É notável neste contexto que, em 2010, um oleoduto de Enbridge se rompeu no Estado de Michigan, causando USD 800.000.000 em danos – ou seja, dez vezes mais do que a quantia oferecida pela empresa aos mashkii-ziibii.
O Rio Bad River, cruzado pela Linha 5 na reserva, escoa há alguns poucos quilômetros mais ao norte, no Lago Superior, a maior fonte de água doce do continente.
Uma ruptura semelhante à de 2010 na reserva não só devastaria as terras dos ojibwe: causaria um desastre ecológico sem precedentes para toda a América do Norte – desastre esse que teria que ser saneado com os USD$ 80 milhões oferecidos à banda.
Frente a essa proposta indecente, o presidente tribal de Bad River, Robert Blanchard, declarou que “os U$80 milhões são apenas uma gota no balde de lucros que Enbridge tem recolhido através de sua ocupação ilegal. Nossa terra, nossos direitos de tratado e nosso modo de vida não estão a venda”.
Apesar disto, a saga Davi versus Golias dos mashkii-ziibii e Enbridge ainda não está resolvida, mesmo que a disputa já esteja nos tribunais há cinco anos.
O documentário Bad River demonstra como os megaempreendimentos de exploração e transporte de recursos na Amazônia, badalados como solução econômica para a região, são apenas a última rodada de um arrastão espetacular conduzido pelos agentes do capitalismo global, cujo alvo mais constante são os povos e terras indígenas.
70 anos de contratos com Enbridge não têm enriquecido os mashkii-ziibii. Muito pelo contrário: têm criado uma situação em que o último recurso da comunidade – sua terra – pode ser envenenado por séculos.
A pergunta que qualquer amazonense deve se fazer, ao assistir Bad River, é a seguinte: se é assim que as corporações norte americanas tratam os povos indígenas de lá, há quase um século, qual é a perspectiva delas se comportaram melhor aqui, na América do Sul no século XXIl?
Bad River
Documentário
Duração: 1 hora e 28 minutos
Direção e Roteiro: Mary Mazzio
Idioma: Inglês
Empresa de produção: 50 Eggs Films
Assista ao documentário Bad River na Peacock ou pelo Vimeo On Demand. Mais informações aqui.
Arte: Fabrício Vinhas
Edição, Montagem da Página e Acabamento: Alice Palmeira
Revisão: Glauce Monteiro
Direção: Marcos Colón