Qual o preço de um rio? Hidrovias da Amazônia sob ameaça de privatização
Em carta ao Ministério dos Portos e Aeroportos, entidades pedem suspensão imediata de privatização das hidrovias dos rios Madeira, Tapajós e Tocantins

Comboio de barcaças em movimento no Rio Madeira, uma das hidrovias incluídas no PND. Foto: Emily Costa/GT Infraestrutura.
Um grito de socorro pela Amazônia. Apresentando um conjunto robusto de críticas, uma carta encaminhada ao Ministério dos Portos e Aeroportos (MPOR) enumera 11 tipos de impactos e 9 falhas no modelo sobre a política de infraestrutura hidroviária na região. O documento pede a suspensão imediata e a revisão do processo, exigindo diálogo estruturado e planejamento adequado.
A lista extensa visa chamar a atenção para os graves danos socioambientais provocados pelas hidrovias voltadas à exportação de commodities nos rios Madeira, Tapajós e Tocantins. A carta, assinada pelo Instituto Madeira Vivo (IMV), Movimento Tapajós Vivo (MTV), Instituto Zé Cláudio e Maria (IZM) e Grupo de Trabalho Infraestrutura e Justiça Socioambiental (GT Infra) , é uma resposta ao Decreto nº 12.600/2025, sancionado em agosto pelo presidente Lula.
O ambientalista e historiador Iremar Antônio Ferreira, explica que a medida do Governo Federal os pegou de surpresa. “Nossas comunidades ficaram sabendo da inclusão da hidrovia de madeira no PND a partir da própria imprensa… No nosso entender, [o decreto] passa por cima desse processo de diálogo que estávamos estabelecendo. Isso nos causou surpresa, porque se a gente está pensando em como ter a participação popular nesse processo, aí de repente já vem um projeto desse, então causa muita estranheza”, pontua o diretor do IMV.

O diretor do IMV, Iremar Antônio Ferreira, critica a inclusão da hidrovia no PND “por cima do processo de diálogo” com as comunidades. Foto: Acervo pessoal de Iremar Antônio Ferreira.
Os impactos socioambientais e a ameaça às comunidades
A inclusão das hidrovias no Programa Nacional de Desestatização (PND) abre caminho para a concessão à iniciativa privada. Sua expansão, voltada à exportação de soja e minérios, atinge diretamente os ecossistemas amazônicos e os direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais.
O modelo envolve a instalação de grandes terminais privados, dragagem, derrocamento e o trânsito de grandes comboios de barcaças e navios. Entre as consequências, estão os danos à fauna aquática e à biodiversidade, seja por meio da perturbação e destruição de ambientes de alimentação e reprodução de peixes e quelônios ou através de questões mais específicas. É o caso da invasão do mexilhão dourado, uma espécie exótica que causa danos à vida aquática, no Rio Tocantins.
A doutora em Ciência Ambiental, Renata Utsunomiya (GT Infra), alerta que a destruição de formações rochosas como o Pedral do Lourenço é crítica, pois “os pedrais são ambientes essenciais para os peixes, sobretudo em rios de águas claras como o Tocantins e o Tapajós, sendo considerados “berçários de peixes” e pontos sagrados, o que reforça o risco de extinção de espécies endêmicas como o boto do Araguaia na bacia. Ela também confirma que o mexilhão dourado já está presente na região do Pedral do Lourenço, tendo chegado devido a descuidos com a água de lastro das embarcações.

Renata Utsunomya em um seminário às margens do rio Tocantins, vila Itupiranga, em agosto de 2025, junto com o Instituto Zé Claudio e Maria e o MPF_PA. Foto_ Emily Costa./GT Infraestrutura.
Além disso, o pó da soja com agrotóxicos tende a contaminar o ar, os peixes e a água, degradando sua qualidade e interferindo no modo de vida de populações ribeirinhas e indígenas próximas aos portos. Claudelice Santos,coordenadora do IZM, é direta: “os peixes estão ficando envenenados, e o povo que come o peixe também vai ficar envenenado… se essas barcaças, com esses produtos, contaminam o rio como está acontecendo, todos nós seremos contaminados”.
Na navegação, as comunidades já vivenciam os impactos. Afinal, arriscar espaço com os grandes comboios representa um risco de morte somado à alteração dos canais de navegação e a criação de bancos de areia, que podem mesmo gerar o isolamento. Nesse cenário intimidador, a violência é uma constante.
“Nós tivemos um caso bem específico em que a embarcação escolar estava levando os alunos de volta para as suas comunidades e uma dessas barcaças com segurança armada. Eles atiraram contra a embarcação de estudantes e uma aluna foi ferida, não chegou a comprometer a vida dela. Mas, de raspão, pegou na cabeça de uma aluna,” lembra Iremar Antônio Ferreira.
Claudelice Santos, complementa, citando um acidente que aconteceu na Ilhas Pimenteiras, no Tocantins, onde “uma dessas balsas, ela perdeu o controle, simplesmente foi pra cima de uma comunidade, quase passou por cima de crianças”, expondo a ausência de salvaguarda.
Mas os prejuízos aos meios de vida das populações que dependem de rios saudáveis e livres para sua sobrevivência não terminam aí. A agricultura também é alvo, tendo em vista que a formação de “banzeiros” (ondas) pelas grandes barcaças tende a destruir os plantios de várzea.
Ao reduzir o custo do frete nas áreas ao redor dos portos, o modelo incentiva a expansão da produção de monocultivos de soja em grande escala, facilitando práticas de especulação fundiária e grilagem de terras públicas em contextos de fraca governança, o que pressiona os territórios de comunidades tradicionais. Mais ainda, os empreendimentos hidroviários geram riscos de impactos cumulativos, especialmente em rios que já sofrem a degradação de hidrelétricas, como as UHEs Santo Antônio e Jirau no Rio Madeira, onde os danos socioambientais e as violações de direitos nunca foram reparados.
O risco cumulativo também existe com as modalidades de transporte terrestre, como no caso do Corredor Logístico Tapajós-Xingu, onde obras rodoviárias e ferroviárias, como a Ferrogrão, tendem a gerar um aumento drástico no trânsito de barcaças no rio Tapajós. A soma dos efeitos de hidrelétricas e hidrovias, como mudanças nos regimes de vazão e transporte de sedimentos, afetam diretamente os meios de vida e os direitos das populações.

Claudelice Santos, coordenadora do IZM, denuncia a contaminação da água e dos peixes por agrotóxicos e luta contra a negação do direito à consulta prévia de ribeirinhos. Foto: Acervo pessoal de Claudelice Santos.
Falhas no planejamento, licenciamento e violação de direitos
Uma das principais críticas à medida está relacionada à sua centralização, falta de transparência e priorização de grandes fluxos de exportação, ignorando a sustentabilidade e a segurança de quem vive nesses locais. A violação do direito à consulta livre, prévia e informada de povos indígenas e comunidades tradicionais, conforme determina a Convenção 169 da OIT, marcada pela falta de participação nos processos de decisão, evidencia isso.
Claudelice Santos critica veementemente a negação desse direito, destacando que essa violação é um dos principais problemas, sendo a consulta um direito de “povos e comunidades tradicionais” e não apenas de povos indígenas.
“É tão absurdo que, em alguns anos atrás, o Ibama emitiu uma nota técnica dizendo que não havia povos e comunidades tradicionais ao longo do Rio Tocantins. Não cabe ao Ibama dizer ou não que tem ou não”, denuncia.
O referido documento, na realidade, desconsidera a necessidade de realizar a consulta prévia, livre e informada às comunidades ribeirinhas do território do Pedral do Lourenço. A ação gerou uma nota de repúdio das comunidades ribeirinhas extrativistas da região.
Questionado sobre a falta de Consulta Prévia e Informada, o Ibama defendeu que tem promovido a participação social, citando audiências públicas e diversas reuniões com comunidades na área de influência do Pedral do Lourenço e a realização do Diagnóstico Socioambiental Participativo (DSAP).
Segundo o órgão, essas interações levaram a “alterações nas propostas e diretrizes de diversos Programas Ambientais, as quais foram incorporadas à Licença de Instalação (LI)”. No entanto, o ponto central da divergência entre as entidades e o governo foi explicitado pelo Instituto:
“O Ibama entende não ser de competência do licenciamento ambiental a consulta livre, prévia e informada nos moldes estabelecidos pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”, afirma em nota.
“Essa narrativa do desenvolvimento é uma narrativa política, uma grande mentira” afirma Carlos Alves. “Ao mesmo tempo que eles trazem esse desenvolvimento através dessas infraestruturas, eles causam muitos danos ambientais à própria região, e, para isso, muitas vezes as pessoas não estão ligadas nessa questão”, conclui.

Carlos Alves, militante do MTV, defende que a “narrativa do desenvolvimento” por meio das infraestruturas é uma “grande mentira” que causa danos ambientais. Foto: Acervo pessoal de Carlos Alves.
Entre as maiores ameaças em relação aos projetos de hidrovias nas bacias do Madeira, Tapajós e Tocantins está a expulsão de ribeirinhos e outras populações tradicionais em vilarejos e cidades, devido à expansão desordenada de Terminais de Uso Privado (TUPs) e à apropriação indevida de terras. Essa realidade já se manifesta em grandes projetos de “desenvolvimento”, à exemplo do que ocorre em Santarém (PA), onde a expansão dos terminais de uso privado e a ocupação desordenada do entorno já são realidade.
Carlos Alves, militante do Movimento Tapajós Vivo, presencia o descaso com as populações tradicionais no Baixo Amazonas. “Essa questão sobre o lago do Maicá, é um sentimento de perda, um sentimento de exclusão, um sentimento de que foram tomadas decisões que não passaram pelo crivo das comunidades. O plano diretor que foi aprovado, foi aprovado não contendo essa área de ampliação portuária e algum tempo depois a Câmara Legislativa aprova esse documento, incluindo a área como área portuária,” ilustra.
Ao criticar o modelo de planejamento e licenciamento adotado, a carta reforça a deficiência no planejamento, com o subdimensionamento dos riscos socioambientais , incluindo os impactos cumulativos com outros empreendimentos, como hidrelétricas, rodovias, ferrovias e portos, além da falta de análise de alternativas.
Junto a isso, a concessão demonstra desarticulação entre o planejamento de hidrovias e outras políticas ambientais e territoriais, referentes à gestão das águas, conservação da biodiversidade, e planejamento territorial. O documento também aponta uma falha grave com a falta de dados suficientes sobre o transporte aquaviário na fase de diagnóstico do Plano Nacional de Logística (PNL 2050), o que pode enviesar o plano para a expansão do modal, agravando os riscos.
A inexistência de licenciamento ambiental de hidrovias como um todo, cujas exigências de órgãos ambientais se limitam a intervenções pontuais como derrocamentos e dragagens, ignora os impactos amplos em ecossistemas aquáticos e terrestres e na navegação de grandes embarcações.
A pesquisadora Renata Utsunomiya explica que esse é um problema sério, pois a licença “fatiada” ignora as demais ações necessárias, como sinalização, balizamento e sistemas de controle operacional, e os riscos de acidentes, impossibilitando também o monitoramento correto e seguro da hidrovia. Essa deficiência torna o modelo controverso, especialmente em um momento crucial para o Brasil, anfitrião da COP30.
Na verdade, a prática de licenças emergenciais para dragagens cada vez mais agressivas tem sido adotada como forma de favorecer o trânsito de commodities justamente em meio a secas prolongadas associadas às mudanças climáticas que afetam a Amazônia. Essa estratégia, ao invés de buscar soluções adaptativas e sustentáveis, agrava a vulnerabilidade das comunidades ribeirinhas, que já sofrem com isolamento, falta de água e alimentos.
A visão oficial de que os projetos “não gerarão ônus a ribeirinhos” é extremamente deturpada frente aos problemas relatados. Para um projeto desse porte espera-se, no mínimo, que o Ministério dos Portos e Aeroportos (MPOR) e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) não avancem com os processos de concessão até a conclusão do Plano Nacional de Logística (PNL 2050) e do subsequente Plano Setorial Hidroviário, previsto para 2026.
Adicionalmente, espera-se o básico, que é o diálogo estruturado entre o poder público e a sociedade civil, com participação ativa das comunidades afetadas. Propõe-se, como pontapé inicial, a realização de reuniões oficiais com organizações sociais nos territórios impactados.
“A gente quer um modelo que as comunidades tenham participação, sejam ouvidas, onde a natureza também tenha direito. Eu acredito que tem muitas iniciativas positivas, com a questão da agroecologia, a questão da energia sustentável…esse modelo que é sustentável e que garante a floresta em pé e que distribui igualitariamente os recursos que chegam à comunidade, esse modelo que a gente aposta”, esperança Carlos Alves.
*Acesse a carta na íntegra!
Texto, edição e montagem de página: Juliana Carvalho
Direção: Marcos Colón
