Conto de Sandra Godinho: A graviola
Conto de Sandra Godinho descreve o definhamento de Anésia junto ao pé de graviola, e a ironia de a benzedeira poder curar a tantos, mas não a si própria


“Ficou lá, em oração ao pé do caule, o nariz dentro dos galhos enquanto o sol nos queimava a pele.” Arte: Isabela Leite / Amazônia Latitude.
O cheiro do bacon, vindo da casa vizinha, golpeando o estômago de Anésia, só servia para nos incomodar e, mesmo que eu me aproximasse da benzedeira, oferecendo ombro e braços, pensando em nosso almoço com papilas animadas, ela preferia o caule seco da graviola. Ficava lá, parada no fundo do quintal, farejando a esperança do lado da planta milagreira, aguardando a próxima ânsia com olhos de melancolia. Pausava, tentando se afirmar, recuperando o fôlego e a força das pernas. Anésia já não era a mesma, suas plantas curadoras não lhe faziam efeito e o silêncio crescia entre nós. Nossos assuntos se resumiam aos sintomas, ao dinheiro gasto com os remédios, aos medicamentos que combatiam a doença nunca nomeada e que andavam pela hora da morte. Anésia, tão encurvada, incapaz de prever a própria enfermidade. Para quem sempre preconizou e curou as doenças de todos nas redondezas, era, no mínimo, uma ironia.
Cheguei a duvidar de suas capacidades premonitórias. A mulher murchava, os ossos aparecendo mais que a carne, as unhas crescendo mais que o normal, os cabelos se desgrenhando num grisalho que lhe tirava o viço. Já não sorria ou conversava e, para tentar animá-la, eu lhe preparava o prato predileto, banda de tambaqui assado com farofa de ovos e banana que, com algum esforço, tentava engolir; primeiro, achegando o rosto ao prato e, depois, torcendo o nariz num esgar engraçado, com a boca seca, enquanto eu digeria o quitute chupando as pontas dos dedos.
Ela forçava um sorriso e eu não insistia, vendo ela se deitar na rede, ouvindo rádio ou televisão, sabendo das notícias sem saber, só para deixar o tempo passar. E quando me pedia chá de folha de graviola para ajudar no combate do corpo, eu fazia questão de lhe levar quase fervendo, dentro da xícara que ela punha de lado, aguardando esfriar. Anésia não reclamava, por vezes dormia na cadeira, então eu retirava a xícara de perto para que ela não a derrubasse com um arroubo dos braços. Quando despertava, lembrava-se da xícara, e eu tornava a lhe servir quase fervente, repetindo todo o ritual. A mulher parecia uma broa deixada às moscas. Um dia, saborosa, e, noutro, um desperdício.
Foi ela quem me avisou da gravidez, depois adivinhou o sexo do feto, um menino que me traria desgosto. Isso foi há tanto tempo, no tempo que eu ainda lhe tinha apreço. Agora, sua urina encharcava o colchão, juntando-se às manchas de sangue e aos vômitos. A rotina perversa se justificava por ela não ter feito nada para impedir que meu menino vingasse. Assim que soube que a doença havia lhe tomado o corpo, tive a feroz determinação de salvá-la da fatalidade, mesmo que ela desdenhasse dos medicamentos prescritos; não confiava em alopatia, preferia os remédios caseiros, apostava que a graviola iria lhe curar, também o uxi amarelo, a andiroba e a copaíba. No quintal, eu só cultivava a graviola, aguardava o fruto madurar, tirava-o do pé, fazia o suco e o chá e, assim fervente, o oferecia. Os dias nos atravessavam nesse descuidos propositais.
As coisas começaram a mudar quando seus filhos vieram do interior para vê-la, à exceção de Jacira, que vivia com a cara enfurnada em partituras. As visitas abriram os portões do inferno; o carinho dispensado a ela, a consideração, o colo e o aconchego me desconcertaram. Ela, ali, com uma família inteira a seus pés enquanto eu não me reconhecia mais, murcha e desgrenhada, tanto quanto Anésia, ou como as folhas das graviolas que caíam, exigindo-me o asseio do terreno para evitar que as serpentes se juntassem à serrapilheira. Uma hora debaixo do sol forte varrendo o folhiço me deixava indiferente às avencas, logo tostadas, e às urgências da velha e àquele seu sofrimento exposto. Nada naquele quintal parecia capaz de sobreviver.
Os cafés coados, os bolos de macaxeira e os biscoitinhos cessaram. Que os filhos a levassem consigo, mas recusaram, não havia tratamento público de câncer no interior. Quimio, radio e doação de afeto. O fardo permaneceu. E as visitas, feito sirenes. Ao me despedir de Amâncio, o mais velho, fiquei ali, na porta, presa àquele abraço de filho, criando raízes dentro dos braços dele. Eram muitas dentro de mim: mulher, amiga, vizinha, boa, má, só não mãe.
Depois que ele se foi, aguardei a graviola perder a última folha, vi a velha se apoiar no caule e, como a planta, definhar com o calor. Ficou lá, em oração ao pé do caule, o nariz dentro dos galhos enquanto o sol nos queimava a pele. A velha, murmurando qualquer coisa à graviola, me ofuscou a visão. Eu, mais cega e seca que elas.
Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB). Com Orelha lavada, infância roubada (2018), recebeu Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019), e com Verso do reverso (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Seu romance Tocaia do Norte (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Outra obra sua, A morte é a promessa de algum fim, recebeu o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, Memórias de uma mulher morta e A Secura dos ossos.
Montagem de página e acabamento: Alice Palmeira
Revisão: Juliana Carvalho
Direção: Marcos Colón