Linha de frente sob ameaça: lideranças ambientais arriscam a vida pela floresta em pé

Novo índice revela falhas na proteção a defensores ambientais e no acesso à Justiça, informação e participação na Amazônia Legal

Defensores ambientais indígenas em manifestação contra as barragens. Foto: Iremar Antônio / Arquivo Pessoal.
Defensores ambientais indígenas em manifestação contra as barragens. Foto: Iremar Antônio / Arquivo Pessoal.
Defensores ambientais indígenas em manifestação contra as barragens. Foto: Iremar Antônio / Arquivo Pessoal.

Defensores ambientais indígenas em manifestação contra as barragens. Foto: Iremar Antônio / Arquivo Pessoal.

É difícil descrever a sensação de estar na Amazônia e saber que, para muitos que vivem aqui, proteger o bioma pode custar a própria vida. Os dados mostram isso, e também as vozes que ecoam das margens dos rios, das estradas, das periferias, das assembleias, das aldeias e dos territórios. Se dedicar à defesa da conservação da natureza exige coragem. E, infelizmente, ainda significa viver sob ameaça.

Foi justamente para dar contorno e visibilidade a essa realidade que o Índice de Democracia Ambiental (IDA) foi criado. A pesquisa, lançada na última segunda-feira (16) pelo Instituto Centro de Vida (ICV) e pela Transparência Internacional Brasil, evidencia um tema urgente: o apagão de direitos nos territórios mais importantes para o equilíbrio climático do planeta.

O IDA é uma ferramenta de avaliação criada para medir o nível de democracia ambiental na Amazônia. Democracia ambiental, aqui, significa o quanto as pessoas e comunidades têm acesso às informações, participação, proteção e justiça em questões relacionadas ao meio ambiente.

Em ano de COP30 na Amazônia, os resultados não surpreendem quem vive na região. Nenhum dos nove estados da Amazônia Legal obteve classificação “boa” ou “ótima” na média dos quesitos avaliados. Roraima, por exemplo, amarga o pior desempenho: apenas 0,8 de 100 quando se trata de proteção a defensores ambientais.

Os resultados são ruins em toda a região e escancaram os gargalos que alimentam a violência e a exclusão contra quem protege a floresta. É como se o Estado dissesse: “Você está por sua conta”.

A ausência que vira ameaça

Estados da Amazônia Legal têm baixa pontuação em transparência e proteção de defensores ambientais. Fonte: ICV e Transparência Internacional Brasil.

Estados da Amazônia Legal têm baixa pontuação em transparência e proteção de defensores ambientais. Fonte: ICV e Transparência Internacional Brasil.

O criterio de proteção a defensores ambientais foi o pior avaliado em toda a região, com média de apenas 11,8 pontos. A maioria dos estados sequer possui programas específicos, protocolos policiais, canais de denúncia ou formação adequada para lidar com os conflitos socioambientais que se intensificam a cada ano.

Segundo os pesquisadores, foram avaliadas 29 informações consideradas prioritárias para o controle social de políticas ambientais, como licenciamento, regularização fundiária e fiscalização. Apenas Pará e Mato Grosso se saíram relativamente bem em relação ao acesso à informação. Tocantins e Acre, por outro lado, tiveram desempenho classificado como ruim. A média geral foi de apenas 34,5 pontos em uma escala de 100, o que os organizadores da pesquisa chamam de falha sistêmica. 

“A ausência de acesso à informação, de participação e de acesso à justiça compromete diretamente a proteção de quem está na linha de frente da defesa ambiental”, afirma Marcondes Coelho, coordenador do Programa Transparência e Justiça Climática do Instituto Centro de Vida. Ele acrescenta: “Quando os defensores não são incluídos nas decisões, e não têm acesso à informação nem à justiça, aumenta o risco de violação de direitos e de violência”.

Na prática, a omissão vira cumplicidade. E se traduz em corpos tombados, silêncios forçados, ameaças que não chegam às estatísticas. A violência se ilustra em histórias como a de dona Rita, quebradeira de coco do Maranhão, que viu sua casa ser incendiada por denunciar grileiros. Ou na de José, jovem indígena do Amazonas, que participa de brigadas de incêndio voluntárias e hoje precisa de escolta da própria comunidade para circular em segurança.

Nomes fictícios que ilustram narrativas reais e conhecidas por quem acompanha de perto a luta cotidiana pela floresta em pé.

Além da ausência de proteção, o Índice de Democracia Ambiental revela outros vazios preocupantes. Por exemplo, quando falamos de acesso à justiça ambiental, a média dos estados da Amazônia Legal alcança apenas 53 pontos em uma escala de 0 a 100, um sinal claro de que muitas pessoas ainda enfrentam grandes dificuldades para buscar reparação e exigir seus direitos.

O acesso à informação, essencial para que a população entenda o que acontece em seus territórios, está ainda pior, com uma média de 41,7 pontos. Isso significa que os dados e documentos ambientais nem sempre estão disponíveis, ou são difíceis de encontrar e entender.

E a participação social, que deveria garantir que as vozes das comunidades sejam ouvidas nas decisões ambientais, apresenta o índice mais baixo, com apenas 31,7 pontos. Isso mostra que, na prática, a sociedade civil tem pouco espaço para dialogar e influenciar as políticas públicas.

Em resumo, o que a pesquisa revela é que, na Amazônia, as pessoas são silenciadas ou pouco escutadas e contam com poucos instrumentos formais para reivindicar seus direitos ambientais. Essa combinação fragiliza a proteção do meio ambiente e das comunidades que dependem deles.

Entre rios e ameaças: Iremar Antônio e a realidade de defender a Amazônia

Iremar Antônio Ferreira é educador popular, comunicador comunitário e fundador do Instituto Madeira Vivo. Atua há mais de 30 anos na defesa dos direitos socioambientais, especialmente nas regiões ribeirinhas do Rio Madeira, em Rondônia. Foto: Iremar Antônio / Arquivo Pessoal.

Iremar Antônio Ferreira é educador popular, comunicador comunitário e fundador do Instituto Madeira Vivo. Atua há mais de 30 anos na defesa dos direitos socioambientais, especialmente nas regiões ribeirinhas do Rio Madeira, em Rondônia. Foto: Iremar Antônio / Arquivo Pessoal.

Do leito do Rio Madeira corre história, resistência e uma luta que atravessa décadas. É dessas margens que surge a voz firme de Iremar Antônio Ferreira, fundador do Instituto Madeira Vivo, educador, comunicador popular e referência na defesa socioambiental da Amazônia.

Mesmo com mais de 30 anos de atuação, o que mais o preocupa hoje não é apenas a destruição do meio ambiente, mas o abandono por parte do próprio Estado. 

“Aqui no estado de Rondônia não existe proteção para defensoras e defensores ambientais. Ao contrário, o que há é sempre uma exposição diante daqueles que cometem os crimes.”, pontua Iremar.

Ele não fala apenas por si, mas por uma legião de vozes ameaçadas na Amazônia Legal. Denuncia um cenário em que quem luta por direitos vive à mercê da sorte:

“O estado se omitiu diante da violação dos territórios, o que, por tabela, força os defensores e defensoras a se colocar em linha de frente. E, por tabela, ficam à mercê da violência praticada pelos que se sentem no direito de invadir”, lamenta.

A fala do ambientalista reflete o que muitas lideranças amazônicas vêm denunciando: o enfraquecimento deliberado das políticas de proteção ambiental e territorial, e o risco crescente para quem se posiciona contra projetos predatórios e invasões ilegais. 

Para Iremar, quando o Estado não protege o território, também abandona quem o defende. “Acontece que, já que se tem na lei o direito à proteção, porém quando não se protege o território, não se consegue proteger também as lideranças que estão em defesa do território”, afirma. 

Embora crítico, ele não se mostra derrotado. Sua fala exige mudança de postura e responsabilização dos governos em todas as esferas. Com isso, propõe um caminho baseado em consciência política e cidadania, que reconheça o papel vital dos defensores socioambientais para a preservação da Amazônia.

“Precisa de fato ter essa mudança de mentalidade, de consciência, tanto dos governos estaduais, municipais e principalmente do governo federal, que é o responsável por garantir a segurança das terras indígenas, dos territórios tradicionais, das comunidades quilombolas e de todos os defensores de direitos humanos e socioambientais.”
Iremar Antônio Ferreira,

Mesmo sem proteção institucional adequada, Iremar segue. Mas deixa um alerta difícil de ignorar: “Enquanto não tiver essa compreensão política, essa vontade política, essa consciência cidadã, infelizmente nós vamos continuar com esse cenário de ameaças, de violências e de violações de direitos dos defensores e das defensoras da Amazônia e de todo o Brasil.”

Dados em mãos, o desafio agora é agir

Há caminhos possíveis, mas eles ainda não chegam à ponta. A única nota “ótima” do Índice foi atribuída à União, no quesito acesso à Justiça, com 81,9 pontos. O desempenho se deve à presença de promotorias e defensorias atuantes, além de ações de justiça itinerante. O problema é que, mesmo quando essas estruturas existem, raramente chegam até o interior dos territórios, exatamente onde elas são mais necessárias.

O Índice de Democracia Ambiental (IDA) se apresenta, portanto, como um chamado urgente não só para governos e especialistas, mas para toda a sociedade. Ele mostra que a justiça climática depende diretamente da justiça para os povos que vivem e cuidam da terra. E que a verdadeira conservação só acontece quando quem está na linha de frente recebe proteção e reconhecimento pelo seu trabalho diário, enfrentando desafios reais e riscos constantes.

O diagnóstico está feito, o desafio agora é agir. Entre as recomendações do documento estão o fortalecimento de programas de proteção a defensoras e defensores ambientais, a garantia de orçamento e capacitação das forças de segurança, a melhoria da qualidade e transparência dos dados públicos, a ampliação de estruturas de justiça com foco socioambiental e a ratificação do Acordo de Escazú, tratado internacional que protege os direitos ambientais e seus defensores.

O IDA é a primeira iniciativa do tipo no Brasil, e a expectativa é que ele passe a ser publicado anualmente, começando pela Amazônia. A proposta, no futuro, é expandir a metodologia para outros biomas. 

A floresta precisa de políticas públicas, sim. Mas, acima de tudo, precisa de coragem. Coragem para enfrentar o silêncio, as ameaças e a invisibilidade que rondam quem defende a vida. Coragem de transformar dados em ação. E coragem de reconhecer que, sem justiça ambiental, não há futuro possível.

Fontes dos dados: Instituto Centro de Vida, Transparência Internacional-Brasil

Texto: Lucas Duarte
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

Você pode gostar...

Translate »