Ocupação Turiwara expõe décadas de violações ambientais
A manifestação chegou ao fim após quatro dias de luta, mas as promessas de melhorias nas aldeias da etnia vieram com um atraso de, pelo menos, 25 anos


Mulheres, crianças e idosos formavam a maioria dos manifestantes que ficaram alojados, de maneira degradante, no estacionamento da Semas. Foto: Acervo Pessoal / Comunicação do povo Turiwara.
Belém, 1º de maio (quinta-feira, feriado do Dia do Trabalhador) — A noite estava sem chuva e sem o típico abafado amazônico. No entanto, na Travessa Lomas Valentinas, no Bairro do Marco, o calor era outro: o humano. Por volta das 19h, centenas de indígenas se concentravam em frente à sede da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) entoando cantos sagrados, exigindo proteção e, principalmente, respeito.
Dentro do prédio, uma comissão de lideranças Turiwara se reuniu a portas fechadas com representantes da Semas e da mineradora Artemyn para tentar uma conciliação. O acordo foi firmado em uma noite silenciosa de feriado, após anos de silenciamento dos povos tradicionais e mais de duas décadas de atraso nas respostas às demandas apresentadas.
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O início da ocupação na Semas
O dia mal havia amanhecido quando a ocupação da Semas foi deflagrada. Depois de uma viagem de quase 200 km, saindo de Tomé-Açu até a capital paraense, cerca de 250 indígenas da etnia Turiwara chegaram no prédio da Secretaria de Meio Ambiente do Estado no dia 28 de abril, por volta das 06h da manhã. Os manifestantes exigiam a revogação de licenças ambientais favoráveis à atuação da mineradora Artemyn nas aldeias da Terra Indígena Turiwara.
“Nós ocupamos a Semas para reivindicar os nossos direitos garantidos pela Constituição. Empresas de mineração estão atuando ilegalmente nos nossos territórios. Quando a gente solicita conversar com elas, para rever alguns danos ambientais causados nas nossas terras, elas nos jogam no meio judicial. Por isso nós viemos atrás de respostas sobre o que está acontecendo na nossa terra”, explica o cacique Paulo Turiwara, presidente da Associação Indígena Turiwara Braço Grande.
Mulheres, crianças e idosos formavam maioria no protesto pacífico. Os manifestantes ficaram alojados, de maneira degradante, no estacionamento da Semas. Aos 52 anos de idade, a Cacique Sulamita Tembé não mediu esforços para participar da ocupação. “Eu saí do conforto da minha casa. nós estamos dormindo no chão procurando os nossos direitos”, narrou a liderança.
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O motivo da ocupação
Uma das principais pautas dos manifestantes é um mineroduto que passa por, pelo menos, 10 aldeias da etnia. A estrutura tem mais de 150 km de extensão de tubo e percorre 7 municípios paraenses até chegar em Barcarena, transportando polpa de caulim. Segundo os indígenas, o empreendimento vem causando sérios problemas ambientais na área, como a poluição de nascente e o secamento de rios.
Miriam Turiwara conta que ainda era criança quando a mineradora iniciou a operação nas aldeias da etnia. Durante a infância, ela e os irmãos costumavam brincar nos depósitos que guardavam os materiais utilizados para a construção do mineroduto. Na época, ela não sabia que o empreendimento iria mudar para sempre o destino da etnia.
Hoje, a luta tem um significado diferente: ela está no sexto mês de gestação do quarto filho. Miriam agora luta para que as futuras gerações não precisem enfrentar as mesmas dificuldades que ela. “O nosso povo vem sofrendo e não é de hoje. Então, para que futuramente a gente não venha a ver os nossos filhos sofrendo o que a gente sofre hoje, nós viemos ocupar a Semas e exigir os nossos direitos”, pontua.

Uma das principais pautas dos manifestantes é um mineroduto que passa por, pelo menos, 10 aldeias da etnia. Foto: Acervo Pessoal / Comunicação do povo Turiwara.
A presença do mineroduto nas aldeias da etnia tem sido alvo de conflitos. Segundo as lideranças indígenas, trabalhadores da mineradora Artemyn impedem que os povos tradicionais se aproximem do empreendimento. “Nós procuramos os nossos direitos e eles [a mineradora] acham que eles são as vítimas, mas as vítimas somos nós [Turiwara]. Eles querem dizer que nós estamos impedindo eles de trabalhar, mas nós estamos no nosso território. Dentro da nossa casa, nós temos direito de brigar pelos nossos direitos”, conta a Cacique Sulamita Tembé.
Em 2024, o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU) recomendaram a suspensão da concessão que permitia a passagem do mineroduto na T.I Turiwara. Segundo os órgãos federais, as licenças foram emitidas sem qualquer tipo de Estudo de Impacto Ambiental para as comunidades atingidas.
Outra irregularidade apontada pelo MPF e DPU é em relação às renovações de licenças ambientais do mineroduto, que estavam sendo prorrogadas automaticamente há mais de 12 anos, sem nenhum estudo de impacto, enquanto a Semas não toma uma decisão final sobre o assunto.
Ameça ao modo de vida dos Povo Tradicionais
Além dos danos irreversíveis à natureza, a atuação da mineradora tem afetado o modo de vida dos povos tradicionais. O Cacique Ednaldo Piatã Turiwara, da Aldeia Mangangá, acompanhou de perto os impactos causados com a chegada do suposto “desenvolvimento” na região.
“Com a chegada da empresa nas nossas terras, nós indígenas não tivemos mais sossego. A gente vivia de caça e peixe, mas com a chegada desses produtos químicos, grande parte das nossas matas foram destruídas, o nosso território ficou muito desmatado. Logo no início morreram muitas caças, enquanto eles estavam abrindo as valas. A nossa comunidade foi atingida de muitas maneiras e nós nunca fomos atendidos com nada por parte da empresa”, conta o cacique.
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Sem mata para caçar e com os rios poluídos por dejetos de mineração, os Turiwaras tiveram que mudar o seu modo de subsistência e precisaram buscar outras alternativas para sobreviver. Agora, eles precisam se alimentar de comidas industriais, com altas concentrações de conservantes e aditivos alimentares. “A gente come com dificuldades, já que a gente mora longe da cidade. Nós temos que comprar os mantimentos no centro da cidade. E é longe. São vinte e dois quilômetros só para poder comprar comida”, desabafa José Turiwara, cacique da aldeia Caí.
As grandes distâncias para comprar comida também têm outro peso na vida dos Turiwaras: o econômico. As aldeias da etnia não são atendidas pelo transporte público de Tomé-Açu. Por isso, os indígenas precisam tirar dinheiro do próprio bolso para chegar até a sede do município. E a viagem não é barata. “De qualquer maneira a gente paga. Se eu pegar uma carona com os vizinhos, eu vou ter que ajudar com uma quantia de gasolina. Esse dinheiro faz falta. O valor que eu poderia gastar com mantimentos, tenho que gastar com combustível”, pontua Raimunda Turiwara.

Raimunda Turiwara. Foto: Acervo Pessoal / Comunicação do povo Turiwara.
Sem consulta prévia, livre e informada
Segundo as lideranças, a mineradora iniciou a exploração na T.I Turiwara há cerca de 25 anos. No entanto, não houve qualquer tipo de consulta aos povos tradicionais que habitam na área, contrariando a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), cujo Brasil é signatário desde junho de 2003.
A regulamentação prevê a consulta livre, prévia e informada antes de qualquer tomada de decisão que afete diretamente o modo de vida dos povos tradicionais. Não foi o que aconteceu na etnia Turiwara. Os indígenas contam que chegaram a procurar a empresa para negociar, mas sofreram ameaças. “Quando a gente foi atrás dos nossos direitos, a Imerys (atual Artemyn) mandou uma multa de 10 mil reais por dia se a gente impedisse eles de entrar dentro da nossa casa. Além de invadir o nosso território, ainda querem que a gente pague eles”, afirma Mirian Turiwara.
Segundo o MPF e a DPU, a empresa só começou a atuar na área porque a Semas não reconheceu o povo Turiwara como indígena. Para as entidades, o episódio configurou “um verdadeiro processo de invisibilização de tais povos na região afetada – desrespeitando, na base, os próprios direitos fundamentais e humanos à autodeclaração e autodeterminação desses povos”, informa a decisão.
Demora da demarcação das terras Turiwara faclita invasão
O reconhecimento das terras Turiwara como território indígena é uma luta antiga. Das 10 aldeias existentes na etnia, apenas uma obteve o reconhecimento da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Embora ainda não seja formalmente demarcada como Terra Indígena, a aldeia Caí Turiwara foi reconhecida como território ancestral e está com o processo de demarcação em andamento.
Segundo o cacique José Turiwara, o caminho percorrido até o reconhecimento foi longo, durou mais de 50 anos. Ele já nem tinha mais esperanças, quando foi surpreendido no ano passado com a decisão. “Até agora, apenas a minha aldeia foi reconhecida pela Funai. Com muita luta, eu adquiri o reconhecimento. Foi alcançado com muita dificuldade”, conta o cacique.

Além dos danos irreversíveis à natureza, a atuação da mineradora tem afetado o modo de vida dos povos tradicionais. Foto: Acervo Pessoal / Comunicação do povo Turiwara.
Após mais de cinco décadas de espera, a aldeia foi alvo de diversos ataques e invasões. Segundo o cacique, os episódios de agressões poderiam ter sido evitados caso o processo tivesse sido mais rápido. A liderança da aldeia Caí também denuncia a inoperância dos órgãos ambientais, que deveriam ajudar os povos tradicionais.
“Eles ficam dificultando para não facilitar [o reconhecimento] para gente. Para eles irem na aldeia fazer a avaliação foi muito difícil, mas já estiveram em três oportunidades lá com a gente, conversando. A Semas já bateu o martelo dela. Agora, nós estamos aguardando eles mandarem um engenheiro para fazer um estudo e criar a nossa área, mas ainda faltam as outras aldeias do meu povo”, explica o cacique.
A mineradora mudou de nome, mas os crimes ambientais não foram esquecidos
A Imerys começou a atuar em Barcarena, na Região Metropolitana de Belém, em 1990, extraindo mais de 1.600.00 toneladas de caulim por ano. Em julho de 2024, a companhia americana Flacks Group adquiriu a divisão de mineração da Imerys por 400 milhões de dólares. A partir de então, a empresa passou a ser Artemyn. Apesar da mudança de nome, os prejuízos ambientais causados pela mineradora para as comunidades atingidas ainda não foram esquecidos.
Em 2019, o Instituto Evandro Chagas (IEC) constatou que a mineradora despejou resíduos industriais em dois igarapés de Barcarena, no nordeste paraense. A irregularidade foi observada após uma visita técnica que identificou uma tubulação ao lado da bacia de rejeito da empresa. Segundo o Instituto, a tubulação irregular despejava rejeitos em mananciais da região.
Em 2021, outro acidente foi registrado na sede da empresa. A cidade de Vila do Conde ficou encoberta por uma nuvem tóxica de fumaça de hidrossulfito de sódio. Após a explosão de um dos depósitos químicos da mineradora, diversos moradores da cidade precisaram de atendimento médico por conta da inalação da fumaça tóxica.
Uma comissão de deputados visitou o local da explosão. Durante a inspeção, os parlamentares confirmaram que a mineradora atuava de maneira irregular no município desde 2012. O relatório dos deputados também pontuou que a mineradora não tinha qualquer tipo de planejamento para atuar em caso de emergências, como na explosão de 2021.
Intervenção da Justiça Federeal
Para que situações como essa não voltem a acontecer, a Justiça Federal atendeu ao pedido do MPF e determinou, no dia 30 de abril de 2025, que a Agência Nacional de Mineração (ANM) negue os pedidos de exploração de minérios em terras indígenas que abrangem a subseção de Castanhal.
Segundo a Justiça Federal, a decisão vale para os municípios: Augusto Corrêa, Bonito, Bragança, Capanema, Castanhal, Curuçá, Igarapé-Açu, Inhangapi, Magalhães Barata, Maracanã, Marapanim, Nova Timboteua, Peixe-Boi, Primavera, Quatipuru, Salinópolis, Santa Maria do Pará, Santarém Novo, São Domingos do Capim, São Francisco do Pará, São João da Ponta, São João de Pirabas, Terra Alta, Tracuateua e Viseu.
Ainda segundo o MPF, “a obrigação vale tanto para terras indígenas já homologadas quanto para aquelas ainda não homologadas. A decisão também abrange os processos administrativos de mineração pendentes de análise, que deverão ser negados pela Agência”.
O fim da ocupação dos Turiwara na Semas
Após quatro dias de mobilização, a ocupação foi encerrada com a assinatura de um acordo entre a Semas, a mineradora Artemyn, a Funai e lideranças Turiwaras.
“O acordo vem ser o comprometimento dos órgãos com as comunidades indígenas, de ser feito os estudos que não foram realizados. E também da empresa iniciar os trabalhos, que a empresa nunca fez, como implementações de estradas e viveiros de mudas”, afirm o cacique Paulo Turiwara.

Acordo assinado após 4 dias de protesto. Foto: Acervo Pessoal / Comunicação do povo Turiwara.
O que ficou definido no acordo
Entre as principais medidas do acordo está a implantação de poços artesianos, redes de água encanada, geradores de energia elétrica e internet via Starlink em cada uma das dez aldeias da etnia. Também estão previstas a construção de casas de cultura, casas de farinha, tanques para criação de peixes, viveiros de mudas e granjas com capacidade para mil galinhas.
Além disso, é prevista a recuperação de 60 quilômetros de estradas com a construção de duas pontes sobre igarapés. O acordo inclui, ainda, o preparo de 200 hectares de áreas degradadas para plantio por meio de Sistemas Agroflorestais (SAFs) e o fornecimento de insumos agrícolas para cada indígena, além da oferta de cursos profissionalizantes nas áreas de informática, piscicultura e artesanato.
O documento também exige, pela primeira vez em 25 anos de atuação da mineradora no território, a realização do Estudo de Componente Indígena (ECI), que até então nunca foi feito. A partir de agora, qualquer intervenção da empresa na faixa de servidão do mineroduto dependerá de consulta prévia aos Turiwara. Segundo a determinação, a empresa Artemyn está proibida de realizar ampliações ou alterações no mineroduto sem o consentimento dos indígenas.
Texto: Elielson Almeida
Montagem da página: Alice Palmeira
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Direção: Marcos Colón