Conto de Sandra Godinho: A batalha

Dentro do ônibus, "Defendo meu espaço – digo, meu corpo – evitando as refregas e os esfregas, os horrores e os ressaltos, os assaltos e o grande buraco negro que é viajar dentro de um coletivo, um mundo dentro do mundo"

Passageiros em ônibus de Manaus, como no conto de Sandra Godinho. Foto: Dione Souza
Ônibus em Manaus. Foto: Dione Souza
Passageiros em ônibus de Manaus, como no conto de Sandra Godinho. Foto: Dione Souza

Passageiros em ônibus em Manaus. Foto: Dione Souza

Encaro o ônibus 560 velho e sujo. Vejo-o se aproximar e estremeço. O impasse é quase um enfrentamento. O motorista também titubeia com a frenagem, sabendo que é um ônibus velho e sujo. Pára diante de mim e pergunta: vai subir? Sei que é só o primeiro desafio – o de subir a bordo, os outros terei de enfrentar depois de embarcar, atentando mais para os inimigos de viagem do que os buracos no estofado, feitos por algum passageiro que ocupou o território antes de mim, desafiando a proibição de fumar ou furando o couro da poltrona com estilete para canalizar a raiva. Raiva todos têm, raiva todos trazem, mas expressá-las pode minar as chances de sobrevivência e abreviar a viagem dentro do coletivo. Decido embarcar. Adentro o campo de batalha, não tanto por ser guerreira, mas por ser o modo barato de chegar ao supermercado, onde trabalho como caixa. Avanço pelo corredor, na defensiva, lembrando-me das coisas que fedem, cheiram, embotam e constrangem.

Não quero ser saqueada. Nem encoxada, nem bolinada, nem importunada, então procuro um assento vago e próximo ao motorista, a liderança, que segue preocupado com o fluxo do trânsito, driblando os loucos de moto, os arrojados de bicicleta, os arrogantes em carros de luxo, incapazes de usufruir dos 500 cavalos de potência nas pistas congestionadas. Ignoro o primeiro assento, já ocupado pela velha encarquilhada que exala um forte cheiro de suor. Não há ar-condicionado. Ou melhor, há, mas é ineficaz para combater um calor de mil graus à sombra. Com a viagem e o sol em andamento, logo ouço os resmungos dos passageiros que, sendo pessimistas, culpam a mudança climática; sendo crentes, o infernal fim do mundo, muito embora eu saiba que o diabo ataca em qualquer hora do dia ou da noite; dentro e fora de casa, dentro e fora do ônibus. Aliás, mais dentro; basta ter uma perna extra no meio das pernas.

Me lembro do dia que sentei ao lado de um, justo quando o diabo resolveu se masturbar; aliás, com grande poder de ataque. O infeliz se desmanchou na mão sem se importar comigo ou com a plateia constrangida ao redor, se aproveitando da desatenção do condutor, que penava para manter o horário, evitando os desvios e os buracos no asfalto. Quando a mulherada reclamou da sem-vergonhice, a liderança o expulsou. Primeiro, com estratégias de dissuasão, depois, aos pontapés, porque ninguém tem sangue de barata. Houve outra ocasião, quando um desconhecido sentou ao meu lado e engatou uma conversa com audácia e voz de comando, interessado no meu nome, endereço e estado civil, sem nenhuma civilidade, a exigir e a se despejar, com as pernas abertas, em minha direção até me encurralar na beirada do assento. Um abismo. Quase caí no corredor. O motorista, coordenando a linha de frente no asfalto quente, não viu. Tive de proteger minha retaguarda, manter-me a salvo das ofensivas e dos bombardeios em minha vida pessoal. Fui obrigada a me armar de todo poder de ataque que meu punho podia dispor, fechando a mão com a força da classe operária. Assim, armada de artilharia pesada, atingi-o no flanco direito, fazendo o homem despencar de vez. A virilidade machucada foi o abismo dele.

Os desafios não param aí. Há as cantadas, as choradas, os assobios, os psius, os olhares de sedução e os de cobiça. Possuir o corpo alheio como propriedade sua, do diabo, que sempre atenta. Então monto campanha a cada viagem e não descuido da vigilância nem por um minuto. Defendo meu espaço – digo, meu corpo – evitando as refregas e os esfregas, os horrores e os ressaltos, os assaltos e o grande buraco negro que é viajar dentro de um coletivo, um mundo dentro do mundo.

A ressaca foi brava, hein? E o que você tem com isso? Cuida da tua vida – trocam farpas o passageiro na poltrona detrás com a mulher ao seu lado. Confesso: hoje, já embarquei atrasada para o trabalho. Vesti a primeira blusa que encontrei na gaveta, uma de decote cavado. Levei meia-hora, no sacolejo dos buracos, até reparar na roupa inapropriada e no passageiro plantado entre a porta e o corredor, encurralando-me com o olhar grudado em mim. Ponho a mochila no colo, tentando proteger o peito. Proteger é a palavra do dia. Falta pouco para chegar ao centro de Manaus, meu destino. Todos já devem estar lá, no supermercado, a postos, atendendo o resto do mundo que tem dinheiro. Lá, onde a guerra exige novas manobras e novos revezes. Ao chefe, posso inventar uma desculpa: estou com dor de dente, de coluna, de cólica, de cabeça. Bom dia, coração! Está uma hora atrasada! Esse é o verdadeiro inferno, submeter-se às horas, às regras, ao comando dos outros. Me vejo como uma condenada. E o desconhecido não me tira os olhos.

Então sinalizo ao condutor que vou descer no próximo ponto. O ponto decisivo e do meu limite. Não importa que tenha de caminhar três quarteirões. Caminhar, não. Correr; me levanto, me apresso, cruzo a porta de saída como se chegasse ao céu. Para me manter a salvo dos horrores, até o limbo serve. Como um foguete, quase voo sobre os degraus até me ver fora. Acho que me safei do inferno, mas quando olho para trás, o homem está no meu encalço. Me apresso, escuto os passos pesados se aproximando, meu coração pulsa na boca. Meus ouvidos encontram-se às costas, atentos. O inimigo, cada vez mais próximo, agarra minha blusa por trás. Tento me desvencilhar das mãos do diabo, disparo – como uma bala – em novo impulso, sofrendo com o poder de aniquilação do rival, melhor preparado que eu. O suor me domina a face, as pernas cambaleiam, o medo me dá vertigens. Sinto que vou sucumbir. O moço me alcança novamente, desta vez, prende meu cotovelo, forçando meu tronco voltar em direção a ele. Se me agarrar, eu grito! Juro que grito, moço. Juro que vou gritar! Calma, dona, só quero avisar que sua calça está descosturada. Um rombo gigante que dá para ver até a cor da sua calcinha. Posso emprestar minha jaqueta, se quiser. Amarra assim, oh! Sinto os movimentos dele e os sons formando uma espécie de energia positiva entre nossos corpos. Insisto em devolver o agasalho, ele diz que não é preciso e se afasta. Permaneço sozinha na calçada e titubeio novamente. É dessas incertezas que vive o ser humano? O impasse é quase um desmoronamento. Amarro as mangas da jaqueta com tanta raiva que me sinto o próprio demônio.

Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB). Com Orelha lavada, infância roubada (2018), recebeu Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019), e com Verso do reverso (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Seu romance Tocaia do Norte (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Outra obra sua, A morte é a promessa de algum fim, recebeu o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, Memórias de uma mulher morta e A Secura dos ossos.

 

Montagem de página e acabamento: Alice Palmeira
Montagem do site: Fabrício Vinhas
Revisão:
Glauce Monteiro
Direção: Marcos Colón

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