Transição ou transação? O paradoxo da COP30 entre a matriz limpa e a lógica extrativista

Pesquisadores e ativistas clamam por uma transição energética justa, que rompa com o extrativismo e a centralização

Painel na Casa das ONGs discute Transição ou Transação?. Foto: Latinidadd/Redes Sociais.
Painel na Casa das ONGs discute Transição ou Transação?. Foto: Latinidadd/Redes Sociais.
Painel na Casa das ONGs discute Transição ou Transação?. Foto: Latinidadd/Redes Sociais.

Painel na Casa das ONGs discute Transição ou Transação?. Foto: Latinidadd/Redes Sociais.

Enquanto governos e negociadores da COP30 em Belém definem metas para abandonar combustíveis fósseis e acelerar fontes renováveis, uma tensão central domina o debate: o financiamento e a lógica de expansão dessa transição permanecem intrinsecamente atrelados aos mesmos modelos  e aos mesmos recursos que se busca superar.

No Brasil, esse paradoxo se expressa com clareza nos números. O país se orgulha de uma matriz energética que, em 2024, atingiu 50% de fontes renováveis na oferta total de energia. Na geração elétrica, o patamar é ainda mais expressivo, com cerca de 88,2% da eletricidade consumida vindo de fontes limpas, sendo eólica e solar responsáveis por aproximadamente 23,7% do total. Tais marcos colocam o Brasil entre as matrizes elétricas mais limpas do mundo em termos de eletricidade. 

Cerca de 88,2% da eletricidade brasileira vem de fontes limpas, como a eólica, mas a crítica da sociedade civil questiona a lógica centralizada de expansão de grandes empreendimentos. Foto: Ricardo Stuckert/Agência Brasil.

Cerca de 88,2% da eletricidade brasileira vem de fontes limpas, como a eólica, mas a crítica da sociedade civil questiona a lógica centralizada de expansão de grandes empreendimentos. Foto: Ricardo Stuckert/Agência Brasil.

Em sessão temática no Belém Climate Summit, dois dias antes da COP30, o presidente Lula ressaltou esses feitos. “Precisamos do mapa do caminho para que a humanidade, de forma justa e planejada, supere a dependência dos combustíveis fósseis e reverta o desmatamento e mobilize os recursos para este fim”, pontuou, pedindo adesão global à luta pela transição. 

O presidente da COP, André Corrêa do Lago, por sua vez, reforçou que “a ação climática não é apenas negociada pelos governos, mas construída por meio da cooperação entre os povos”. A declaração foi feita durante um diálogo com os representantes da sociedade civil vinculados à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC).

Contudo, a “transição” debatida no âmbito oficial da Conferência, ao ser apenas referida como “justa”, não questiona sua base estrutural. Aos olhos de pesquisadores e ativistas, essa transição corre o risco de se tornar uma transação que apenas troca a fonte de energia, mas mantém a dependência de modelos empresariais, de grande escala e, muitas vezes, de lógica extrativista.

Críticas latino-americanas ao modelo de transição

Essa dicotomia foi o tema central do painel “Perspectivas latino-americanas para a transição energética”, organizado pela Associação Brasileira de ONGs (ABONG), na Casa das ONGs – um evento paralelo que deu voz a comunidades, pesquisadores, movimentos sociais e povos tradicionais, onde os especialitas criaram quatro relatórios seguindo o mesmo modelo para expor a situação energética de cada país.

Quando se olha para a América Latina de forma mais ampla, os progressos são reais, mas os desafios persistem. A região registrou, em 2024, cerca de 65% de sua eletricidade proveniente de fontes limpas (acima da média global de 41%). Entretanto, em termos de energia primária (todos os usos de energia, não só eletricidade), os combustíveis fósseis ainda respondem por cerca de 40% da matriz regional, o que mostra que a transição ainda está incompleta.

Engenheiro José Costa. Foto: Latinidadd/Redes Sociais.

Engenheiro José Costa. Foto: Latinidadd/Redes Sociais.

O engenheiro José Costa, da Frente por uma Nova Política Energética para o Brasil, observa que “a transição energética no Brasil, ela acontece de maneira prioritariamente injusta, porque ela se dá, principalmente, através da geração centralizada”. Ele critica o planejamento energético, afirmando que “continua sendo ofertista, ou seja, ele vai apenas, a partir de projeções de crescimento demográfico e de crescimento do PIB, ele vai apenas dizer, olha, a nossa previsão de crescimento de consumo energético é de tantos por cento nos próximos dez anos”. Enfatiza assim que, apesar dos avanços em renováveis, o foco continua sendo no crescimento da oferta e no consumo, sem transformar os padrões de uso energético, transporte e participação social.

A pesquisadora boliviana Tânia Ricaldi, vinculada à Rede de Transição Energética Popular do Centro de Estudios Superiores Universitários da Universidade Mayor de San Simón e à Rede Latino-americana e do Caribe por Justiça Econômica, Social e Climática (Latindadd), traz uma reflexão fundamental. Ela contextualiza que “a transição energética ganhou relevância, hoje é o tema quando falamos de crise climática e de crise planetária, mas é necessário entender essa crise como uma crise estrutural. Trata-se de que devemos transformar os estilos de vida, a visão de desenvolvimento e as lógicas de desenvolvimento que estão imersas nos governos, nos países, mas agora também nas sociedades”.

“Não podemos simplesmente maquiar com alguns componentes vinculados com processos de transição, quando na realidade as bases, os suportes centrais dessa devastação não estão se transformando”, complementa Tânia. Para ela, a chave não é apenas trocar combustível fóssil por solar ou eólico, é fundamental também “transformar a visão do que é a energia. Como necessidade. A energia dirigida à satisfação das necessidades. E a energia como um direito”.

O engenheiro peruano Augusto Durán exemplifica o problema:  “o modelo energético atual do Peru é um modelo energético altamente dependente dos combustíveis fósseis […] As três quartas partes da geração de energia no Peru provêm da queima de combustíveis fósseis”. Ele defende que não se pode “pensar apenas em processos transicionais redutores de combustíveis fósseis, agora com fontes energéticas renováveis, quando não mudamos essas estruturas centrais”. 

Durán apresenta, contudo, casos de comunidades nas zonas montanhosas, costeiras e amazônicas que já praticam “um modelo energético alternativo, baseado principalmente nas energias renováveis e também na gestão comunitária da energia”. Essas experiências incluem sistemas solares fotovoltaicos comunitários; pequenas centrais hidroelétricas autogestionadas; e cooperativas locais, com fórmulas que privilegiam autonomia, soberania energética e justiça territorial.

A dimensão ancestral e espiritual foi trazida pelo líder indígena Vicente Ramiro Obando, do resguardo Grande Esqual, na Amazônia. Ele alerta que “nós viemos das estrelas e através desse efeito da conexão com o mundo dos espíritos, a conexão com o coração de nossa mãe sempre se viu afetada nessa relação quando fazemos mineração, quando extraímos o petróleo”.

Obando ressalta que “as transições energéticas ou o capitalismo que estas como tal assumem é uma limitação frente à nossa própria vida, ao nosso existir”. Segundo ele, as comunidades que vivem na Amazônia, na Colômbia, no território ancestral, “trazem a mensagem de que hoje nesta COP se escute talvez a palavra silenciada das comunidades rurais que estão lá, onde se multiplicam ações de conservação da vida, mas pouco escuta se tem em nossos espaços”.

Relatórios elaborados pels pesquisadores. Foto: Latinidadd/Redes Sociais.

Relatórios elaborados pels pesquisadores. Foto: Latinidadd/Redes Sociais.

O risco do novo extrativismo

As falas e os dados concretos revelam a dicotomia central da Conferência das Partes em Belém. De um lado, a substituição de fontes fósseis por renováveis; de outro, a manutenção de estruturas de poder, propriedade e economia inalteradas.

No âmbito latino-americano, o desafio se multiplica pelo fato de a região possuir reservas estratégicas de minerais críticos para a transição, como cerca de 60% das reservas mundiais de lítio. Uma riqueza mineral que contrasta com as desigualdades territoriais, comunidades desassistidas e exportações de recursos primários, sem que os benefícios sejam revertidos localmente.

Tânia Ricaldi chama atenção para isso, criticando as novas “formas de imperialismo para submeter outros países do Sul, aproveitando seus recursos naturais e incorporando-os à cadeia e à lógica de produção energética, sem que essa transição ou esses chamados processos de transição realmente mudem as relações de dominação e violação de direitos territoriais que ocorrem nos países do Sul”.

Tânia Ricaldi. Foto: Latinidadd/Redes sociais.

Tânia Ricaldi. Foto: Latinidadd/Redes sociais.

O painel da Casa das ONGs trouxe à tona que a transição energética defendida nos fóruns oficiais da  COP30 permanece, em muitos aspectos, presa à lógica do crescimento, das exportações e da mercantilização da natureza. Mesmo quando se substitui o petróleo pelo vento ou pelo sol, o modelo muitas vezes se baseia em grandes empreendimentos, uso intensivo de terra, centralização, desapropriação de comunidades e concentração de lucro empresarial. 

É fundamental que a energia seja reconhecida como direito coletivo, que os territórios sejam protagonistas e que os modos de vida e de produção – especialmente dos povos indígenas, mulheres e jovens – sejam colocados no centro desta mudança, não apenas como beneficiários, mas como formuladores de políticas.

Enquanto a COP30 decide o caminho da transição de combustíveis fósseis para energia renovável, com financiamento vindo do petróleo, a sociedade civil exige que o salto seja para um modelo de desenvolvimento energético justo, popular e inclusivo.

Texto e Montagem da Página: Alice Palmeira
Revisão: Juliana Carvalho
Direção: Marcos Colón

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