A avenida que enterra vidas: Liberdade para quem?

Comunidade ribeirinha denuncia perda de território, renda e dignidade com a construção da Avenida Liberdade, megaprojeto de quase R$500 milhões do Governo do Pará

A construção da Av. Liberdade soterra modos de vida inteiros com máquinas e concreto. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.
A construção da Av. Liberdade soterra modos de vida inteiros com máquinas e concreto. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.
A construção da Av. Liberdade soterra modos de vida inteiros com máquinas e concreto. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

A construção da Av. Liberdade soterra modos de vida inteiros com máquinas e concreto. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

“Meu quintal virou poeira e lama. Onde antes tinha açaí, hoje tem só buraco e promessa.” A fala é de Roberto Santos Filho, ribeirinho da comunidade Nossa Senhora dos Navegantes, em Belém, que viu o sustento da família desaparecer junto com os pés de açaí que mantinha em seu terreno. A situação de Roberto não é isolada. Apesar da proximidade da capital, a comunidade ribeirinha sobreviveu há gerações do extrativismo de base familiar do açaí. Agora, uma avenida com nome de promessa, avança como sentença final para aqueles que aprenderam a se manter apenas com o que tiravam da floresta.

Avaliada em quase R$500 milhões de reais, a Avenida Liberdade é o novo megaprojeto de mobilidade urbana do Governo do Pará. Com 13,3 km de extensão, a via ligará a Rodovia Alça Viária à Avenida Perimetral. Mas o custo real da obra não cabe em orçamento público: são modos de vida inteiros sendo soterrados por máquinas e concreto.

Nesta reportagem especial, eu e o fotógrafo Oswaldo Forte ouvimos uma comunidade tradicional que vive da floresta há várias gerações, mas agora estão sendo empurrados para as margens, sem consulta, sem indenização e, principalmente, sem liberdade.

“Meu quintal virou poeira e lama. Onde antes tinha açaí, hoje tem só buraco e promessa”. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

“Meu quintal virou poeira e lama. Onde antes tinha açaí, hoje tem só buraco e promessa”. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

Da floresta ao asfalto: histórias de quem perdeu tudo

O extrativista Roberto Filho dos Santos Amaral vive há mais de três décadas na comunidade Nossa Senhora dos Navegantes. Casado e pai de três filhos, ele mantinha uma produção de açaí que sustentava toda a família antes da chegada das obras. Ele lembra com exatidão dos números: “Eu tinha 1.670 pés de açaí. Hoje em dia, eu tenho apenas 50 pés. Antes dessa Avenida Liberdade passar aqui, eu ganhava em torno de R$ 3.000, R$ 3.500 por mês. E hoje eu estou ganhando no máximo R$ 600”, conta.

Pai de três filhos pequenos, Roberto vê sua renda ser substituída por promessas que não se concretizam. A vida, que antes girava em torno do extrativismo de base familiar do açaí, agora depende de trabalhos temporários e mal remunerados, na própria obra que destruiu a sua plantação. Ele começa o dia antes do sol nascer, às 5h da manhã. “Esse é o valor máximo que eles me pagam. Diminuiu muito a minha renda. O meu açaí acabou tudo. Eu não tenho mais nada”, lamenta.

Roberto Filho dos Santos Amaral, extrativista da comunidade Nossa Senhora dos Navegantes. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

Roberto Filho dos Santos Amaral, extrativista da comunidade Nossa Senhora dos Navegantes. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

Distante cerca de 13 km do centro de Belém, o custo de vida na comunidade aumentou com o início das obras. E o trajeto até a cidade pesa no bolso. Assim como na maioria das comunidades ribeirinhas da Amazônia, o açaí faz parte de todas as refeições, do café da manhã ao jantar. Antes, o que era algo natural, hoje, passa a ser um desafio.

“Aqui é tudo muito longe, tudo fica mais caro. As coisas sempre são mais difíceis para a gente. Com a derrubada dos açaízais, eu já não tenho nem açaí para consumo próprio. E o açaí faz parte da nossa alimentação, do nosso modo de vida. Agora, eu tenho que comprar açaí na cidade pra eu tomar e sai muito mais caro. Eu chego a pagar 40 reais no litro. Antes, eu tinha aqui, no meu quintal”, lamenta Roberto Amaral.

Outro extrativista, de 45 anos, nascido e criado na comunidade, que pediu anonimato, detalha a dimensão das perdas: “Eu perdi 3.600 pés de açaí. O meu irmão perdeu 1.100. Outros moradores perderam 5.000 pés. A obra está avançando e os nossos benefícios, até agora, nada”, conta.

Distante cerca de 13 km do centro de Belém, o custo de vida na comunidade aumentou com o início das obras. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

Distante cerca de 13 km do centro de Belém, o custo de vida na comunidade aumentou com o início das obras. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

Segundo ele, as inúmeras promessas de indenizações para a realização da obra não se concretizaram: “Eles deram apenas uma contrapartida para a gente, nós estamos fornecendo umas marmitas para eles. Mas, até agora, foi apenas isso.” Antes, em boas safras, ele tirava até R$ 12 mil reais com a venda do açaí.

Agora, com menos da metade dos pés restantes, mal consegue se manter. “A minha família todinha mora aqui na comunidade. Nós nascemos e nos criamos aqui. Meu avô, meu pai. Hoje, nós somos a quarta geração que estamos aqui. E está difícil. A gente dependia do açaí para sobreviver”, relata o extrativista.

A vida, que antes girava em torno do extrativismo de base familiar do açaí, agora depende de trabalhos temporários e mal remunerados. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

A vida, que antes girava em torno do extrativismo de base familiar do açaí, agora depende de trabalhos temporários e mal remunerados. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

A Obra e o Licenciamento

A Avenida Liberdade promete integrar regiões periféricas e melhorar o fluxo viário da capital paraense. O projeto inclui ciclovias, iluminação solar, barreiras acústicas e sistemas de drenagem. O Governo do Estado afirma que o traçado aproveita áreas já desmatadas e que os impactos ambientais são mínimos.

No entanto, o próprio Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (EIA/RIMA) aponta que a obra atravessa regiões de alta biodiversidade, com mais de 800 espécies de fauna, incluindo espécies ameaçadas. O traçado também cruza partes da Área de Proteção Ambiental (APA) Metropolitana de Belém e margeia o Parque Estadual do Utinga.

O licenciamento ambiental foi concedido pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), com aprovação do Conselho Estadual de Meio Ambiente (Coema), em 2023. A única audiência pública foi realizada depois que a obra já havia sido anunciada oficialmente, levantando questionamentos sobre a transparência e a legalidade do processo.

O Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (EIA/RIMA) aponta que a obra atravessa regiões de alta biodiversidade, com mais de 800 espécies de fauna, incluindo espécies ameaçadas. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

O Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (EIA/RIMA) aponta que a obra atravessa regiões de alta biodiversidade, com mais de 800 espécies de fauna, incluindo espécies ameaçadas. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

Violações denunciadas

O Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) abriram procedimentos para investigar possíveis violações da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que determina a consulta livre, prévia e informada às comunidades tradicionais afetadas por empreendimentos.

Segundo os moradores, essa consulta nunca aconteceu. “Eles chegaram e disseram que iriam fazer uma avenida aqui, a Avenida Liberdade. Aí eles iriam passar desmatando, mas iriam indenizar a comunidade, os moradores que foram afetados. Mas, até agora, não acertaram com ninguém. Nós não fomos consultados previamente sobre essa obra. Quando consultaram, eles já estavam praticamente dentro do traçado. Não foi nada prévio”, disse um ribeirinho que não quis ser identificado por questões de segurança

uma avenida com nome de promessa, avança como sentença final para aqueles que aprenderam a se manter apenas com o que tiravam da floresta. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

uma avenida com nome de promessa, avança como sentença final para aqueles que aprenderam a se manter apenas com o que tiravam da floresta. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

O embate também é discursivo

A obra também ganhou repercussão internacional após uma reportagem da BBC expor que a Avenida Liberdade atravessa áreas sensíveis da Amazônia e está sendo construída às vésperas da COP30. A repercussão gerou uma onda de críticas ao Governo do Pará, acusado de promover o desmatamento enquanto se prepara para um evento global voltado justamente à proteção ambiental.

Em resposta, o Governo Estadual tentou desassociar a Avenida Liberdade da COP30, afirmando que se trata de um projeto de mobilidade urbana independente. No entanto, essa versão contrasta com diversas matérias publicadas anteriormente pela própria Agência Pará, site oficial de notícias do Governo, que destacavam a Avenida como um dos principais legados da Conferência, voltado para a modernização da infraestrutura urbana da capital.

"Eles chegaram e disseram que iriam fazer uma avenida aqui, a Avenida Liberdade". Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

“Eles chegaram e disseram que iriam fazer uma avenida aqui, a Avenida Liberdade”. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

Sem resposta, comunidade fecha caminhos

Após dez meses de obras e nenhuma resposta concreta sobre indenizações ou compensações, os moradores da comunidade Nossa Senhora dos Navegantes decidiram reagir. Em um ato de resistência, bloquearam as estradas vicinais de acesso à região, impedindo a passagem dos caminhões e máquinas ligados à obra da Avenida Liberdade. O protesto, que segue sem previsão de encerramento, só deve ser suspenso após um acordo oficial entre Governo e moradores. A comunidade exige não apenas reparações financeiras, mas respeito e escuta, algo que, segundo eles, tem faltado desde o início do projeto.

Em um ato de resistência, bloquearam as estradas vicinais de acesso à região, impedindo a passagem dos caminhões e máquinas ligados à obra da Avenida Liberdade. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

Em um ato de resistência, bloquearam as estradas vicinais de acesso à região, impedindo a passagem dos caminhões e máquinas ligados à obra da Avenida Liberdade. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

Além das perdas dos açaizais, os moradores denunciam o agravamento das condições das estradas da comunidade. O tráfego constante de caminhões pesados tem tornado o deslocamento diário arriscado. Valdemar Silva, extrativista e mototaxista, já sofreu dois acidentes desde o início da obra.

“Ontem eu caí e a minha moto ficou em cima da minha perna. Eu já caí duas vezes, derramando todo o meu produto. A gente fica no prejuízo com as estradas nessas condições”, relata. A comunidade, que antes enfrentava os desafios típicos da vida ribeirinha, agora lida com os impactos de um megaprojeto que, até aqui, trouxe mais destruição do que desenvolvimento.

A comunidade, que antes enfrentava os desafios típicos da vida ribeirinha, agora lida com os impactos de um megaprojeto que, até aqui, trouxe mais destruição do que desenvolvimento. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

A comunidade, que antes enfrentava os desafios típicos da vida ribeirinha, agora lida com os impactos de um megaprojeto que, até aqui, trouxe mais destruição do que desenvolvimento. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

O extrativista aproveitou a presença da nossa equipe de reportagem para mostrar o vazio onde antes existia a casa do filho: uma construção simples, que ele mesmo ajudou a erguer ao longo dos anos. O terreno, que antes abrigava a estrutura, hoje é apenas chão batido, marcado pelas lembranças e pela indignação diante da ausência de respostas das autoridades.

“Aqui ficava a casa do meu filho, bem aqui. Agora, como passou a rodovia, a casa dele foi retirada. Até agora eles não decidiram se vão pagar ou não.” A destruição da casa foi imediata, mas a resposta do poder público, até agora, não veio. “Eles só chegaram e disseram que iriam fazer outra casa para ele e indenizar, mas até agora ninguém foi indenizado.” Hoje, o filho mora de favor. “Foi muita luta para ele conseguir. Nós trabalhamos muito para ele ter a casa”, desabafa.

Casa na comunidade Nossa Senhora dos Navegantes, que será derrubada para a continuidade da obra. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

Casa na comunidade Nossa Senhora dos Navegantes, que será derrubada para a continuidade da obra. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.

A liberdade negada

A ironia no nome do projeto não passa despercebida por quem vive no território afetado. “Eles chamam de Liberdade, mas levaram tudo. Levaram a nossa paz, nosso alimento, nossa casa. Até o nome virou provocação”, disse um morador. É uma indignação compartilhada entre a comunidade, que há quase um ano convive com a poeira, o barulho e a insegurança. “Parece que essa avenida passou e levou com ela a nossa liberdade”, desabafa José, enquanto observa o terreno vazio onde antes cresciam seus açaizais.

A promessa de progresso contrasta com a realidade de casas derrubadas, rios poluídos por rejeitos de obra e famílias desestruturadas. “Nós não temos mais a liberdade de antes”, diz um ribeirinho. À medida que a obra avança e os caminhões se impõem sobre as estradas esburacadas e intransitáveis, a pergunta segue no ar: liberdade para quem?

Texto: Elielson Almeida
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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