Ana Estrela: O filme etnográfico na antropologia pós-colonizadora

Close da antropóloga Ana Estrela semi-perfilada, olhando para a esquerda. Ela é uma mulher branca de cabelos e olhos castanhos. Ela está de coque e usa uma regata vermelha, e tem o rosto pintado com linhas vermelhas e azuis.
Ana Estrela tem carreira de mais de dez anos na área audiovisual, com formação interdisciplinar em direito, música, antropologia e audiovisual. (Foto: FIFEP/ Divulgação)
Para curadora do IV Festival Internacional do Filme Etnográfico do Pará, a Antropologia Visual de hoje é resultado da luta por protagonismo

“Um etnógrafo é alguém que reúne conceitos, interesses, recortes e relações da antropologia para melhor fazer comparações entre si e os outros.” Essa é a definição que a antropóloga da Universidade de São Paulo (USP), Ana Estrela da Costa, dá a si mesma no texto “Como me tornei uma etnógrafa, ou: um campo na minha cidade”, de 2015. A obra que discorre sobre seu encontro com a etnografia, bem como todo o processo de auto-reconhecimento dentro da antropologia, é prato cheio para compreender a relação da pesquisadora com o filme etnográfico.

Membro tanto da curadoria quanto do júri do prêmio Jean Rouch do IV Festival Internacional do Filme Etnográfico do Pará (FIFEP), que destacará, entre os dias 20 e 26 de outubro, os melhores filmes etnográficos do ano, Ana Estrela tem uma carreira de mais de dez anos na área audiovisual. Sua formação é interdisciplinar, passando pelo direito, música, antropologia e audiovisual.

A pesquisadora, além disso, viveu por um ano com a população Maxakali, na região do Vale Mucuri, em Minas Gerais, onde desenvolveu um trabalho documental que resultou na criação do Coletivo de Cinema Maxakali do Pradinho.

Como se envolveu com o Festival Internacional do Filme Etnográfico do Pará?
Antes, eu estava mais ligada a eventos acadêmicos. Neste meio, conheci o coordenador do FIFEP, Alessandro Campos, junto com a sua turma da Universidade Federal do Pará (UFPA), no Colóquio de Antropologia da Amazônia. Lá, conheci o seu grupo de estudos de Antropologia Visual, o Visagens, e me interessei profundamente, porque atuo tanto com pesquisa quanto com projetos audiovisuais indígenas. Fui me envolvendo com o projeto e surgiu esse convite, primeiro para trabalhar na curadoria do prêmio Divino Tserewahú, na edição do ano passado, e agora para estar no júri e na curadoria do prêmio Jean Rouch.

O que esse trabalho de curadoria de filmes indígenas e etnográficos significa dentro do contexto da sua carreira como antropóloga?
É com esse trabalho de curadoria que conseguimos pensar em arte no geral, não só em cinema. Precisamos prestar muita atenção em vários quesitos, parâmetros e referências, porque é necessário criar um mecanismo de exclusão. Enquanto isso, também precisamos entender que vivemos em um país marcado pela precariedade, ainda mais na área do cinema. A produção de filmes não depende só de equipamentos, mas de uma formação técnica. Essa é a parte mais difícil do trabalho do curador: conciliar olhares diferentes, entender a fotografia, a produção compartilhada. Ter consciência de todos os processos é fundamental para compreender que o que está em jogo vai além de uma linguagem imagética. Por isso, é um privilégio participar de uma curadoria. Sinto que há um compromisso assim em considerar todos esses contextos. Não a inclusão pela inclusão, mas dar um passo atrás para realmente nos perguntarmos sobre o que é que está sendo feito nas produções, o que está sendo mostrado e o que é que não está. É uma oportunidade de conhecer outros universos.

Como você separa seu papel como curadora do papel como jurada?
Em ambos os casos, existe um trabalho de negociação, porque a curadoria e o júri são formados por comissões. Assim, sou uma entre várias pessoas defendendo suas opiniões. Existem parâmetros, como eu disse, que na maioria das vezes não são objetivos. Para falar a verdade, são bem subjetivos. E tudo bem! É legal termos essa diversidade. Como a linguagem do documentário é muito ampla, ela pode render muitas possibilidades e, algumas vezes, podemos esquecer disso, do valor etnográfico do audiovisual. O trabalho nos obriga a fazer o exercício de conciliar o entusiasmo em relação aos filmes com o parâmetro técnico rigoroso. Para mim, a decisão sobre os vencedores do prêmio é muito menos dolorida do que a seleção para as mostras competitivas, porque nunca sabemos o que pode surpreender em cada edição.

Como foi a sua trajetória no audiovisual etnográfico? Quais os momentos mais marcantes de sua produção junto dos Maxakali?
Os Maxakali são conhecidos por filmarem muito bem, por sua qualidade de produção. Em 2017, tive a oportunidade de morar em uma aldeia indígena no território do Pradinho, e foi nesse ano que o processo de produção do nosso filme começou. A edição demorou muitos meses, e tudo foi feito para comunidade inteira. Sempre evito pegar o material filmado, porque, por ser um trabalho coletivo, acaba sendo um processo muito lento. Como queria finalizar o projeto, objetivamente, fiz algumas edições sozinha, com a autorização deles, mas ainda assim deixei tudo entregue na experiência, para a construção dessa autonomia. Não me orgulho desse trabalho pelo resultado, mas porque o processo foi realmente rico.

Tanto você quanto Alessandro Campos, coordenador do FIFEP, falam sobre a necessidade do trabalho em conjunto com as comunidades. Isso é padrão na antropologia visual?
A antropologia começou como uma disciplina extremamente colonizadora. Pouco tempo atrás, a atividade se resumia em reproduzir e acumular dados e informações sobre “o Outro”. Só depois começou uma fase um pouco mais engajada. Hoje em dia, felizmente, esse Outro não é mais um objeto que se deixou capturar e que aceita as narrativas externas, sem espaço para produzir suas próprias obras. Considerando esse momento da antropologia, é bem difícil produzir uma narrativa objetificando um grupo. Mas ainda acontece. Nossa experiência é diferenciada. Minha vivência junto aos Maxakali faz parte dessa transformação da própria antropologia. É importante lembrar, contudo, que isso ocorre às custas de muita luta, e não sem provocar algumas reações tenebrosas que temos visto em todos os campos da política.

Ana Vitória Monteiro Gouvêa é graduanda em jornalismo da Universidade Federal do Pará (UFPA). Foi bolsista de iniciação científica, além de colaboradora da Revista Brasileira de História da Mídia e do projeto DivulgAí. Estagia na TV Liberal e está produzindo um documentário sobre Barcarena, vencedor do Prêmio Jovem Jornalista 2022 do Instituto Vladimir Herzog.
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