A agonia das mulheres chiquitanas e da floresta diante das mudanças climáticas e dos incêndios florestais na Bolívia

As mulheres chiquitanas enfrentam a maior crise ambiental dos seus territórios. Entre cada estação seca e os incêndios florestais em Santiago de Chiquitos, na Bolívia, três mulheres de aço acordam todos os dias na esperança de que a chuva volte e de que o racionamento de água não seja eterno

Sandra visita Las Pozas, o ponto turístico mais importante de Santiago de Chiquitos, que agora é uma água parada. Foto: Lisa Corti
Sandra visita Las Pozas, o ponto turístico mais importante de Santiago de Chiquitos, que agora é uma água parada. Foto: Lisa Corti
Sandra visita Las Pozas, o ponto turístico mais importante de Santiago de Chiquitos, que agora é uma água parada. Foto: Lisa Corti

Sandra visita Las Pozas, o ponto turístico mais importante de Santiago de Chiquitos, que agora é uma água parada. Foto: Lisa Corti/Revista Nómadas

Espanhol Espanhol

 

Sandra Taceó só quer que chova. Que chova tanto que apague os incêndios que há meses assolam a Bolívia, aquele país sul-americano invisível para o mundo e que há meses grita por socorro sob a fumaça.

Sandra só quer que chova logo e que chova forte, para que os animais da floresta não tenham sede, para que as árvores enrugadas de folhas marrons voltem aos tons esverdeados e para que os rios de sua cidade, Santiago de Chiquitos, no departamento de Santa Cruz  – que agora parecem rastros de cobras na areia – fluam novamente com a água pura que lhes dá de beber. Ela quer que chova para que, mesmo que por pouco tempo, seu povo pare de sofrer a seca mais longa que ela sentiu em seus 41 anos de vida.

Quando, numa tarde de agosto de 2023, a cooperativa de água de sua cidade anunciou por mensagem de WhatsApp que implementaria o racionamento daquele líquido precioso limitando seu fornecimento à duas horas por dia, Sandra sabia que as coisas não iam bem na floresta. A ausência de chuva havia sido prolongada e não havia previsão para o seu retorno.

Não só a água para ela, para a sua família e para o seu povo era escassa, mas o seu trabalho no setor do turismo não podia continuar. Agora que não há turistas por causa dos incêndios, ela precisa encontrar formas de ganhar alguns pesos.

Sandra – de olhos grandes, sorriso gentil e longos cabelos grisalhos –, agora que tem tempo, caminha alguns quarteirões todos os dias para almoçar na casa da mãe. Aproveita algumas tardes para fazer empanadas fritas com queijo e, depois, as vende com as irmãs. Em outras noites, vende espetinhos na rua com o marido Tatín. Mas como ninguém na cidade tem renda devido a falta de turistas, todos vendem comida e a concorrência acaba sendo acirrada.

Sandra lembra com carinho de quando ficava o dia todo ocupada no celular atendendo ligações e mensagens sobre as reservas do hotel onde trabalha. Mas não perde a fé de que logo choverá e que a vida voltará ao normal. Ela não precisa ler artigos científicos para saber que o clima está enlouquecendo por causa da ganância do homem ao derrubar as árvores e que isso incendeia as casas dos animais que ela tanto ama.

Ele sabe que o rio onde lavava roupa e as quedas d’água onde ia depois da escola há 30 anos agora estão secas por motivos nada naturais. Sandra faz os seus próprios cálculos e observa que, desde 2019, quando as árvores começaram a arder por todo o lado e mais de 3 milhões de hectares foram queimados, apenas em Santa Cruz, a falta de água é sentida de forma diferente.

Os vários incêdios de 2019 foram impulsionados por um pacote de políticas públicas a favor da expansão agrícola e que saíram do controle depois que alguém irresponsável colocou fogo na floresta. Na época, eles foram classificados como “megaincêndios florestais” ou “de sexta geração”.

Esses monstros de fogo liberam tanta energia que podem modificar o clima ao seu redor e até criar tempestades de fogo. Eles navegam em um formato parecido com o de uma linha e têm vários quilômetros de extensão com suas chamas alaranjadas que pdoema tingir até 30 metros de altura e colunas de fumaça que atravessam os céus de países interiores, carregando consigo o cheiro de animais e árvores carbonizados e deixando para trás uma chuva cinza. Mas esta não era a chuva que Sandra tanto desejava.

Existe uma relação tóxica entre seca, incêndios e desmatamento. Daqueles relacionamentos dos quais você não pode escapar. Um influencia o outro e se o controle de um for perdido, o outro vira um desastre.

Um estudo do Observatório del Bosque Seco Chiquitano conclui que como resultado desta relação entre secas e incêndios, a extensão das áreas queimadas, em 2019, foi três vezes maior que em 2018; e 51% superior à média registrada no período de 2001 à 2018. O documento menciona também que a Floresta Seca de Chiquitano – a floresta seca mais bem preservada e um dos ecossistemas mais frágeis do mundo – foi a mais impactada pelos incêndios florestais de 2019, que pareciam ser os mais devastadores da história do país até que os dados de 2024 começassem a chegar e provassem ser um novo record no índice de queimadas florestais.

A Bolívia não vence no futebol, por mais que tente, por mais que reze e implore. Mas supera muitos outros países em biodiversidade, seu território de 1 milhão e 99 mil quilômetros quadrados a coloca entre os cinco maiores países da América do Sul e possui quatro das sete regiões biogeográficas importantes do bloco sul-americano: a Amazônia, o Brasileiro, o Paranense-Chaco e o Andino. Criando um mosaico diversificado não só de natureza, mas de climas.

O país também está entre os que mais desmatam do mundo, segundo a Global Forest Watch, plataforma que utiliza tecnologia para monitorar e nos alertar sobre o que está acontecendo com as florestas. No seu último relatório de perdas florestais, pelo terceiro ano consecutivo, a Bolívia permanece em terceiro lugar no mundo, com um total de 696 mil hectares de floresta primária perdida, em 2023. Sendo que os incêndios ocorridos desde 2001 são responsáveis por 20% da perda florestal.

Entre o desmatamento e as queimadas, Sandra não sabe mais o que o futuro lhe reserva, pois, cada estação seca se prolonga e parece não ter fim.

“Se não tem água no morro, se tem tanto desmatamento, de onde virá a água? Isso é que é triste, não é?”, questiona Sandra com os olhos tristes e sem o sorriso contagiante que era sua marca registrada enquanto recebia os turistas que visitanvam o Churapa Boutique Hotel, de onde ela tirava o sustento de sua família há uma década.

Uma árvore solitária no que já foi um trecho da floresta Chiquitano. Foto: Lisa Corti/Revista Nómadas

Uma árvore solitária no que já foi um trecho da floresta Chiquitano. Foto: Lisa Corti/Revista Nómadas

Santiago de Chiquitos não é uma cidade qualquer. É um paraíso que combina o seu passado religioso jesuíta à sua cultura indígena chiquitana e o seu amor pela natureza. Um paraíso abraçado pela Floresta Seca Chiquitano, no sudeste da Bolívia. Com pouco mais de 2 mil habitantes, está localizada dentro da Reserva Municipal de Vida Silvestre de Tucabaca, a mesma que seu próprio povo incentivou a criar. Possui casas modestas construídas com paredes brancas por fora, inúmeras palmeiras endêmicas habitadas por papagaios que gritam sem parar e cada casa é abençoada com uma mangueira gigante e pomposa que dá sombra nos dias quentes.

A cidade possui apenas uma estrada asfaltada que conduz até a praça principal e corredores de terra vermelha que deixam um rastro de poeira vermelha quando carros passsam pelo local, colorindo, com o tempo, as casas num gradiente avermelhado que sobe do chão em direção aos tetos.

A reserva municipal onde Santiago se refugia não foi criada ao acaso. O objetivo  dos Chiquitanos e Organizações Não Governamentais era, justamente, proteger suas serras, onde estão localizadas suas fontes de água que regulam o sistema hídrico regional de todos os inimigos que os espreitam. A floresta específica que chamam de lar tem secas sazonais naturais, mas que se tornam mais severas a cada ano, deixando claro que se a água não for cuidada, em breve uma tragédia chegará.

Esta tragédia já foi anunciada pela Fundação Amigos da Natureza (FAN), que, fazendo uma estimativa do cenário de oscilações pluviométricas e de temperatura para 2030 em todo o país, prevê que para a época seca mais crítica (registrada nos meses de Junho, Julho e Agosto) as chuvas devem reduzir até 27,6%, principalmente nas bacias de San Julián e Tucabaca, justamente aquela que abastece Santiago de Chiquitos e seus arredores.

A estação seca na Chiquitania vai de maio a setembro, coincidindo com o outono-inverno. A chuva diminui, chegam os surazos – uma massa de ar frio com quedas bruscas de temperatura -, o ambiente fica seco e 50% das folhas das árvores da floresta caem, criando uma manta nítida de tons marrons que com uma faísca poderia gerar monumental incêndios.

Na estação seca, as folhas tornam-se combustível para incêndios cada vez maiores. Foto: Lisa Corti/Revista Nómadas

Na estação seca, as folhas tornam-se combustível para incêndios cada vez maiores. Foto: Lisa Corti/Revista Nómadas

Essa fragilidade na estação seca é um fator determinante para os ecossistemas. Hoje, a aliança entre são as mãos nocivas do homem à seca que aumenta a probabilidade de incêndios mais intensos e, juntos, estão gerando desastres ambientais. Um círculo vicioso e uma maldição que colocou em xeque o maior motor económico da região: o turismo de natureza.

A Bolívia é reconhecida mundialmente por suas montanhas andinas cobertas de neve, pelo Salar de Uyuni e pelas paisagens ocidentais, mas o leste boliviano, em sua região de Chiquitano, carrega uma particularidade que combina passeios pelas florestas, fontes de água para se refrescar, monumentais montanhas pré-cambrianas (existentes desde a época dos primeiros modos de vida) com sua importância histórica e cultura marcada por seu passado indígena, fundidas ao legado das missões jesuíticas.

Esse maciço de formações rochosas monumentais e solos avermelhados atuam como interceptadores das massas de umidade que navegam pelo céu, captando a chuva e filtrando-se no solo, recarregando, assim, os aquíferos subterrâneos. Santiago de Chiquitos tem a sorte de ter uma cordilheira própria que não só fornece água, mas também é um ponto turístico imperdível para visitantes de todo o mundo que desejam admirar a floresta do alto.

A vista do Vale Tucabaca desde as montanhas de Santiago de Chiquitos. Foto: Lisa Corti/Revista Nómadas

A vista do Vale Tucabaca desde as montanhas de Santiago de Chiquitos. Foto: Lisa Corti/Revista Nómadas

A Chiquitania, especialmente Santiago de Chiquitos, optou pelo turismo como estratégia econômica e de conservação há mais de 20 anos. Antes disso, viviam da agricultura de subsistência e muitos emigraram para a cidade devido à falta de oportunidades de emprego.

Sandra Taceó foi uma das que decidiu migrar para ajudar os pais. Desde pequena teve a ideia de que seu dever era cooperar na criação dos sete irmãos, sendo ela a segunda mais velha. Daí a fonte de sua tristeza.

Ela passou cerca de cinco anos, depois da escola, trabalhando como babá em Santa Cruz de la Sierra, a maior cidade do departamento, e com a mensalidade mandava dinheiro para a mãe e para os irmãos mais novos custearem roupas, comida ou o que quer que fosse. necessário. Sandra era feliz em poder ajudar seus pais. Poucos meses depois, seu marido Tatín também migrou e, juntos tiveram uma menina chamada Thais. Nenhum deles foi seduzido pela vida na cidade grande. O plano era economizar dinheiro para voltar para seu lugar de origem.

“O modo de vida na cidade me estressa. É só trabalho, trabalho, trabalho. Por outro lado, aqui você sai do trabalho e descansa na sua casinha, calma e nada perigosa, digamos, é uma cidade segura e todos nós nos conhecemos, o povo de Santiago”. Sandra ri alto quando pergunto como muitas pessoas com sobrenome Taceó estão na cidade. Ela explica que todos se consideram parentes.

Roxana Moreno, irmã mais velha de Sandra, dorme com um olho aberto e ouvidos atentos, esperando que um jato de água desça do seu chuveiro. É que no bairro de Santa Rosa, onde vive, na época da seca, a água é um dilema. Com caráter forte e sorriso fechado, ser mãe solteira a transformou em uma mulher de aço.

Desde criança já sabia que estava destinado a trabalhar e não a estudar. Não havia dinheiro em sua casa e seus avós, que a criaram, estavam necessitados. Por isso, aos 13 anos partiu para Santa Cruz de la Sierra com a promessa de ser babá de uma casa. Seus patrões disseram que era só para cuidar dos filhos e que ela poderia continuar os estudos, mas os planos mudaram, ela acabou cozinhando e limpando e tendo de fazer “de tudo um pouco”. Ainda jovem aprendeu a cozinhar à força.

Durante 20 anos, ia e voltava da cidade para conseguir dinheiro. Naquela época ela já tinha uma menina a quem chamou de Mayerline, hoje com 27 anos; além de Fabricio, de nove anos; e Fabian, de oito. Ela diz que os homens prometem as estrelas, que as mulheres acreditam nisso, mas logo eles vão embora. Até os filhos dela sabem disso. O que fica muito claro quando o caçula pede que sua mãe não se preocupe porque ao crescer vai trabalhar e ajudar em casa. Seus filhos sabem que têm uma mãe que trabalha muito por eles.

Roxana Moreno visita Las Pozas depois de 20 anos e percebe que o fluxo não é o mesmo. Foto: Lisa Corti/Revista Nómadas

Roxana Moreno visita Las Pozas depois de 20 anos e percebe que o fluxo não é o mesmo. Foto: Lisa Corti/Revista Nómadas

Em sua casa de adobe moram onze pessoas, seus filhos, sua mãe e sua irmã mais nova, Daniela. As três mulheres de sua casa devem ficar atentas caso a água chegue de madrugada e tenham a oportunidade de reduzir a montanha de roupas sujas acumuladas.

Para sua vizinhança, o horário de abastecimento de água é das 11 da noite às 5 da manhã. Se não se levantarem a tempo de reabastecer todos os baldes que encontrarem para tomar banho, ir ao banheiro ou beber, deverão esperar até a noite por outra oportunidade. Em alguns anos, a família tinha sorte e a água chegava mais cedo, mas este ano a sorte escapou.

Roxana também depende do turismo para seu sustento. Ela começou a trabalhar no mesmo hotel que Sandra para substituí-la e, depois que o turismo cresceu, os responsáveis pelo empreendimento ligaram para ela cada vez com mais frequência porque precisavam de mais funcionários. Ela trabalha lá há oito anos, preparando café da manhã para os clientes, limpando quartos, lavando lençóis, passando roupa, o que for necessário.

Mesmo não sendo um trabalho permanente, ajuda no sustento da casa. Agora devido aos incêndios florestais ninguém vem, deixando Roxana sem sua alternativa de renda. É preciso esperar que a chuva faça a sua magia e apague os incêndios que o Governo nunca conseguiu prevenir ou extinguir.

Sandra nunca estudou nada sobre turismo, mas quando numa tarde de 2014, enquanto caminhava pela cidade com seu bebê de oito meses nos braços, viu um anúncio no Hotel Churapa que “estava à procura de pessoal de limpeza”, ela foi incentivado a ir à entrevista, comentando que precisava do emprego, mas não tinha experiência. Disseram sim à ela que começou imediatamente na limpeza de quartos, lavagem de lençóis e, ao longo dos anos, foi treinada com cursos de atendimento ao cliente.

Mas foi a sua gentileza e hospitalidade genuína que a levaram a construir amizades profundas com turistas e grupos de fundações que vieram a Santiago de Chiquitos e se apaixonaram pela cidade. Sandra tornou-se, sem pensar, alma do hotel. Hoje em dia, muitos hóspedes gostam, acima de tudo, de ter tempo durante a sua visita para tomar um café com Sandra, a nova confidente de confiança dos visitantes.

Coordenar que não falte água para os turistas e os doze quartos do hotel na época da seca é uma ansiedade que só Sandra conhece. Ela mora em uma casa modesta no centro do hotel, com o marido Tatin e a filha Thais, hoje com 13 anos. Juntamente com Tatín, fazem de tudo para que os dois tanques de emergência tenham água para os serviços básicos dos hóspedes. Mas, às vezes, os tanques não são abastecidos e é constrangedor para ela explicar aos hóspedes que este não foi um erro do hotel ou algum problema ligado à tubulação. Mas algo pior, vindo da seca prolongada que, aos poucos, foi secando seus rios e deixando um rastro de sede pelo caminho.

A praça principal de Santiago de Chiquitos, coberta por uma combinação de neblina e fumaça. Foto: Lisa Corti/Revista Nómadas

A praça principal de Santiago de Chiquitos, coberta por uma combinação de neblina e fumaça. Foto: Lisa Corti/Revista Nómadas

E a água que vem da serra não serve apenas para serviços básicos. É água pura, pronta para beber. Esta longa cadeia de serras de Chiquitano é, literalmente, um conjunto de fábricas de água. As massas rochosas e avermelhadas cobertas por uma manta de árvores são responsáveis pela geração de água que influencia os padrões de precipitação que marcam as características do território.

No teto das serras do Sudeste Chiquitano, escondem-se redes de águas cristalinas que navegam pelas planícies, dividindo-se em centenas de finos rios à esquerda e à direita e, depois, descendo pelas encostas da serra, criando em seu fundo um verde mar de árvores chamado Vale Tucabaca.

Um estudo do Plano de Conservação de Desenvolvimento Sustentável da Floresta Seca do Chiquitano, Cerrado e Pantanal Boliviano aponta que a serra de Santiago apresenta uma particularidade: as chuvas foram maiores em comparação com a região. Mais de 1.100 milímetros de água por ano de diferença. Isso porque a serra é uma parede natural que intercepta as massas de umidade, produzindo nuvens que estagnam acima e que, depois, descem como uma cachoeira de neblina até a cidade, cobrindo de orvalho cada folha em seu caminho.

Todos os Chiquitanos sabem que a água vem de cima.

Mas aquele orvalho matinal, em particular, está se tornando mais escasso, criando um aviso sutil às pessoas de que algo está errado na floresta. Essa agonia pela água não atingiu apenas Santiago de Chiquitos. Como uma praga, a seca também afetou 23 comunidades do município, 16 delas indígenas.

Um relatório técnico municipal de Maio de 2024 afirma que a seca prolongada atingiu 670 famílias, levando-as a pedir tanques de água para manter o abastecimento para susntetar sua população, seu gado e suas plantas, antes que a situação piore. Seis dias depois, a Câmara Municipal declarou estado de “catástrofe municipal” por falta de precipitação e seca.

A estação seca estava apenas começando e já era um desastre. Para as 16 comunidades indígenas, a emergência começou mais cedo do que o previsto devido ao clima daquele mês de abril o que fez com que todas as suas colheitas tenham sido perdidas. “É incrível! tudo que foi plantado, tudo morreu”, diz Nardy Velasco. Ela é chefe sênior da Central Indígena Chiquitana Amanecer-Roboré (CICHAR), e sua principal função é ser porta-voz dos direitos e demandas do povo indígena Chiquitano na área.

Com olhos amendoados, olhar intenso e voz firme, mas gentil, ela é a primeira mulher cacique na história do seu município e conhece em primeira mão a realidade do povo que a elegeu para defender os seus direitos.

Durante sua gestão, conseguiu consolidar um clube de 25 mulheres defensoras do meio ambiente em suas comunidades. Durante suas visitas para conhecer as demandas locais, ela aproveita para se encontrar com elas, tomar um café e compartilhar ideias sobre o presente e o futuro de seus territórios.

Reconheçe que existem mulheres com ideias brilhantes em todos os lugares e que as Chiquitanas são como uma centopéia: elas têm que acordar cedo para ter tempo para elas. Durante todo o dia, todos os dias, elas desempenham o papel de mãe, dona de casa, trabalhadora e tem a missão de fazer com que a água seja suficiente para todos.

Num trecho árido e sem árvores do Vale do Tucabaca fica a comunidade de Águas Negras, nome que já não faz justiça à sua realidade, pois, em Águas Negras não há mais água colorida. As suas encostas que desciam das montanhas secaram e os seus poços já não têm água para bombear. Agora eles devem pedir constantemente ajuda ao centro indígena para que lhes traga o líquido, mesmo que sejam apenas alguns tambores. O suficiente para sobreviver.

Nardy comenta que o rio não secou por magia. Novos habitantes vêm colonizando o vale e desmatando toda a estrada que desce da serra até Águas Negras, tanto para ampliar a fronteira agrícola, quanto para traficar madeira. Ele viu em primeira mão como as famílias tiveram que emigrar das suas comunidades porque todas as suas colheitas morreram ou
porque o turismo diminuiu tanto que já não há empregos.

O comércio de carvão vegetal é uma ameaça latente às árvores e um incentivo ao desmatamento. Foto: Lisa Corti/Revista Nómadas

O comércio de carvão vegetal é uma ameaça latente às árvores e um incentivo ao desmatamento. Foto: Lisa Corti/Revista Nómadas

Não só o rio que atravessava Águas Negras secou, também muitos dos riachos que descem das montanhas em direção às cidades, incluindo o rio Santiago de Chiquitos, onde Sandra e Roxana costumavam ir quando crianças, viram seus fluxos diminuirem. “Dizemos que vivemos do turismo, mas se não fizermos algo contra isso, contra a escravização, os incêndios, a venda e o tráfico de terras, ficaremos num deserto”, garante Nardy com firmeza.

Paradoxalmente, o município de Roboré, que tem investido numa campanha de autopromoção como um destino turístico sob o lema “O Paraíso é aqui” e que grita em todos os seus outdoors sobre sua diversidade de atrativos turísticos (desde fontes termais, spas, cachoeiras e jatos) está em apuros. Afinal, não é possível vender um paraíso árido onde há mais de seis meses não há água nem para a sua população e onde as temperaturas do sol escaldante do meio-dia estão atingindo novos recordes.

Um estudo da Fundação para a Conservação da Floresta Chiquitano mediu as temperaturas na área entre os anos de 1986 e 2000, usando várias estações meteorológicas na Chiquitania e revelou que enquanto a área tinha uma temperatura máxima de cerca de 34º C na área da floresta esse índice chegava a apenas 25,3 ºC. Porém, pouco mais de 20 anos depois, este paraíso vive um inferno e bate recordes de megaincêndios com temperaturas de até 42,6º C, em Roboré, no ano passado. E, em outras partes da Chiquitania, o índice chega a até 44 ºC.

Nesse mesmo mês de novembro, o Ministério da Saúde boliviano confirmou 10 mortes no município de Roboré por insolação e desidratação. A relação tóxica entre seca, queimadas e desmatamento está deixando feridas, dor e morte por onde passa.

O incêndio no Vale do Tucabaca pode ser avistado do mirante turístico. Foto: Lisa Corti/Revista Nómadas

O incêndio no Vale do Tucabaca pode ser avistado do mirante turístico. Foto: Lisa Corti/Revista Nómadas

Apesar dos esforços de comunidades como Santiago de Chiquitos para promover o turismo de natureza como forma de conservar a sua floresta e água, os inimigos são mais ágeis e rápidos. Entre incêndios, secas prolongadas, bloqueios de estradas e a crise económica, seu futuro é incerto, mas os Santiagueños sabem que o turismo de conservação é a solução.

Hoje em dia, os chiquitanos que antes olhavam para o céu esperando a chegada das nuvens, agora conferem constantemente a previsão do tempo no celular, rezando para que a chuva venha e pague tudo o que arde.

Sandra e Roxana debatem o que fazer se o turismo não voltar a florescer, mas acima de tudo, se um dia a água desaparecer e não voltar. Vale a pena migrar? Para Sandra, talvez sim; Ela acha que seu marido ou ela teriam que ir para a cidade para que sua filha Thais tenha um futuro melhor e possa estudar. Para Roxana, sair de Santiago não é uma opção, pois mesmo sem água, ela acredita que lá, mais longe, em um lugar desconhecido, tudo será mais difícil e “pior”.

Esta pesquisa foi realizada no âmbito do Fundo de apoio jornalístico ‘Crise climática 2024’, promovido pela Plataforma Boliviana Frente à Mudança Climática (PBFCC) e pela Fundação Para o Jornalismo (FPP).

Este texto foi publicado originalmente em espanhol pela Revista Nómadas. Acesse aqui a versão original.

Lisa Mirella Corti é jornalista, formada em Relações Internacionais com especialização em Resolução de Conflitos pela Universidade NUR da Bolívia. Pesquisadora independente e conservacionista, com experiência em projetos de direitos humanos e arteterapia em presídios, cultura do jaguar, tráfico de espécies e sustentabilidade. Assistente de produção do premiado documentário Tribus de la Inquisición. Colabora com a Revista Nómadas.

Tradução e revisão: Glauce Monteiro
Montagem de Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

Você pode gostar...

Translate »