Afrotecas na Amazônia: educação contra o racismo
Projeto da Ufopa conquistou parceria com ministério e deve ser expandido para todo o país


Afroteca é espaço de educação antirracista. Foto: Divulgação Afroliq.
O livro infantil “Cabelo de Lelê”, da escritora carioca Valéria Belém, apresenta a história de uma menina negra que não gostava do seu cabelo encaracolado. Até que ela começa a ler e pesquisar sobre a beleza e a importância da herança africana e muda completamente de ideia a respeito da aparência.
Pode parecer um conto simples, mas o conceito é um dos nortes de um projeto inovador que é realizado há três anos em Santarém, no oeste do Pará, e está em franca expansão. As Afrotecas são espaços para educação antirracista, que utilizam ferramentas como histórias infantis, instrumentos musicais, jogos e brinquedos para exaltar e valorizar a cultura afro-brasileira desde a primeira infância.
A Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) conta com o Grupo de Pesquisa em Literatura, História e Cultura Africana, Afro-brasileira, Afro-Amazônica e Quilombola (Afroliq), que realiza ações de extensão e estudo em parceria com creches e outras instituições da cidade. Em 2022, o Afroliq, a convite do Instituto AMMA Psique e Negritude, aplicou uma extensa pesquisa em Centros de Educação Infantil do município (Cemei), como parte de um projeto chamado Kiriku, que debate a educação para relações raciais e literatura infantil antirracista. Luiz Fernando França, coordenador do Afroliq e das Afrotecas, explica:
A gente queria entender: como o racismo surge entre as crianças? Como ele se estrutura? E como a gente resolve isso. Queríamos entendê-lo e enfrentá-lo. Racismo no cabelo. Associação da criança negra a algo negativo. Discurso de adultos. Nós fomos pesquisando e sistematizando todas essas coisas. E não adianta só dar um diagnóstico, mas temos que ter uma alternativa para combater esse racismo. E é aí que surgem as Afrotecas”.
No mesmo ano, em parceria com o Ministério Público do Estado do Pará e com a Prefeitura de Santarém, quatro espaços foram inaugurados: a Afroteca Willivane Melo, localizada no prédio do MP; e as unidades Amoras, do Cemei Paulo Freire; Sankofa, do Cemei Antônia Correa e Sousa; e Lelê, do Cemei Maria Raimunda Pereira de Sousa. Os locais recebem diariamente a visita de crianças, jovens e adultos. O professor destaca:
Não há uma faixa etária limitada. As Afrotecas nascem para as crianças da primeira infância, mas também recebemos aqui alunos dos ensinos fundamental e médio, e até do ensino superior, que estão em formação profissional”.
Crianças brincam e aprendem na Afroteca. Foto: Divulgação Afroliq.
Mudando vidas
No Cemei Maria Raimunda Pereira de Sousa, localizado no bairro Nova República, o nome escolhido para a Afroteca foi justamente o “Lelê”, como homenagem ao livro. A decisão partiu de toda a comunidade escolar e representa bem o trabalho desenvolvido com as crianças e os pais. A coordenadora do Cemei, Janice Diniz, conta:
Chegou o momento em que tínhamos que escolher o nome da nossa Afroteca, baseado nos livros que trabalhamos com os alunos. Temos 13 turmas e cada sala ficou com um livro diferente. Enviamos as leituras para os pais também e fizemos uma reunião geral para decidir em um consenso, ouvindo todo mundo. Escolhemos o ‘Cabelo de Lelê’ porque muitas crianças não aceitam seu cabelo e a cor da sua pele. A história traz esse dia a dia. A Lelê ficava incomodada com o cabelo e com tantos cachos. Só depois de pesquisar é que descobriu que pessoas de vários países diferentes têm cabelos diferentes. E aí ela começou a gostar do que via”.
Na creche, alunos de todas as turmas, entre 1 e 2 meses até 5 anos de idade, frequentam periodicamente a Afroteca, respeitando o cronograma e os planos de aula de cada professor. Antes de visitar o espaço, eles estudam os conteúdos em sala de aula, como os livros ou instrumentos musicais que fazem parte do acervo.
Mas as Afrotecas são mais do que espaços em que as crianças podem brincar, ler ou aprender sobre a cultura afro-brasileira. São verdadeiros espaços de transformação de vidas. Segundo a professora, o exemplo da Lelê já foi replicado em muitos estudantes. Inclusive no ano passado, quando uma ex-aluna foi protagonista da Feira Afrocentrada após uma grande mudança de autoestima:
Nós descobrimos que a Manu, que hoje já está no ensino fundamental, não gostava da cor da sua pele, não era só o cabelo. E a partir daí, nós fizemos todo um trabalho. Lendo o livro com ela, trazendo essa discussão para a família. Chegamos ao final do ano e a Manu saiu daqui gostando muito do que ela via. E hoje, nós sabemos que ela se aceita como ela se vê. Uma criança negra de cabelos encaracolados”.
Algo parecido ocorria com a pequena Lara Yasmin dos Santos, de apenas 5 anos. Aluna do Cemei, ela também tinha dificuldades em se aceitar como uma menina negra. Hoje, com as aulas na Afroteca, ela tem orgulho de ser quem é:
Eu gosto muito daqui porque tem vários brinquedos. E tem bonecas da minha cor, que é negra! Eu aprendi que todo mundo ama sua pele e seu cabelo, então eu amo a minha pele e o meu cabelo. A primeira coisa que eu gostei aqui foram as bonecas que têm minha cor”.
Livro “Cabelo de Lelê” é inspiração para Lara. Foto: Divulgação Afroliq.
O pequeno David Yorran Lopes, também de 5 anos, também gosta muito da Afroteca, principalmente dos instrumentos musicais. “Eu gosto de todos os instrumentos, gosto de fazer barulho. Aqui é muito legal e a gente aprende muita coisa”.
Os educadores dos Cemei’s também passam por formações disponibilizadas pelo Afroliq, da Ufopa. Na instituição Maria Raimunda, uma média de 280 estudantes são formados todos os anos, recebendo o ensino antirracista proporcionado pela Afroteca. Janice destaca:
O nosso trabalho é para quebrar as falas preconceituosas logo na infância. Quando as nossas crianças saem daqui, elas entendem muito do respeito com o outro. A gente se sente muito feliz em ver os alunos entendendo o que a gente diz. Sabemos que o trabalho não está sendo em vão. Tanto na sala de aula, quanto na Afroteca, quanto em casa, porque trazemos os pais para conhecer o espaço, para rodas de conversa. Nosso objetivo é preparar estas crianças para os desafios da vida”.
Projeto em expansão
No ano passado, a coordenação do projeto entrou em contato com o Ministério da Igualdade Racial (MIR) e começou a expansão das Afrotecas. Além das quatro já existentes, mais uma foi inaugurada: a Curumim, localizada no campus Tapajós da Ufopa.
A parceria com o governo federal possibilitou a manutenção dos espaços e a construção de novas Afrotecas, não só em Santarém, mas também em outros municípios da região oeste do Pará. Além da Curumim, já estão confirmadas novas estruturas que serão construídas nas escolas: Nossa Senhora do Livramento (Santarém), Vitalina Mota (Belterra), Peafu (Monte Alegre), Martinho Nunes (Alenquer), e Criança Esperança (Oriximiná).
Conversas entre a coordenação e o MIR seguem sendo realizadas para que o projeto seja desenvolvido em várias partes do país. Pedidos para a implantação de Afrotecas em outros estados, como Amazônia e Ceará, já são uma realidade. Luiz França espera ver a tecnologia de educação antirracista chegando ao Brasil todo muito em breve:
Um projeto do interior da Amazônia que hoje é, na minha avaliação, o que nós temos de mais inovador na educação antirracista brasileira. Até porque se não fosse, porque o Ministério da Igualdade Racial estaria apoiando e estudando a expansão para o resto do país? Eu sou um homem negro e sinto na pele esse problema, mesmo formado, professor de Universidade, a gente continua sofrendo. Eu me sinto realizado profissionalmente, intelectualmente e na prática educativa. A Afroteca é para todas as crianças, mas se estamos falando de racismo, quem sofre são as crianças negras. É um trabalho coletivo e se isso chega aos alunos e às famílias, mostra o quanto esse trabalho está sendo importante”.
Texto: Gustavo Campos
Edição e revisão: Glauce Monteiro
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón