Entre cheias e secas: os extremos do rio Madeira e o que eles significam para a Amazônia

Em seis meses, rio saiu da maior seca histórica e se aproxima de cota de enchente

Prestes a alcançar novos índices históricos, cheia no rio Madeira também é sinal de provável seca extrema. Foto: Prefeitura Municipal de Porto Velho.
Prestes a alcançar novos índices históricos, cheia no rio Madeira também é sinal de provável seca extrema. Foto: Prefeitura Municipal de Porto Velho.
Prestes a alcançar novos índices históricos, cheia no rio Madeira também é sinal de provável seca extrema. Foto: Prefeitura Municipal de Porto Velho.

Prestes a alcançar novos índices históricos, cheia no rio Madeira também é sinal de provável seca extrema. Foto: Prefeitura Municipal de Porto Velho.

Nós ribeirinhos vivemos na misericórdia de Deus. Quando não é a seca, é o rio cheio”

Maria de Fátima acorda todos os dias com a vista de um dos maiores rios do mundo: o Madeira. Exceto em 2024, quando “o rio mar” desapareceu em meio a uma seca extrema e deu lugar à areia. Seis meses depois, o cenário é outro: o mesmo rio invade plantações que antes morriam de sede. 

Com 3,3 mil quilômetros de extensão, o rio Madeira desempenha um papel fundamental em múltiplos setores. Transporte fluvial e abastecimento, geração de energia elétrica e manutenção de ecossistemas.

Ele é principalmente lar e parte de um modo de vida único para várias comunidades que vivem em suas margens. Isso apenas para falar dos humanos. 

Em 11 de outubro de 2024, o rio Madeira atingiu seu nível mais baixo desde o início do monitoramento feito pelo Serviço Geológico do Brasil em 1967. Naquele dia, a água não passava de 19 centímetros e o leito do outrora gigante aquático exposto evidenciava a seca severa. 

Seis meses depois, com 16,60 metros o cenário é outro: o rio ultrapassou a cota de perigo e se aproxima do nível que a Agência Nacional de Águas (ANA) classifica como enchente: 17 metros. 

Mas a mudança drástica não se restringe ao rio Madeira.

No Acre, o principal rio do estado transbordou e deixou fora de casa mais de 31 mil pessoas. São 8,6 mil famílias de 19 comunidades, segundo a Defesa Civil do Estado. Três delas ficaram isoladas devido à cheia. 

O Parque de Exposições Wildy Viana, em Rio Branco, que normalmente serve para sediar eventos, feiras e shows, precisou se tornar abrigo para 143 pessoas, que agora começaram a voltar para casa.

Segundo a Defesa Civil Municipal, situações como a deste ano estão se tornando mais recorrentes e as consequências são caras e dolorosas. Além das famílias desabrigadas, ribeirinhos que trabalham com agricultura perderam cerca de 40% da produção.

Prefeitura de Porto Velho distribui água para as famílias afetadas pelas cheias no rio Madeira. Foto: Prefeitura Municipal de Porto Velho.

Prefeitura de Porto Velho distribui água para as famílias afetadas pela cheia no rio Madeira. Foto: Prefeitura Municipal de Porto Velho.

Enquanto isso, a cheia também traz a necessidade de reconstrução pública depois que o rio se acalma e desce. 

“É o quinto transbordamento do rio Aqui seguido. Então, isso praticamente está virando uma rotina, para nós, anualmente, sermos atingidos. Para você ter uma ideia, nos últimos 11 anos, só teve dois anos que o rio não transborda, que foi 2016 e 2017”, revela o coronel Falcão, coordenador da Defesa Civil de Rio Branco.

Outro exemplo da (im)previsibilidade da natureza é o rio Machado, que serpenteia a região central de Rondônia.

Desde fevereiro de 2025, suas águas subiram com uma rapidez surpreendente, afetando dezenas de famílias. A força da cheia fez com que o nível do rio se aproximasse da cota histórica de 11,85 metros, registrada em 2022. 

A situação levou a prefeitura do município a decretar Alerta Vermelho, mobilizando esforços para resgatar as famílias e garantir a assistência necessária. Porém, o cenário não poderia ser mais diferente meses atrás: quando as águas recuaram, o rio Machado também atingiu o menor nível já registrado, expondo seu leito. 

O rio Machado se destaca como um afluente do rio Ji-Paraná. Com 1.125 km de extensão, o Machado tem uma grande influência na vida das comunidades que vivem ao longo de suas margens. 

A interconexão entre esses rios evidencia a complexidade do sistema fluvial amazônico, onde as alterações em um rio podem impactar diretamente os outros, formando uma rede que sustenta a vida na região. 

O que está acontecendo com os rios amazônicos? Por que os rios estão oscilando?

Embora os períodos de cheia e seca sejam típicos nos rios da Amazônia, especialistas alertam que essas oscilações têm se tornado cada vez mais intensas. É o que aponta o engenheiro hidrólogo do Serviço Geológico do Brasil, Marcos Suassuna.

A tendência é a ocorrência mais frequente de extremos, como secas e cheias intensas. Além disso, preocupa o aumento de processos erosivos, como as ‘terras caídas’, que também têm se tornado mais frequentes”

O nível médio do rio Madeira no dia 01 de abril está quase um metro acima do que foi registrado no mesmo período do ano passado, quando tinha 15,81 metros. O que poucos poderiam prever, porém, era que a cheia era também sinal de uma seca desastrosa que estava por vir, outra vez.

Esse comportamento de alternância de extremos não é um fenômeno isolado. Nos últimos anos, os principais rios de Rondônia chegaram ou estiveram à beira de registrar cotas inéditas, tanto de seca quanto de cheia. 

Um ciclo de cheia, seca e degradação

Ribeirinhos afetados pela maior seca da história, carregam garrafões com água potável e uma caixa de água vazia para ser abastecida, no leito seco do rio Madeira, na comunidade Paraizinho, em Humaitá (AM), 08 de setembro de 2024. Os moradores de diversas comunidades ribeirinhas da Amazônia, estão sofrendo com a falta de água potável e escassez de alimentos causados pela seca.

Ribeirinhos afetados pela maior seca da história, carregam garrafões com água potável e uma caixa de água vazia para ser abastecida, no leito seco do rio Madeira.Foto: Edmar Barros / Amazônia Latitude.

Para pesquisadores e integrantes dos órgãos oficiais que lidam com estes desastres naturais, as mudanças no comportamento dos rios refletem a crescente influência das atividades humanas no ambiente, que acentuam essas variações e tornam cada vez mais difíceis os ciclos naturais da região. Uma delas é a etnoclimatologista, Alba Rodrigues.

A ação humana no ambiente natural gera impactos ambientais, alguns irreversíveis e são corresponsáveis das mudanças climáticas, mas também se pode observar fatores surpresas, como por exemplo: emissões de elementos químicos provindos de explosões de conflitos armados, excesso de gases de erupções vulcânicas, poluição do ar, dentre outros. As queimadas na Amazônia, em 2024, nos alerta para uma questão muito séria, que é a alteração na capacidade da floresta em pé de captar emissões de carbono, e que isso já se modificou,[o que] é alarmante, pois está emitindo mais gases de efeito estufa do que pode absorver”.

A seca de 2024 na Região Norte ocorreu em meio a um período de estiagem extrema. Porto Velho passou cerca de três meses sem registros de chuvas significativas. Além disso, a quantidade de queimadas registradas no estado bateu recordes. Entre junho e outubro de 2024, mais de 10 mil focos de queimadas foram observados, uma quantidade 70% maior que no mesmo período do ano anterior. 

Segundo Alba Rodrigues, tudo indica que o desmatamento na Amazônia esteja ligado às mudanças no regime de chuvas na região, uma vez que “a floresta, além de ser geradora de umidade e micro partículas de água, que forma as nuvens para precipitação em chuvas, também tem o papel de reguladora do sistema e regime das águas”. 

A alternância entre secas severas e enchentes intensas é um sinal claro de como o clima da região está mudando, desafiando as comunidades a se adaptarem cada vez mais rápido a esse novo ritmo da natureza. 

A natureza, ela está sendo extrema, né? Quando vem sol, vem bastante, quando vem chuva, vem bastante. Então, isso aí, o homem é o causador disso aí, né? A gente não está tratando bem o meio ambiente, já foi provado que nós somos os causadores desses efeitos aí, dessas intempéries da natureza”. 

O comentário acima é de Tino Alves, morador da comunidade de Belmont, em Porto Velho. Uma testemunha fiel do comportamento do rio Madeira há 30 anos, ele relata que nunca tinha visto uma seca tão severa como a de 2024. 

Existem pedras no meio do rio, existe lá o que a gente chama de Três Marias. São três pedras que tem bem na praia lá do Belmont. Geralmente elas não aparecem, nunca aparecem, então eu nunca tinha visto e esse ano, 2024, essas pedras apareceram”. 

Os ribeirinhos que sobrevivem da agricultura e da pesca, como Tino, viram o rio desaparecer junto com o próprio sustento. Sem acesso a água encanada e dependendo exclusivamente de poços amazônicos, que secaram, famílias passaram a sobreviver com menos de 50 litros de água por dia, quando o recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é de 110 litros por pessoa. 

Homem anda em rua inundada por cheia no rio Madeira, que expulsa moradores e alerta especialista sobre extremos na Amazônia. Foto: Prefeitura Municipal de Porto Velho.

Homem anda em rua inundada por cheia no rio Madeira, que expulsa moradores e alerta especialista sobre extremos na Amazônia. Foto: Prefeitura Municipal de Porto Velho.

Com a virada de ano, o tempo também mudou. No começo de 2025, a quantidade de chuva que caiu na capital do estado foi praticamente o dobro do esperado, segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Em um único dia, 8 de fevereiro, por exemplo, choveu o equivalente ao esperado para uma semana inteira. 

Mas não é essa água que interfere no nível do rio Madeira. De acordo com o engenheiro hidrológico do Serviço Geológico do Brasil (SGB), Guilherme Cardoso, o real impacto do rio Madeira vem das regiões de cabeceira na Bolívia e no Peru. 

Os rios Beni e Madre de Dios são os rios que mais impactam no nível do rio Madeira, pois estes, são responsáveis pela maior parte do volume de água escoado para o Madeira, eles ficam na parte andina da bacia, na cabeceira, e percorrem os dois países, até desaguarem em território brasileiro, no rio Madeira”. 

Desde o início de fevereiro, as chuvas observadas nesses trechos e os modelos de previsão hidrológica indicavam a tendência de elevação dos níveis do rio Madeira, segundo o pesquisador Marcos Suassuna. A previsão é que o rio continue a subir, uma vez que há uma tendência de chuvas acima da média. 

Sob uma perspectiva não muito positiva, Alba Rodrigues aponta que essas situações podem ser remediadas somente a médio e longo prazo, com um planejamento conjunto. 

Somente se houver uma força tarefa para que a humanidade tome consciência que ela não é a espécie principal, e que mude a forma-pensamento antropocêntrica de se relacionar com a vida que pulsa e se interliga. Já na Amazônia brasileira como um todo, é preciso sair da dialética e ir para prática de renovadas soluções de enfrentamento real, das mudanças climáticas que ecoam em um grito ensurdecedor da natureza, fauna e flora e outros seres não considerados pela ciência atual”.

A ação deve ser conjunta e rápida porque se os anos de 2023 e 2024 e seus recordes de cheias e secas mostraram algo é a correlação entre os extremos. Ou seja: que depois de uma cheia histórica é preciso se preparar para uma seca ainda mais severa.

Ribeirinhos afetados pela maior seca da história, carregam garrafões com água potável, no leito seco do rio Madeira, na comunidade Paraizinho, em Humaitá (AM). Foto: Edmar Barros / Amazônia Latitude.

Ribeirinhos afetados pela maior seca da história, carregam garrafões com água potável, no leito seco do rio Madeira, na comunidade Paraizinho, em Humaitá (AM). Foto: Edmar Barros / Amazônia Latitude.

Edição e revisão: Glauce Monteiro
Montagem e Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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