Resenha: Juruá, o rio que chora

Rio Juruá, em Cauari, no estado do Amazonas, ao pôr-do-sol, com barcos no píer.
Durante mais de uma década vivendo na Amazônia, Padre João sempre lutou em defesa dos seringueiros, agricultores, ribeirinhos e povos indígenas. (Foto: José da Cruz Lima de Lima/ Amazônia Latitude)

No livro “No coração da Amazônia: Juruá o rio que chora”, o Padre João Derickx relata um pouco sobre a realidade do povo amazônida da época em que viveu nas terras carauarienses, na década de 1980. De origem holandesa, ele nasceu em 1935, trabalhou em uma escola para crianças com dificuldades de aprendizagem, onde foi professor de esporte e lazer. Derickx cursou pedagogia na universidade católica de Nimegue, depois formou-se em filosofia e teologia em 1965, tornando-se sacerdote.

O padre chegou ao Brasil naquela década de 60, onde morou por mais de 40 anos. Teve vários lares, mas viveu principalmente em Belém, no Pará, a serviço da paróquia Santa Terezinha, e no Amazonas, pela Prelazia de Tefé, onde foi pároco da igreja Nossa Senhora Rainha da Paz. Durante esta trajetória, dedicou seu trabalho às questões sociais e aos povos da Amazônia. Derickx não só se sentia incomodado com problemas sociais, mas também arregaçava as mangas e procurava soluções para resolvê-los.

O padre conta que, durante suas viagens, se deparou com uma realidade de extrema pobreza. A população vivia sem apoio do governo municipal e sob maus-tratos ocasionados por um sistema de escravidão controlado por parte dos seringalistas.

Os seringalistas, chamados de patrões, eram pessoas poderosas que se apropriavam de uma imensa área, rasgada por trilhas que ligavam uma seringueira a outra – “estradas de seringas”, que normalmente contavam com de 100 a 150 “madeiras”, ou seringueiras. Já “seringueiro” era o termo dado às pessoas que extraíam o látex das árvores para transformar o produto em borracha, a maioria de origem nordestina. Trazidos para a Amazônia em vez de irem à Itália para lutar na Segunda Guerra Mundial, ficaram conhecidos como “soldados da borracha”.

Os seringueiros já chegavam aos seringais em dívida com os donos da terra, que colocavam na conta desde transporte até alimento. Suas moradias, onde residiam com suas famílias, eram muito precárias. Chamadas de “palhoças”, eram uma espécie de barraco coberto com palhas e piso de “paxiúba”, palmeira da região. Muitas delas não tinham paredes, e também faziam vezes de centro de processamento e defumação da borracha.

O patrão sempre abusava do poder de sua autoridade para a exploração do trabalho, usando, muitas vezes, ameaças como forma de intimidação. O trabalhador não tinha voz nem vez e, se alguém ousasse cobrar seus direitos, seria penalizado, ou até mesmo executado.

A entrega da produção normalmente era feita a cada quinzena no barracão, uma casa grande onde acontecia o “aviamento” entre patrão e freguês. Aviamento era o nome dado ao sistema de comercialização da troca de um produto por mercadorias ou objetos, mas o seringueiro nunca terminava de pagar sua dívida ao final da safra. Esse sistema mantinha o trabalhador preso por meio de uma dívida interminável, que crescia dia após dia, obrigando o seringueiro a trabalhar em dobro. O único que se beneficiava era o patrão, enquanto os seringueiros ficavam cada vez mais desgastados e endividados.

O autor explica que, por muitos anos, a borracha foi o produto principal na região – principalmente no período das duas guerras mundiais. Mas, na década de 70, os seringais entraram em decadência. O governo fez várias tentativas para estimular a produção da borracha, criando a superintendência da borracha SUDHÉVEA e o programa PROBOR I, II e III, que ofereciam aos seringalistas financiamentos favoráveis para aumentar a produção de látex.

O Estado oferecia linhas de créditos para abrir novas estradas de seringas, só que, naquela época, já existia corrupção por parte dos governos estaduais e municipais. Por falta de fiscalização dos recursos, parte do dinheiro era desviado para outros fins pelos seringalistas, para abrir comércios, criar gado ou comprar veículos, deixando os seringueiros ainda mais desamparados.

Carauari vivia uma verdadeira calamidade pública por parte dos governantes da época. A saúde era precária e a população convivia com diversas doenças, principalmente tuberculoses, verminoses, malárias. As últimas duas chegaram a matar dezenas de indígenas na região. Enquanto isso, nos hospitais não existia sequer materiais de primeiros socorros, como esparadrapo.

Em relação à educação no Médio Juruá, 85% da população era analfabeta. Faltava treinamento aos professores da zona rural, que precisavam lecionar na base da mera força de vontade, sem lugar adequado para ministrar as aulas, materiais didáticos, supervisores, além de salários baixos e atrasados. Muitos dias de aula também eram perdidos porque todos os deslocamentos ficava por conta não da secretaria de educação, mas dos próprios educadores.

A pesca predatória causada por invasores, vindo de outros municípios ou da capital Manaus, era preocupante, relata o autor. Embarcações com capacidade de até 80 toneladas atracavam nas margens dos rios, lagos, paranás e bocas de igarapés. Vários tipos de peixes eram mortos, mas os pescadores levavam apenas os escolhidos (Matrinxã, Tambaqui e Pirapitinga). Mesmo quando lotavam suas embarcações de Jaraqui, se encontrassem um cardume de Matrinxã no caminho, descartavam a pesca no rio, para abrir espaço para o armazenamento da nova espécie. Além de prejudicar a alimentação dos habitantes da área, reduzindo a quantidade de peixes dos rios, a prática poluía a água que os ribeirinhos usavam para seu consumo diário.

A extração de madeira em grande escala na região era outro fator preocupante. Estima-se que cerca de 120 mil toras de árvores eram derrubadas e transportadas por ano na região do baixo Juruá. A maioria derrubada na época da seca (verão) e removida para os leitos dos igarapés e rios na cheia (inverno), aproveitando a floresta inundada, o que facilitava a remoção das árvores por meio de alavancas de tração humana.

As espécies mais procuradas eram Açacu, Andiroba, Moratinga, Castanha de Macaco e Sumaúma (chamada de “a rainha da selva” por sua altura e espessura). Era um trabalho pesado, perigoso e mal remunerado para os ribeirinhos, pois além do modelo primitivo de extração, usando apenas machado, roladeira, cunha de madeira e cordas, também corriam risco de serem picado por cobras e outros animais peçonhentos da floresta – fora os acidentes causados por queda inesperada das árvores. As toras eram comercializadas e destinadas aos municípios de Itacoatiara, Manaus e Belém.

A cubagem da madeira era uma fonte de lucros para os madeireiros da região. Quase nenhum ribeirinho sabia acompanhar suas contas na hora da soma, aumentando ainda mais a chance de serem enganados pelo comprador. O sistema de comercialização, além disso, também era baseado em trocas de objetos e mercadorias básicas, como feijão, arroz, café e açúcar.

Em meio a prejuízos socioambientais, quando espécies da fauna e flora começaram a ficar escassas, a Paróquia Imaculada Conceição e o Sindicato dos Trabalhadores emitiram documentos de denúncia aos órgãos competentes – Prefeitura, Governo, IBAMA, e Ministério da Justiça – sobre a realidade vivida pela população ribeirinha de Carauari, com algumas sugestões para os problemas enfrentados. A partir daí, com o apoio da prelazia de Tefé, começou o processo de demarcação de lagos para proteção e procriação de peixes na região, ainda que em meio a ataques constantes de invasores.

No livro, o padre relata que a maioria dos ribeirinhos só passou a ver a cor do dinheiro após a chegada da Petrobrás ao município de Carauari, no final dos anos 1970, uma vez que a empresa de gás e petróleo trouxe consigo diversas empreiteiras. Ocorreu um grande êxodo rural e muitos seringueiros deixaram suas estradas de seringas por empregos com salário mínimo. Os trabalhadores abriam clareiras e “picadas” na mata, onde passavam de dois a três meses longe de suas famílias em acampamentos improvisados com lonas. O Padre João fez inúmeras visitas aos acampamentos, tornando-se uma ponte entre os trabalhadores e seus familiares na cidade, levando encomendas e correspondência.

Foi uma época em que a cidade cresceu e se desenvolveu economicamente. Surgiram bares, restaurantes e clubes de dança. Aumentaram, também, os aluguéis de residências e contratação de faxineiras, cozinheiras e lavadeiras, impulsionando a economia no centro urbano do município. Porém, por constatação da inviabilidade econômica para a produção de gás e petróleo, a Petrobras saiu de Carauari e se instalou em Coari, município vizinho, deixando os carauarienses sem trabalho. Em 1989, a empresa se instalou no rio Urucu, no meio da floresta, para continuar contratando pessoas de Carauari e diminuir os prejuízos causados.

Com base no livro, partir dos anos 1980, por iniciativa da Paróquia de Carauari, do padre João Derickx, do MEB (Movimento de Educação de Base) e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, começou um processo de organização social na região, através da mobilização e realização de encontros com ribeirinhos e seringueiros, na tentativa de encorajá-los a lutarem pelos seus direitos.

A partir daí, surgem as primeiras comunidades no Médio Juruá, que, na época, viviam de maneira isolada e distantes uma das outras, afastando as famílias. Elas recebiam ameaças constantes por parte dos patrões, delegados e policiais que eram aliados dos coronéis da borracha, na tentativa de intimidá-los e evitar que o povo se organizasse. Prenderam seringueiros, como no caso do senhor Élson Pacheco, morador da comunidade Gumo do Facão e membro do sindicato, e destruíram escolas logo após serem construídas, para que os ribeirinhos não tivessem direito à educação. Contudo, o MEB investiu na abertura de escolas com apoio da igreja e das comunidades, alfabetizando os moradores das margens do Médio Rio Juruá.

Em 1985, ocorreu o primeiro encontro nacional do seringueiro em Brasília, onde estiveram presentes 12 seringueiros do rio Juruá e Jutaí. O encontro nacional foi resultado de várias iniciativas locais, inclusive Carauari. Nele, os seringueiros tiveram a oportunidade de denunciar e reivindicar seus direitos a nível nacional, com presença de autoridades da Universidade de Brasília (UnB), a Câmara dos Deputados e a Superintendência da Borracha. A pauta foi baseada na política da borracha, reforma agrária, direitos dos soldados da borracha, cultura, educação e saúde nos seringais. Neste primeiro encontro, foi criado o Conselho Nacional dos Seringueiros e eleita sua primeira diretoria.

O segundo encontro aconteceu em 1989, em Rio Branco, no Acre. O evento também ficou conhecido como o primeiro encontro dos povos da floresta, pois se entendeu que a luta não era apenas pelos seringueiros, mas por todas as populações que viviam, protegiam e defendiam as florestas. Depois disso, o Conselho Nacional dos Seringueiros virou o Conselho Nacional das Populações Extrativistas. Desde esse período, as lideranças de Carauari já construíam e solicitavam a criação de uma reserva na região para garantia do direito ao território desses povos da floresta.

As primeiras Reservas Extrativistas surgiram no estado do Acre, após a morte do seringueiro – e liderança do antigo Conselho Nacional dos Seringueiros –, Chico Mendes. Após muita insistência da população da região, foi criada em 1997 a Reserva Extrativista do Médio Juruá (RESEX), uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável federal que representou um marco por ser a primeira da categoria no estado do Amazonas.

Ao contrário do que se pensava, essa área protegida não incluía a totalidade do território do Médio Juruá, mas apenas a margem esquerda do rio em direção a sua jusante. Após muitas articulações dos movimentos sociais e organizações locais, em 2005 foi criada a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uacari, uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável estadual.

A partir de então, surgiu a articulação para a criação de novas organizações na região, com o intuito da reivindicação de direitos e promoção e geração de renda, como a Associação dos Moradores Agroextrativistas da RDS Uacari (AMARU) e a Associação das Mulheres Agroextrativistas do Médio Juruá (ASMAMJ). Populações locais que já tinham conquistado o direito ao território, de forma organizada e articulada, passaram a reivindicar direitos básicos e melhoria da qualidade de vida para a região.

Durante mais de uma década vivendo na Amazônia, Padre João sempre lutou em defesa dos seringueiros, agricultores, ribeirinhos e povos indígenas. Ele fez do máximo, salvando vidas nas comunidades, ao mínimo, dando caronas aos ribeirinhos. Foi impedido de celebrar missas por patrões, e foi convocado por políticos do município a se transferir. Ou seja, além de um amante da Amazônia, Padre João se doou em defesa da garantia de direitos dos seringueiros. Sua colaboração foi fundamental na luta dos seringueiros por sua liberdade, assim contribuindo para o desenvolvimento da região que hoje é modelo de organização social.

Padre João Derickx faleceu em 2013 e não pôde ver todos os frutos que o processo semeado por ele e sua evangelização libertadora geraram na região. Atualmente, as organizações sociais em Carauari protagonizam inúmeras iniciativas de conservação ambiental e geração de renda. As organizações do Médio Juruá conduzem processos inovadores de governança local, que servem de exemplo para outros territórios da Amazônia: desenvolvem cadeias da sociobiodiversidade, como pescado manejado, óleos vegetais, farinha de mandioca, fruticultura e borracha.

Com grande potencial de novos produtos e mercados, o território Médio Juruá se consolida como o local onde a sustentabilidade é concebida pelas mãos coletivas. As presentes e futuras gerações têm seu alicerce na história de luta, resistência, conquistas e legado das gerações anteriores. Logo, o empoderamento dos atores locais e a construção de organizações são instrumentos essenciais para a sustentabilidade e confecção de outros modelos de governança para a Amazônia, como no caso do Médio Juruá, que pôde contar com a colaboração profética do Padre João Derickx.

José da Cruz Lima de Lima nasceu em Liberdade, na Reserva Extrativista (RESEX) do Médio Juruá, uma Unidade de Conservação no município de Carauari, estado do Amazonas. É Técnico de Produção Sustentável em Unidades de Conservação pela Fundação Amazônia Sustentável em parceria com o CETAM. É músico local, exerce o cargo de Primeiro-Secretário da Casa Familiar Rural do Campina (ACFRC), enquanto atua e apoia projetos relacionados às temáticas de Meio Ambiente, Governança, Desenvolvimento Territorial e Fortalecimento de Organizações Locais na região. Também contribuíram para a resenha David Franklin da Silva Guimarães, Thais Carla Vieira Alves e Marília Gabriela Gondim Rezende.
Livro: No coração da Amazônia: Juruá o rio que chora
Autores: João Derickx e José Antônio Transferetti
Editora: Vozes
Ano: 1992

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