Vinho roxo, corpo-sabedoria: o açaí e os saberes de Dona Maria no Marajó

Fotogaleria acompanha Dona Maria na colheita e preparo do açaí no Marajó

Dona Maria no topo de um pé de açaí. Foto: Miguel Picanço.
Dona Maria no topo de um pé de açaí. Foto: Miguel Picanço.
Dona Maria no topo de um pé de açaí. Foto: Miguel Picanço.

Dona Maria no topo de um pé de açaí. Foto: Miguel Picanço.

E tua fruta vai rolando
Para os nossos alguidares
Tu te entregas ao sacrifício
Fruta santa, fruta mártir
Tens o dom de seres muito
Onde muitos não têm nada
Uns te chamam açaizeiro
Outros te chamam juçara…
Põe tapioca
Põe farinha d’água
Põe açúcar
Não põe nada
Ou me bebe como um suco
Que eu sou muito mais que um fruto
Sou sabor marajoara
Sou sabor marajoara…”
(Nilson Chaves & Joãozinho Gomes)

O excerto da canção Sabor Açaí invoca poeticamente um dos frutos mais emblemáticos dos territórios paraenses. Alimento cotidiano e ancestral, o açaí emaranha-se nas práticas comensais da população local, estando presente desde o almoço até o jantar, organizando modos singulares de viver e de comer. Sua presença, mais do que nutritiva, é simbólica — mobiliza afetos, saberes e ritmos sociais.

A cultura alimentar que se constrói em torno do açaí remonta a tempos imemoriais, quando o suco, ou melhor, o vinho extraído do fruto, era produzido artesanalmente, a partir de um saber-fazer transmitido por gerações. Colher e preparar o açaí exige um corpo-técnica, um conhecimento enraizado na experiência e no pertencimento à floresta.

Nesse processo, destaca-se um utensílio fundamental: a peconha — trançada com as folhas da própria palmeira do açaí, ela permite a escalada da árvore, sem a qual não há colheita. A peconha é, portanto, extensão do corpo e expressão da engenhosidade dos povos da floresta.

Dona Maria, personagem das imagens que acompanham este ensaio fotoetnográfico e autoral, é nativa da cidade de Anajás, na Ilha do Marajó. É sob sua expertise e seus gestos enraizados no cotidiano ribeirinho que se revela o saber de fazer o vinho de açaí — um saber que não é apenas técnico, mas também simbólico, ancestral e feminino. É por meio de suas mãos que o açaí se torna alimento, memória e resistência.

Este ensaio é, pois, uma celebração dessas sabedorias encarnadas — da fruta que tinge de roxo as cuias, das folhas que se transformam em ferramentas, e das mulheres que, como Dona Maria, mantém viva a linhagem dos sabores e dos sentidos do Marajó.

Dona Maria Fazendo a peconha. Foto: Miguel Picanço.

Dona Maria fazendo a peconha. Foto: Miguel Picanço.

A peconha é um instrumento de origem ribeirinha, feito tradicionalmente com a folha do açaizeiro. Foto: Miguel Picanço.

A peconha é um instrumento de origem ribeirinha, feito tradicionalmente com a folha do açaizeiro. Foto: Miguel Picanço.

Segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o açaizeiro tem, em média, 20 metros de altura. Foto: Miguel Picanço.

Segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o açaizeiro tem, em média, 20 metros de altura. Foto: Miguel Picanço.

Na maior parte da Amazônia a coleta de açaí ainda é feita manualmente. Foto: Miguel Picanço.

Na maior parte da Amazônia a colheita de açaí ainda é feita manualmente. Foto: Miguel Picanço.

Após a colheita dos cachos, é realizada a debulha do fruto. Foto: Miguel Picanço.

Após a colheita dos cachos, é realizada a debulha do fruto. Foto: Miguel Picanço.

Açaí e peconha no cesto. Foto: Miguel Picanço.

Açaí e peconha no cesto. Foto: Miguel Picanço.

Dona Maria é nativa da cidade de Anajás, na Ilha do Marajó. Foto: Miguel Picanço.

Dona Maria é nativa da cidade de Anajás, na Ilha do Marajó. Foto: Miguel Picanço.

Instrumentos de retirada da polpa do açaí. Foto: Miguel Picanço.

Instrumentos de retirada da polpa do açaí. Foto: Miguel Picanço.

Após ser colhido e lavado, o açaí fica de molho para amolecer a polpa. Foto: Miguel Picanço.

Após ser colhido e lavado, o açaí fica de molho para amolecer a polpa. Foto: Miguel Picanço.

Colher e preparar o açaí exige um corpo-técnica, um conhecimento enraizado na experiência e no pertencimento à floresta. Foto: Miguel Picanço.

Colher e preparar o açaí exige um corpo-técnica, um conhecimento enraizado na experiência e no pertencimento à floresta. Foto: Miguel Picanço.

Teu destino foi traçado / Pelas mãos da mãe do mato / Mãos prendadas de uma deusa / Mãos de toque abençoado (Sabor Açaí, Nilson Chaves). Foto: Miguel Picanço.

Teu destino foi traçado / Pelas mãos da mãe do mato / Mãos prendadas de uma deusa / Mãos de toque abençoado (Sabor Açaí; Nilson Chaves / Joãozinho Gomes). Foto: Miguel Picanço.

A cultura alimentar que se constrói em torno do açaí remonta a tempos imemoriais. Foto: Miguel Picanço.

A cultura alimentar que se constrói em torno do açaí remonta a tempos imemoriais. Foto: Miguel Picanço.

Tens o dom de seres muito / Onde muitos não têm nada (Sabor Açaí, Nilson Chaves). Foto: Miguel Picanço.

Tens o dom de seres muito / Onde muitos não têm nada (Sabor Açaí; Nilson Chaves / Joãozinho Gomes). Foto: Miguel Picanço.

Dona Maria mantém viva a linhagem dos sabores e dos sentidos do Marajó. Foto: Miguel Picanço.

Dona Maria mantém viva a linhagem dos sabores e dos sentidos do Marajó. Foto: Miguel Picanço.

Este conteúdo faz parte da chamada pública Pensando a Amazônia pela Gastronomia, da Revista Amazônia Latitude. Se você é cozinheiro, pesquisador, jornalista, artista, crítico, ativista, chef, agente comunitário ou alguém que estuda e vive a cultura alimentar amazônica, pode enviar textos, fotos, vídeos ou outras expressões até 30 de agosto para [email protected]. As publicações serão feitas de forma contínua ao longo de 2025. Consulte o regulamento completo aqui.

Miguel Picanço é pós-doutor em Antropologia da Alimentação, na linha de pesquisa Patrimônio Alimentar e Turismo, pelo Observatorio de la Alimentación, na Universidad de Barcelona. Doutor em Ciências Sociais pelo Programa de PósGraduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/UNISINOS, na linha de pesquisa: identidade e sociabilidade, com estágio doutoral pela Universidad de Barcelona (UB), no Observatorio de la Alimentación (ODELA (Bolsa/CAPES)). Autor dos livros “Na roça, na mesa, na vida: uma viagem pela trajetória da mandioca, no e além do nordeste paraense” (2018) , “Comida Cabocla: uma questão de identidade na Amazônia; desde uma perspectiva fotoetnográfica” (2021) e “A Vida Social da Mandiocaba: um ingrediente Amazônico” (2021). É professor
efetivo da Educação Básica na Secretaria de Educação do estado do Pará (SEDUC ) e na Secretaria de Educação de Belém (SEMEC). É pesquisador membro do Alere, Grupo de Pesquisa em História da Alimentação e Abastecimento na Amazônia/CNPq. É membro Efetivo da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). É pesquisador nos campos da Antropologia Visual e da Antropologia da Alimentação, em particular da comida como patrimônio alimentar do nordeste paraense.

Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

 

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