Ailton Krenak: ‘progresso e desenvolvimento são dois mitos’

Montagem: Fabricio Vinhas

Montagem: Fabricio Vinhas

No dia 30 de outubro de 2023, o documentário Pisar Suavemente na Terra (2022, 73 min) foi exibido na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). A sessão foi seguida por uma conversa com o líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta, escritor e novo membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) Ailton Krenak, e com o diretor do filme, Marcos Colón. Em quase 30 minutos, Krenak discorreu, a partir de seis perguntas do público, sobre o que chamou de distopia contemporânea, em curso no planeta imerso em guerras, emergência climática e capitalismo.

A moderadora Susanna Hecht, do Centro de Estudos Brasileiros da UCLA, abriu a conversa com uma pergunta a Krenak: O que eu gostaria de perguntar é se você pode ver um caminho, uma maneira para a gente chegar além do impasse em que a gente está. Temos as mudanças climáticas acontecendo, e políticas do governo brasileiro mudando, mas a gente vê forças estruturais que também são muito fortes. Então, como você imagina, e que estratégias temos para pensar o futuro?

Ailton Krenak: Então, que bom te ver, Susanna. É muito bom te ouvir e lembrar que você já andou aqui no Brasil, andou nos territórios, na Amazônia e você viu como nosso povo estava naquele tempo vivendo com muita autoafirmação e coragem. E a gente segue do mesmo jeito.

Sabemos que tem problema para todo lado, mas nós somos fortes e somos capazes de traduzir essa realidade negativa em alguma coisa para a nossa melhor posição e afirmação.

Primeiro, eu gostaria de cumprimentar o Marcos Colón que está aí, e eu estou vendo ele pela tela, e o Alex Ungprateeb Flynn que também está fazendo a entrevista. Também cumprimento a todo o auditório para dizer, Susanna, que a distopia contemporânea não se limita à América Latina, nem à floresta amazônica. Ela é planetária.

O Pisar Suavemente na Terra foi contextualizado naquela época da pandemia, com muita dificuldade, quando os horizontes futuros eram muito ruins. A gente estava vivendo uma pandemia e não tinha muita solução. O documentário foi feito dentro de um pesadelo social. Então ele é um filme muito bonito, porque mostra que povos dentro da floresta são capazes também de criar outros mundos.

A gente não fica só dependente da narrativa ocidental, a gente inventa outros mundos para viver. Essas crises sanitária, política e global, estão perturbando as pessoas no planeta inteiro.

Nós também, mas nós já temos uma experiência constante nessas mudanças, seja do clima, seja da ordem econômica. Elas sempre afetam a nossa vida. E acredito que isso dá mais resiliência para o nosso povo para enfrentar essas dificuldades.

Então, Susanna, cogitar o futuro talvez não seja exatamente o que nós precisamos. Me parece que o que nós precisamos é um devir mundo, um devir mundo, não de futuro.

Por exemplo, quando nós vemos uma ruína, uma ruína florestal, a gente tem que imaginar aquela floresta se refazendo. Uma refazenda.

Esse refazer ainda é possível em alguns lugares do mundo. Nós estamos num lugar onde a gente pode refazer. Tem povos que estão vivendo em um lugar que já está totalmente destruído. Eles vão ter que fugir de lá, vão ser refugiados.

Nós não somos refugiados. Ainda não. Então, nós temos um devir mundo.

Eu vou continuar porque o pensamento para cumprir as observações sobre imaginar o futuro é confrontar a distopia planetária. Nós não estamos vivendo mais apenas um complexo que a gente chama de climático. Não é só. Eu estou junto com vocês nesse momento sabendo que um dos maiores danos ambientais que está ocorrendo nessa década são os conflitos armados.

Na Rússia, na Ucrânia, Israel e Estados Unidos, lá no Golfo Pérsico, são essas guerras que estão castigando o ecossistema terrestre global. As pessoas seguem falando de mudança climática, quando na verdade o centro da questão hoje é a possibilidade de um conflito generalizado onde a gente vai danificar a atmosfera do planeta, o ecossistema terrestre, o oceano e muitas das nossas fontes de subsistência vão ser afetadas por essa sequência de conflitos irresponsáveis. E eu não vi ainda ninguém incluindo isso como dano climático. Eu, se pudesse, ia propor uma ação de responsabilidade contra os governos que estão jogando bomba e iria responsabilizá-los por danos ambientais – e não só por danos aos direitos humanos.
Ailton Krenak

Os humanos fazem guerra o tempo inteiro. Eu estou querendo responsabilizá-los agora, não pela morte de outros humanos, mas pelo dano irreparável que eles estão causando ao planeta Terra, ao organismo da Terra e às futuras gerações, que não vão ter o mundo que eu tive.

As futuras gerações vão ter um mundo estragado, um mundo poluído. E essas autoridades, esses governos que estão fazendo isso, deveriam ser levados para um banco de réus, porque eles estão infestando o planeta.

Não tem nada a ver com mudança de clima. Tem a ver com a criminalidade. Então, eu ainda estou esperando alguém se dedicar a fazer um inventário das consequências ambientais da guerra, desse curto período de guerra.

Vamos pegar os últimos dez anos. Fazer uma avaliação se esse dano é reparável ou se ele é irreparável. Essa é a questão. Eu quero ver alguém escrever sobre isso ou falar sobre isso. Mostrar o tamanho do dano ambiental que os últimos conflitos armados já produziram.

Se nós estivermos preocupados com a mudança climática, a gente agora deve considerar a possibilidade que é da extinção de uma grande parte da vida do planeta sob bombas.

Alex Flynn, Marcos Colón, Ailton Krenak e Susanna Hecht na sessão de perguntas e resposts depois do filme  Foto: Amazônia Latitude

 

 

Pergunta da plateia: De que maneira você acha que nós, com as nossas vozes, ainda podemos trazer propostas ou alternativas a essa encruzilhada que, digamos, nós nos encontramos?

Krenak: Olha, as pessoas comuns, o comum, ao longo da história, o comum nunca tem voz.

E quando fizeram o primeiro relatório do clima, aquele relatório chamado relatório Brundtland – e o outro nome daquele relatório é “nosso futuro comum”. Quando nós fomos alertados de que nós todos passaríamos a ser comuns, quer dizer, todos nós vamos ser atingidos, todos vamos ser atacados, todos vamos sofrer o dano.

A questão é que não são todos que têm como responder. O comum não tem como responder. E as grandes corporações, os governos, esses esquemas, essa subestrutura são os únicos que falam.

Nós, os comuns, independente de quanta informação nós temos ou não, nós não temos como articular uma resposta a essa crise encaixada em vários termos. Ela é uma crise moral, ética, política, conceitual, de princípio.

Na verdade, é uma mudança de paradoxo. A gente precisa mudar, quer dizer, de paradigma. Nós precisamos mudar o paradigma. Ele está todo errado. Durante a pandemia, as pessoas pensavam que todo mundo ia morrer. Aí depois eles inventaram que a gente ia recuperar o tempo perdido.

Eu fico olhando que as pessoas não aprenderam nada com a tragédia. Então, o comum vai continuar sem o que fazer. Principalmente agora, que essa subestrutura decide tudo e não precisa mais dessa conversa social, de participação popular.

Isso aí está fora de moda. Os autoritários, os governos, tomam decisões e pronto, junto com as corporações. Seja sobre a guerra ou sobre a paz. Alguns milhões de pessoas se levantaram recentemente protestando contra a guerra.

Eu não vi nada acontecer porque algumas milhões de pessoas protestaram. Porque quem tem o poder de tomar decisão não está escutando as pessoas. Não escuta. Eu entendo realmente o que você me pergunta sobre a impotência do comum.

Teve um tempo que se você tivesse uma multidão de pessoas, você tinha força. Agora, se você tiver uma multidão de pessoas, não representa nada. Acabaram com a cidadania. Inventaram uma cidadania planetária.

A gente não ser cidadão de lugar nenhum. Eles estão produzindo, na verdade, um mundo de refugiados. Todo mundo refugiado. Se tem um povo que ainda está vinculado ao seu território, pode transformar o seu território em uma potência identitária, cultural, para ele poder viver.

Ele tem que fazer uma cosmopolítica do lugar onde ele está. É o que eu faço. Eu descobri o que é cosmopolítica. Ao invés de eu ficar tendo problemas criados pelo outro, eu mesmo crio os meus problemas.

Pergunta da plateia: Eu sou um velho freireano, um dos fundadores do Instituto Paulo Freire aqui na UCLA. Eu nunca entendi por que Paulo Freire se tornou o inimigo público número um do governo Bolsonaro. Porque, como você disse, acabou com o diálogo. O Freire é um romântico, comparativamente. O governo Bolsonaro usou o Covid como uma arma contra os povos indígenas. Era óbvio o que ele estava fazendo. Mas agora, o que é que o Lula está fazendo de diferente? Que seja realmente esperançoso, como diria o Paulo Freire.

Krenak: Eu creio que para responder a sua pergunta, à maneira de Paulo Freire, o que o Lula fez foi devolver a esperança ao povo brasileiro, em especial o cessar fogo em cima das terras indígenas.

A gente começou há dez meses atrás o governo do Lula. Ele não conseguiu devolver muita coisa, mas conseguiu parar o ataque contra os territórios e os povos indígenas. Isso é óbvio, né? O que ele vai poder fazer, além disso, vai depender da situação geral.

O Brasil não está descolado da realidade global. A economia do Brasil está sujeita aos danos de uma situação de desordem geral no planeta. Ele está governando. E tomara que tenha condições de continuar governando.

Pergunta da plateia: Como sair desse estado de coma em que nos encontramos, como despertar?

Krenak: A gente pode olhar isso da perspectiva que o Cólon mencionou, que é a mudança da cultura alimentícia de um país inteiro, com 200 milhões de pessoas mudando a cultura alimentícia.

Nós podemos olhar isso com outros ataques à vida, à autonomia de pequenas comunidades que têm os seus territórios desmantelados para a produção da monocultura, que é o caso da Amazônia e do Cerrado.

Todas essas camadas de violência acabam tornando todo mundo um pouco adormecido, como se nós estivéssemos mesmo impedidos de escolher outro caminho, outra possibilidade, que não seja essa coisa tão predatória.

A possibilidade de a gente atuar em relação a isso, implica numa experiência, num exercício. O exercício é o corpo na Terra. Corpo, Terra. O corpo tem que estar na Terra, porque se o corpo estiver na Terra, ele começa a receber estímulos extra-humanos, receber estímulos disso que a gente chama de natureza.

Mas a pessoa tem que estar plugada na Terra. Esse plugue na Terra – e procure fazer isso onde você estiver. Obviamente não dá para fazer isso numa calçada de cimento, mas procure fazer isso.

Se você plugar com a Terra, você vai ver que a Kátia Akrãtikatêjê, o Pepe Manuyama, os outros colegas nossos, os outros companheiros nossos que enfrentam situações difíceis no território. Eles continuam com força, com coragem, porque eles estão na Terra, não podem sair da Terra. Isso é importante. Aí os nossos corpos deixam de ser essa coisa neutra e passam a ser reagentes. Nosso organismo é um organismo que reage.

É a Terra que faz isso com a gente. É a Terra que pode fazer o corpo da gente ser reagente e não ficar com muita coisa na cabeça. Não deixe a sua cabeça ficar cheia. Põe a cabeça na altura do coração para você vibrar com o seu coração.

Não fique impressionado com o barulho do mundo. O barulho do mundo não vai parar. Então é manter um pensamento que te confirma como um ser capaz de transformação.

Fica na Terra. Se você pedir para a Terra, a Terra te dá. Tem um quilombola, meu amigo, que publicou um livro recente, Nego Bispo. O livro dele tem o título de A Terra dá, a Terra quer. Ela dá e quer receber. A Terra dá, a Terra quer. Se você se grudar na Terra, está tudo bem.

Marcos Colón: Krenak, a pergunta também é dirigida a você. E faz menção que o filme traz o diálogo entre o processo de mecanização de grandes empreendimentos, como o impacto da estrada de Ferro Carajás na aldeia da Kátia Akrãtikatêjê, no Pará, e da atividade petroleira em Iquitos, no Peru, contada pelo Pepe Manuyama. De que maneira essa pluralidade é importante para narrar essas histórias?

Krenak: Eu acompanhei a descrição que você fez dessas atividades extrativistas na região amazônica e talvez fosse uma oportunidade para a gente convidar todo mundo que está acompanhando a nossa conversa a entender que o capitalismo, hoje, no mundo inteiro, ele é extrativista.

Não é só na Amazônia. Ele é extrativista. Ele tira combustível, ele tira grãos, ele tira madeira, ele tira tudo da terra.

Então, assim, nós chegamos na voragem do capitalismo. A voragem do capitalismo sai comendo o corpo da terra. Às vezes a gente configura uma tragédia e, no caso, por exemplo, da destruição da floresta amazônica por queimada ou pelo garimpo. A gente cristaliza um exemplo e esquece que isso está acontecendo em todo o mundo.

O extrativismo é a última fronteira do capitalismo. Quer dizer, isso que a gente pensava que era uma economia sofisticada e complexa, na verdade, ela é um assalto ao corpo da terra. Isso é extrativismo.

É o capitalismo na sua máxima voracidade. Ele não tem ética, ele não tem moral nenhuma e dane-se. Essa é a questão. A gente não pode ficar emoldurando a história. A história é que o capitalismo está falido, ele está desesperado e agora está mordendo todo mundo no pescoço.

Ele perdeu qualquer relação com a ideia de humanidade. Na verdade, a ideia da humanidade já foi abolida. A maneira que os governos e as corporações lidam com a vida das pessoas, a vida não vale nada.

Pergunta da plateia: Gostaria de fazer um agradecimento e dizer que ter um documentário como Pisar Suavemente na Terra é para a gente uma possibilidade de mostrar ao mundo o que vem acontecendo no nosso país. Também gostaria de dizer que as publicações da Susanna Hecht sobre a Amazônia são vozes para a gente. Então eu acredito que um momento como esse traz a possibilidade de mostrar para o mundo o que a gente vem sofrendo. E deixo uma breve pergunta. Como os povos indígenas vêm tentando resistir frente ao monocultivo? Quais as possibilidades de tentar lutar contra esse ser histérico, a introdução desse agro tão presente no nosso país?

Krenak: As publicações da Susanna Hecht continuam atualizadas, inclusive com relação à morte e resistência dos povos indígenas, que sempre foi o de valorizar o que tem localmente, fortalecendo suas próprias dietas, assegurando que no seu território tenha comida para não passar fome, assegurando que o conhecimento esteja associado à diversidade da floresta, que é a nossa medicina. Então essas fortalezas, elas são estratégias mais do que de resistência, elas são estratégias que produzem resposta a cada crise que chega.

As crises, para nós, não são excepcionalidades. As crises, para nós, são produtos dessa relação desigual, que nós temos que confrontar toda hora, todo dia, e elas não acontecem episodicamente, esquecendo que a maioria das pessoas tem mais dificuldade de lidar com esses danos do que os povos indígenas.

Eu disse alguns anos atrás que eu não sabia como que os brasileiros, em geral, iam suportar um governo predador e antissocial, mas que o povo indígena sabia, sim, porque nós sempre enfrentávamos esse tipo de abuso de liberdade para a gente.

Eu fico percebendo que agora muitas pessoas estão se sentindo atacadas, mas nós sempre fomos atacados. Então, isso não faz a gente desistir de nenhuma escolha nossa.

As nossas escolhas, elas são plurais, elas implicam em ter a floresta, ter o rio, ter qualidade de ar para respirar, comida. Então, é uma perspectiva muito, digamos, simples, que não envolve nenhum aparato. A gente não precisa de nenhuma moeda, não precisa de nenhuma besteira como as pessoas acham que é necessário ter uma moeda, ter poder econômico, ter armas. Isso tudo é inútil.

Nós estamos interessados nesse vínculo com o território e é por isso que a gente luta para a demarcação dos territórios. A gente não está querendo demarcar o território porque a gente quer ter uma gleba de terra, uma fazenda, não. Nós estamos querendo proteger os territórios para que continue tendo peixe, caça, comida, saúde, que todo mundo possa viver com um pouco mais de confiança no dia a dia, sem as garantias falsas do progresso.

Dessa bobeira de progresso, desenvolvimento. Progresso e desenvolvimento são dois mitos totalmente sem fundação nenhuma. São papos furados. O progresso e o desenvolvimento: dois papos furados.

A exibição do documentário Pisar Suavemente na Terra e a conversa com Ailton Krenak no Glorya Kaufman Dance Theatre da UCLA, em 30 de outubro, foi realizada com patrocínio do Centro de Estudos Brasileiros, Instituto Latino-Americano, Artes e Culturas Mundiais/Dança e o Centro de Estudos Indígenas Americanos da UCLA. O evento teve entrada gratuita e foi aberto ao público.
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