“Vamos orar para Deus diminuir o calor”: com temperaturas acima dos 38 °C, crianças e adolescentes sufocam e desmaiam em escola na Ilha do Marajó

Casos de desmaios escancaram o racismo ambiental e o descaso com a educação pública na maior ilha fluviomarinha do mundo

Alunos protestam estrutura escolar não adequada para o calor de 38ºC. Foto: Arquivo pessoal dos alunos.
Alunos protestam estrutura escolar não adequada para o calor de 38ºC. Foto: Arquivo pessoal dos alunos.
Alunos protestam estrutura escolar não adequada para o calor de 38ºC. Foto: Arquivo pessoal dos alunos.

Alunos protestam estrutura escolar não adequada para o calor de 38ºC. Foto: Arquivo pessoal dos alunos.

Caminhos desiguais até a universidade

A caminhada até o Ensino Superior é sempre desafiadora. Além de solitária, nem todos percorrem os mesmos caminhos. Para alguns, a preparação começa desde os primeiros anos escolares, com aulas de reforço e cursinhos particulares. Para outros, principalmente aqueles que vêm de famílias mais pobres, estudar é considerado um privilégio, embora seja um direito básico.

Na Ilha do Marajó, no Pará, essa caminhada é ainda mais desafiadora: às vezes precisa ser feita de barco ou por longas distâncias em estradas de chão batido. Para os estudantes que vivem nessas condições, ir para a escola nunca foi um empecilho. A caminhada só se torna um problema quando o local que deveria ensinar, na verdade, sufoca. E aqui, nesta reportagem, nos referimos ao sufocamento no sentido literal.

Na Escola Estadual Dra Ester Mouta, no município de Ponta de Pedras, os cerca de 640 estudantes enfrentam mais do que o sistema educacional meritocrático e excludente, que insiste em dizer que lugar de pobre não é na universidade. Também se defrontam com o descaso e o apagamento de uma região esquecida na Amazônia.

Para eles, estudar não é só um ato de resistência. É também um ato de sobrevivência.

Por questões de segurança, a Revista Amazônia Latitude vai usar codinomes para resguardar a identidade dos alunos que contribuíram para essa reportagem, evitando possíveis retaliações.

Escola Dra. Ester Mouta em Soure, no Marajó. Foto: Arquivo pessoal dos denunciantes.

Escola Dra. Ester Mouta em Soure, no Marajó. Foto: Arquivo pessoal dos denunciantes.

Estudar até desmaiar: quando o calor vira ameaça

Todos os dias, Igor Rafael, de 16 anos, sai de casa por volta das 12h30 para ir à escola. Comparada com a de outros colegas, não é uma caminhada longa, são apenas alguns minutos. Quando chega na sala, senta na mesma carteira de sempre, perto dos amigos. 

Nas terças-feiras, a primeira aula é de matemática, disciplina que tem maior dificuldade. Ele abre a mochila, separa os livros, cadernos e canetas. Mas em dias como este, um item especial não pode faltar: o abanador. 

Igor sabe que, para ele, nas disciplinas de ciências exatas toda concentração é bem-vinda. Com janelas que não abrem e ventiladores e centrais de ar que não funcionam, o calor na sala de aula é insuportável. “Ou a gente se abana ou assiste aula, as duas coisas não dá. É horrível”, desabafa o estudante.

Mesmo com o calor extremo, as aulas estão marcadas para iniciar às 13h00, justamente no momento em que o sol está mais quente. Algumas vezes, as aulas nem chegam a começar por conta das altas temperaturas. Em outras, até são iniciadas, mas logo são interrompidas por fatores que fogem do controle dos alunos e professores. 

Com tantas interrupções do dia letivo, a tradicional sirene que indica o horário do intervalo na Escola Dra. Ester Mouta tem tocado poucas vezes nos últimos meses. Mas outra sirene – bem menos agradável – tem sido cada vez mais frequente na escola e no inconsciente dos estudantes. 

Quando Igor Rafael escuta os alertas inconfundíveis de uma ambulância cortando o silêncio, já sabe o destino do socorro: a própria Escola. Ele não precisa de muito esforço para entender que, mais uma vez, algum aluno desmaiou por conta da temperatura extrema nas salas de aula.

Igor já se acostumou a ver os colegas de turma desmaiando por conta do calor. O adolescente tem ciência de que cada interrupção das aulas pela sirene das ambulâncias expõe um grave descaso e racismo ambiental contra alunos de escolas estaduais do Arquipélago do Marajó. 

Quando o socorro vai embora, algumas turmas até tentam voltar à normalidade e seguir com o conteúdo programado para o dia. Mas nem sempre isso é possível. Nas terças, dia de matemática, Igor já não se concentra mais nas fórmulas e nos cálculos que o professor tenta explicar. Para o estudante, o barulho das sirenes ficam, não saem com facilidade dos ouvidos. E nessa situação, o único pensamento possível é quando ele será a vítima.

Estudantes da escola Dra. Ester Mouta protestam após desmaio de colega. Foto: Arquivo pessoal dos alunos.

Estudantes da escola Dra. Ester Mouta protestam após desmaios de alunos. Foto: Arquivo pessoal dos alunos.

Sobreviver para aprender: a rotina de quem só quer estudar

De acordo com os estudantes, os primeiros desmaios aconteceram ainda no final de 2024, quando os problemas na ventilação das salas se agravaram. Na maioria dos casos, os alunos que passam mal são os do primeiro ano do Ensino Médio, cujas salas são estruturadas com janelas que não abrem, impedindo a circulação do ar.

Antes, a gente sentia aquela sensação térmica de calor, mas dava para aguentar. Agora, a temperatura aqui na cidade está subindo. Às vezes, a sensação térmica chega aos 38º. E com a sala sem nenhum tipo de ventilação fica insuportável”, denuncia Igor Rafael.

Segundo um relatório divulgado ano passado pelo Banco Nacional do Desevolvimento (BNDES), mesmo sendo a maior ilha fluviomarítima do mundo, mais de 65% das escolas do arquipélago do Marajó não possuem água potável. O levantamento aponta que as escolas utilizam água do rio para as atividades de rotina.

A pesquisa aponta, ainda, que as escolas do arquipélago também se destacam pela falta de estrutura. O estudo mostra que 85% das instituições de ensino não possuem estrutura adequada, 78% não têm coleta de esgoto e 13% delas sequer possuem banheiros funcionando.

O que os dados revelam em planilhas técnicas, o Luiz Felipe, de 17 anos, sente na pele. O aluno do 2º ano do Ensino Médio sonha em cursar psicologia, um dos cursos mais concorridos no vestibular da Universidade Federal do Pará (UFPA). Em meio às interrupções e aulas em situações desumanas, ele acredita que esses fatores podem comprometer a realização desse sonho.

“Eu me sinto muito prejudicado, porque para concorrer com um aluno de uma escola privada, já é mais difícil, por questões sociais. O aluno de uma escola particular tem mais estrutura. E aqui já no Marajó é ainda mais difícil para os alunos ribeirinhos, porque alguns tem que vir de barco para cidade para poder estudar. Aí eles chegam aqui e ainda precisam passar por esse sufoco”, explica. 

O cenário contribui para o esvaziamento das salas de aulas. Segundo os alunos, das turmas que possuem, em média, 44 estudantes, apenas 22 aparecem diariamente na escola.

Os problemas na Escola Dra. Ester Mouta ficam ainda mais preocupantes diante dos últimos dados específicos de evasão escolar no arquipélago do Marajó, apontados pelo Censo 2019. A amostra pontua que a evasão nas escolas da ilha é mais de 15% maior que a média nacional. 

Nas primeiras séries da grade curricular infantil, a evasão de alunos a nível nacional é de 0,5%. No Marajó, o abandono escolar chega a 3,2%, ou seja, 1,6% a mais que a média do país. 

Quando se trata de evasão escolar em todos os níveis de ensino, a situação do arquipélago fica ainda mais grave. De acordo com o levantamento, a média de evasão no Brasil, em todos os níveis escolares, é de 1,9%. Enquanto que no Marajó, no mesmo requisito, os índices chegam a  8%.  

Segundo Secretaria de Estado de Educação (Seduc), a escola está no cronograma de obras e recebeu mais de R$ 189 mil neste ano para a execução de reformas, manutenção, climatização, e aquisição de material pedagógico e tecnológico. Foto: Arquivo pessoal dos alunos.

Segundo Secretaria de Estado de Educação (Seduc), a escola está no cronograma de obras e recebeu mais de R$ 189 mil neste ano para a execução de reformas, manutenção, climatização, e aquisição de material pedagógico e tecnológico. Foto: Arquivo pessoal dos alunos.

“Vocês são ribeirinhos”: quando o preconceito fala mais alto

Diante do abandono, os alunos organizaram uma manifestação para cobrar melhorias. Mas o que receberam foi crítica e falta de respeito por parte da direção da escola. Segundo os relatos, o vice-diretor foi até eles e os acusou de serem os culpados pela falta de estrutura. Disse que os alunos “quebram os aparelhos” e que a escola não tinha como manter os ventiladores funcionando por causa do comportamento dos estudantes.

“Esse é o escudo deles contra a gente. Eles dizem que os líderes de turma estão manipulando os outros para parar as aulas. Mas não é isso. A gente quer estudar. A gente tem metas na vida. Ninguém vem para a escola para brincar”, diz Luiz Felipe.

A tentativa de diálogo também expõe o preconceito da gestão com os alunos. Uma líder de turma perguntou a uma coordenadora como poderiam continuar frequentando a escola, já que muitos moram longe, enfrentam calor e ainda estão perdendo aulas. A aluna buscava apenas apoio pedagógico, mas recebeu uma resposta cruel da servidora pública: “Vocês não podem se esconder atrás da desculpa de ‘ribeirinhos”.

A direção da escola chegou a sugerir um rodízio entre os estudantes para usar as poucas salas com ventilação. A proposta foi mal recebida.

Eu me sinto desrespeitado porque os alunos têm direito a uma educação de qualidade. A gente paga impostos para isso, pra a gente ter uma dignidade nas escolas e ter oportunidade de concorrer uma universidade. Para eles era melhor fazer um rodízio do que resolver o problema?”, questionou Igor.

A fome também atrapalha o desempenho. A situação da merenda é outro problema grave. Luiz Felipe diz que, quando tem merenda, é insuficiente e, muitas vezes, passa-se a semana inteira sem qualquer refeição. “É muito pouco pra quem entra na escola às 13h e sai depois das 18h. Isso quando tem. Às vezes passamos três dias seguidos sem merenda”, relata.

Mesmo diante de tantos problemas, Igor e Luiz continuam indo à escola. Um quer ser psicólogo. O outro sonha em estudar direito e virar delegado. Eles têm objetivos, querem mudar a própria vida e ajudar suas famílias.

“O que me inspira é pensar que eu não tenho as mesmas oportunidades que um aluno de escola particular. Por isso eu tenho que correr atrás dos meus sonhos. A gente só quer estudar. É nosso direito”, diz Igor.

Algumas vezes, as aulas nem chegam a começar por conta das altas temperaturas. Em outras, até são iniciadas, mas logo são interrompidas por fatores que fogem do controle dos alunos e professores. Foto: Arquivo pessoal dos alunos.

Algumas vezes, as aulas nem chegam a começar por conta das altas temperaturas. Em outras, até são iniciadas, mas logo são interrompidas por fatores que fogem do controle dos alunos e professores. Foto: Arquivo pessoal dos alunos.

Quando a fé vira desculpa para o descaso

Além do calor insuportável e da fome constante, os estudantes da Escola Estadual Dra. Ester Mouta também convivem com o que chamam de “silêncio das soluções”. Para muitos deles, a resposta da gestão escolar frente ao sofrimento diário não é uma ação concreta, mas apatia disfarçada de fé. 

“A solução deles é entrar na sala, orar para Deus para que o calor diminua. Eu acredito muito em Deus, mas essa não é a solução. Pedir para Deus para diminuir o calor? Meu Deus!”, desabafa um dos alunos. 

No lugar de providências para consertar os ventiladores ou reestruturar o prédio, a única alternativa oferecida é a oração. A fala do estudante não ataca a fé: ela denuncia um mecanismo perverso que transfere a responsabilidade do Estado para o plano divino, escancarando o quanto o sofrimento de jovens pretos, ribeirinhos e pobres é naturalizado. 

Quando a única esperança oferecida a esses jovens é o milagre, fica evidente a face cruel do racismo ambiental: a ideia de que quem mora no Marajó deve aceitar a dor como parte da paisagem.

Além de estrutura, falta posicionamento

A Revista Amazônia Latitude procurou a Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc) e solicitou um posicionamento referentes às denúncias apresentadas na reportagem, mas a Seduc preferiu não se manifestar sobre os casos de desmaios e as falas preconceituosas da educadora.

Em nota enviada, a Seduc informou apenas que a Escola Estadual Dr. Ester Mouta está no cronograma de obras da Secretaria. Disse, ainda, que a unidade recebeu mais de R$189 mil somente em 2025, referente ao Programa Dinheiro na Escola Paraense (Prodep), para a execução de obras e manutenção, climatização, além de aquisição de material pedagógico e tecnológico.

Sobre a alimentação escolar, a Secretaria alega que é realizada por meio do Programa Estadual de Alimentação Escolar do Estado do Pará (PEAE), em parceria com o município. Em nenhum momento a Seduc se posicionou sobre quais medidas emergenciais estão sendo tomadas para garantir a segurança e as condições mínimas de aprendizado aos estudantes da Escola, tampouco sobre como o governo estadual responde às denúncias de negligência por parte da gestão escolar e ao suposto discurso discriminatório contra estudantes ribeirinhos.

Texto: Elielson Almeida
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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