Dos restos que permanecem
Sandra Godinho dedica conto a Marta Cortezão, inspirada pelo livro "Amazonidades: gesta das águas"
Montagem: Fabrício Vinhas
Para a Marta Cortezão, inspirada pelo livro Amazonidades: gesta das águas, de sua autoria.
Quando embarquei na canoa, já tinha decidido matar. Não por causa das contrações no ventre que, chegando em ondas sincronizadas, me sacudiam os nervos, mas porque o rebento ia arrebentar o meu mundo. Um curumim, assim Anésia, a benzedeira, me assegurou que seria ao nascer, mais um macho pra abalar minha vida que já andava abalada. Contraí os dedos, firmei o pé no fundo da canoa e o outro deu o impulso. Eu só precisava de um impulso. Arribei, pescando na imensidão das águas um delírio. A coisa seria rápida, nascer e logo afogar.
Os olhos descaniçaram a mansidão do Lago de Tefé, encolhido devido à estiagem. A profundidade pouca, a água morna, o pitiú nauseante. Sentei-me na rabeta, agarrei os remos, movendo-me em gemidos, o cheiro de buriti inundando o remanso. Tudo secava por aqueles barrancos, evaporando junto com a bondade. E haveria bondade maior que o alarido dos bichos? Isso sim era bondade em estado puro, mas bicho não vi nenhum naquela manhã. Boto rosa ou tucuxi se guardavam no silêncio.
Tudo era assustador, desde quando as regras foram violadas naquele flutuante de paredes ordinárias onde eu vivia com a mãe e o pai, onde a noite pingava no telhado batendo continência, indiferente às orações. Eu, segurando as contas do rosário, fazia o sinal-da-cruz tecendo pensamentos feito aranha a sua teia. Que me levasse para longe dali. Ou levasse o pai para longe da minha rede. O que buscava era salvação. Como se Ele me escutasse, escutasse meu grito entalado varando igarapés e igapós em noites de tormentas. Como o grande juiz que é, Deus só se afiança mesmo às sentenças, e Jesus só se afiança à cruz, por isso nunca me afinei com os céus. Só me afinava com as águas. E com Anésia, que me acomodava os gritos dizendo que as coisas iriam melhorar. E as dores de cabeça. E os calafrios. E as insônias. E as azias. E as náuseas. Agora nem sei, talvez nem Anésia me traga o arrazoado da vida e a realidade seja essa, a de fazer desandar o futuro. Em casa de molambo, somente a miséria se esmiuça pelas frestas.
A mãe dizia que a carne era fraca. Só depois de muito descarnada e roída era que se fazia forte. Dizia, mesmo vendo os movimentos do pai à noite, sempre na saliência, sem se dar ao respeito, sem me dar respeito. Vou dormir com você hoje. Tratasse eu de atender, dizia a mãe, que homem é feito bicho, vive de instinto. E, lá fora, nem o tempo ajudava, temporal brabo, de arrancar beiral e levar embora a voadeira, essas coisas que a gente vai perdendo pelo caminho. O pai nunca se afeiçoou a esses ruidosos problemas, acho até que gostava dos barulhos para disfarçar a invasão. Não padecia com nada, nem com raio. O repugnante e a presa juntos e embolados na rede que a noite tenebrosa guardava. Depois, ele virava para o lado, dormia com a mente conciliada ao corpo, sem peso ou penitência. Em noites de tempestade, dessas de só chover solidão, de carregar o vazio no vento, eu vivia de pesadelos. Em dias de sol, o pai era um caboclo comum, de palavreado alegre e riso frouxo.
Quando a barriga apontou, a mãe disse para os vizinhos que foi diabrura do boto. A vida, sempre no ofício do embaraço. A vida, descendo a alma da gente ao inferno. Foi quando decidi não ser refém do descaso. Correr o coração daquele lugar de mulheres longes, de mulheres perdidas em beiras. Foi no meio do lago que a nova contração me atingiu, fez meu pulmão expandir e o pescoço arder de dor, duro feito caroço de tucumã. O tronco teso. O corpo tenso. Os pés da criança, apunhalando minhas costelas pelo avesso, me faziam gritar, o grito dando contorno ao vento, aguardando meus ossos se acomodarem aos dele, ao crânio amolecido que também se acomodava à minha bacia para escorrer pelo canal. Ele a mim e eu a ele, endireitando os desejos. Que fosse breve, que fosse indolor. E a placenta explodindo, e ele me rasgando, e os gritos num crescendo. Também meus xingamentos. Três quilos me escorreram pelas pernas e deram início ao sangramento. Três quilos em fúria, já forçando a vida, se esforçando e chorando tanto quanto eu.
Acolhi o pacotinho de ossos nos braços, ainda ensanguentado e ávido pela atmosfera de aguaceiro. O choro insuportável me fez mergulhar a mão na água e molhar seu rosto. A pele era um barro quente forjado no caos. A água parecia ter consumido o fogo. Para parar o choro, levei a criança ao peito ao mesmo tempo que a canoa bateu em algo e deu um tranco. No rebote, os remos caíram dentro d´água, e a boca nervosa me fisgou o mamilo. A primeira sucção. Na procura pelos andejos, na superfície do lago, meus dedos tocaram a carcaça de um boto, de pele rosada e ainda filhote, os olhos tão estatelados quanto o curumim nos meus braços, bubuiando.
Reuni forças para varrer ao redor, forçando os olhos para enxergar o inferno, centenas de botos mortos, boiando na superfície das águas, enquanto o curumim me sugava, sugava a vida de dentro de mim. A canoa, barafustada entre a vida e a morte, me arremessou ao chão; abriguei-me das ilusões, não das tragédias. Foi a náusea da morte que me prendeu ao fundo da canoa. A morte e não a vida. Alcei o tronco para frente e me acomodei ao fundo; foi quando os dedinhos dele encontraram os meus. E me agarraram. A pele do pequeno, rosada e luzindo rebeldia, fez meu corpo se atracar ao dele e permanecemos assim, guardados no embaraço dessa última fronteira.
Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB). Com “Orelha lavada, infância roubada” (2018), recebeu Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019), e com “Verso do reverso” (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Seu romance “Tocaia do Norte” (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Outra obra sua, “A morte é a promessa de algum fim”, recebeu o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Seu mais recente romance é “Estranha entre nós”, publicado em 2022. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, “Memórias de uma mulher morta” (inédito) e “A Secura dos ossos”.
Produção: Emily Costa
Revisão: Isabella Galante
Arte e montagem do site: Fabrício Vinhas
Direção: Marcos Colón