Indígenas e assentados driblam dificuldades para continuar na Universidade e fazer a diferença na sociedade

A partir de 2007, MEC facilitou a entrada deles. Mas o apoio da família, amigos e até de desconhecidos ainda é crucial para que eles permaneçam na graduação

Comunidades tradicionais da Amazônia sonham com o ensino superior desde a infância, mesmo sabendo dos obstáculos que serão enfrentados. Foto: Wenderson Mac Dovel /Reprodução.
Comunidades tradicionais da Amazônia sonham com o ensino superior desde a infância, mesmo sabendo dos obstáculos que serão enfrentados. Foto: Wenderson Mac Dovel /Reprodução.
Comunidades tradicionais da Amazônia sonham com o ensino superior desde a infância, mesmo sabendo dos obstáculos que serão enfrentados. Foto: Wenderson Mac Dovel /Reprodução.

Comunidades tradicionais da Amazônia sonham com o ensino superior desde a infância, mesmo sabendo dos obstáculos que serão enfrentados. Foto: Wenderson Mac Dovel /Reprodução.

Meu pai fez 81 anos. Ele nunca teve oportunidade de estudar. Mas me ensinou com a vida: a ouvir o silêncio, a respeitar o tempo, a ser forte mesmo nos dias difíceis. Hoje ele torce para que eu me torne médico e vá mais longe do que ele pôde ir. Esse sonho é meu e também é dele. A sua raiz me sustenta. Prometo que vou cuidar das pessoas do mesmo jeito que ele cuidou da gente”.

As palavras de Janilson Silva dos Anjos, 28 anos, estão presentes em um vídeo publicado no seu perfil nas redes sociais. O jovem pertence ao povo Sateré-Mawé, em Boa Vista dos Ramos-AM, “onde o sol nasce sobre a floresta e a vida pulsa com simplicidade”, como ele descreve. 

Janilson é filho de agricultores indígenas e sempre estudou em escola pública. Após muita dedicação, foi aprovado em 1º lugar no curso de Medicina da Universidade Federal do Pará (UFPA), no campus de Altamira, a 530 quilômetros de Belém-PA. 

A decisão pela Medicina veio quando viu um tio lutar contra o câncer e uma irmã lidar com uma doença rara no sangue. O tio, já falecido, esbarrou na dificuldade de acesso a cuidados médicos na comunidade quando respirar e se alimentar ficavam mais e mais impossíveis: com pouco mais de 20 mil habitantes, Boa Vista dos Ramos fica distante mais de um dia inteiro de barco de Manaus-AM, a capital mais próxima. 

A dor e as lágrimas da família se converteram em empenho para Janilson, que deseja cuidar das pessoas de sua comunidade. Acordando às 5h da manhã e mergulhando até 8 horas diárias nos livros, com pausa apenas para almoçar, o jovem lidou com desânimo e a ansiedade e viu conhecidos duvidarem de que conseguiria. Usou livros emprestados e assistiu aulas online quando tinha dinheiro para recarregar o celular.

Janilson e seus pais. Foto: Acervo Pessoal.

Janilson e seus pais. Foto: Acervo Pessoal.

Se dedicou com afinco até que, após seis tentativas, atingiu o seu primeiro objetivo: a aprovação no vestibular, que aconteceu no ano de 2025.

Para ingressar no curso agora em setembro, a família e os amigos sugeriram que ele fizesse uma vaquinha para bancar as primeiras despesas em Altamira, onde o curso será em tempo integral. 

Mas o valor precisou ser revertido para o tratamento do irmão, que machucou a perna em um acidente de moto. O rapaz ainda concluiu que seus pais (o pai de 81 anos e a mãe de 73) precisam dos seus cuidados (sua mãe é diabética) e devem se mudar junto com ele para o novo endereço.

Por isso, em maio deste ano, Janilson gravou vídeos e enviou sua história para diversos perfis pedindo ajuda para a criação de uma vaquinha para custear seu deslocamento, moradia, alimentação e materiais acadêmicos. Se não conseguisse, ele precisaria desistir da matrícula, pois a aprovação em bolsas da Universidade levaria um tempo.

O valor inicialmente pedido foi R$20 mil. Não foi fácil obtê-lo: Janilson lidou com críticas, como a de pessoas perguntando por que a Fundação Nacional do Índio (Funai) não lhe paga uma mesada, e até com um perfil fake, que arrecadou R$5 mil em seu lugar. 

“Se essa mesada existe, aqui nunca chegou”, rebateu. “Meu pai tem 81 anos e sempre lutou. Eu também estou lutando, pedindo ajuda. Aqui não tem mesada, aqui tem coragem”, reforça.

Atualmente, a arrecadação ultrapassou os R$50 mil, vindos de 1421 doadores. 

“Deu certo, conseguimos o valor para a nossa mudança para Altamira em setembro! A gente deixou [a vaquinha] aberta para quem ainda quiser doar para as despesas que vamos ter ao longo da graduação”, disse o jovem, que só conhece outros estudantes indígenas em Manaus, normalmente conciliando licenciaturas com empregos.

“É um sonho que se torna realidade, que me permite sonhar com um futuro melhor. Quero ser um profissional dedicado à saúde e cuidado com o próximo, quero fazer a diferença na sociedade”, afirma Janilson.

Mateus Guajajara, de 23 anos, foi um dos que apoiou a campanha de Janilson. Há três anos, ele também tenta uma vaga em Medicina, só que na Universidade Federal do Tocantins (UFT). O campus da capital Palmas é o mais próximo de Grajaú, no Maranhão, onde mora. 

Nascido na comunidade indígena do Bacurizinho, no Maranhão, ele trabalha como atendente em uma pizzaria enquanto faz cursinho. Dedicado, posta com frequência sua rotina de estudos e já é até afiliado de um curso de Matemática

“Medicina é o meu sonho desde a infância. Uma vez fui com a minha mãe em um hospital e me encantei de cara com a profissão. Enquanto não for aprovado, o que me resta é estudar e me dedicar”, conta Mateus, que é incentivado pela família.

Acesso ao ensino superior cresceu a partir de 2007 por meio de cotas, bolsas e abrigos estudantis

A ampliação do acesso à educação superior começou em 2007 no governo Lula (PT) com o Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI). Ele permitiu com que as Universidades públicas pudessem definir o próprio orçamento e firmar parcerias com a iniciativa privada. 

No mesmo ano foi lançado o Plano de Desenvolvimento da Educação, conjunto de metas que englobou o aumento do prazo para pagamento do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), a instituição do ProUni, a expansão dos Institutos Federais e dos cursos à distância, e o aumento de vagas nas Universidades Federais. 

A Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012 (Lei de Cotas), atualizada pela Lei 14.723, de 13 de novembro de 2023, é a principal política de acesso de indígenas, quilombolas e demais pessoas de baixa renda à Educação Superior Pública Federal. 

Além delas, o Ministério da Educação (MEC) ressalta que as universidades federais possuem políticas específicas para o ingresso de estudantes indígenas nos cursos de graduação e de pós-graduação. 

Um exemplo é o da Universidade Federal de Roraima (UFRR): meses antes do vestibular tradicional, a instituição abre o Processo Seletivo Especial Indígena (PSEI) com vagas em todos os cursos (na pós-graduação, são 30 vagas distribuídas em 17 mestrados e doutorados). O candidato pode escolher se candidatar nessa modalidade ou fazer o vestibular em ampla concorrência.

A UFRR conta, ainda, com o Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena, com três graduações específicas: Gestão de Território Indígena, Educação Intercultural e Gestão em Saúde Coletiva Indígena. 

Um sistema semelhante é encontrado em outras universidades pela Amazônia, como a UFAM (no Amazonas), UFPA (no Pará), UFOPA (em Santarém-PA) e UFAC (no Acre). 

O Plano de Desenvolvimento da Educação inclui, também, a Política Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), que foi decretada no dia 19 de julho de 2010 (Decreto nº 7.234) e sancionada em 3 de julho de 2024. Nela, indígenas, quilombolas e demais pessoas de baixa renda podem contar com assistência das Universidades Federais para custear seus estudos. 

A medida joga uma luz especialmente sobre os quilombolas, negligenciados até pelos censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). 

Apenas em 2022 eles apareceram nas estatísticas pela primeira vez : são 1,32 milhões de quilombolas no Brasil, ou 0,65% do total de habitantes. Em 2023, eles foram incluídos na Lei de Cotas (apesar de já haver vagas destinadas a pretos e pardos).

O MEC detalha que o principal auxílio disponível para estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica é a Bolsa Permanência (PBP).

Atualmente, indígenas e quilombolas recebem R$1.400/mês, enquanto os demais estudantes em vulnerabilidade recebem R$700/mês. Tanto a concessão como a gestão do valor são realizadas diretamente pelas universidades por meio de editais. 

“É um sonho que se torna realidade, que me permite sonhar com um futuro melhor. Quero ser um profissional dedicado à saúde e cuidado com o próximo, quero fazer a diferença na sociedade”, afirma Janilson. Foto: Wenderson Mac Dovel/Reprodução.

“É um sonho que se torna realidade, que me permite sonhar com um futuro melhor. Quero ser um profissional dedicado à saúde e cuidado com o próximo, quero fazer a diferença na sociedade”, afirma Janilson. Foto: Wenderson Mac Dovel/Reprodução.

“A partir de 2023, o número de estudantes indígenas e quilombolas no Programa de Bolsa Permanência (PBP) praticamente dobrou, saindo de 8.670 bolsistas em 2022 para 15.826, em 2024. Desses, 9.067 são estudantes indígenas. O valor da bolsa também foi reajustado de R$900 para R$1.400. Em 2025, o programa está com 17.300 bolsas. Até 2026, o governo federal pretende universalizar as bolsas do PBP para estudantes indígenas e quilombolas”, afirma o Ministério em nota enviada para a nossa equipe.

Em complemento à ajuda financeira, algumas universidades federais possuem moradias universitárias, programas de acolhimento e tutoria. 

“Embora a política de assistência estudantil preveja recursos para apoiar a permanência, não há uma exigência legal que obrigue todas IFES a disponibilizarem moradias estudantis em seus campi. Mas muitas desenvolvem ações específicas de apoio pedagógico e cultural voltadas aos estudantes indígenas, com financiamento da Pnaes e recursos institucionais”, pontua o MEC.

Questionada pela reportagem a respeito das suas políticas de acesso, a UFPA, onde Janilson vai estudar, informou que a Pró-Reitoria de Assistência Estudantil (Proaes) falou com ele por telefone no dia 16 de maio para orienta-lo a respeito de seus programas de assistência, bolsas e serviços. 

Todos os outros estudantes de Medicina com dificuldades em relação à moradia estudantil que acionaram a Pró-Reitoria tiveram seus casos analisados. 

Uma das primeiras instituições a adotar a política de cotas no Brasil, a UFPA é a única universidade federal a ter vagas em todos os seus cursos presenciais de graduação destinadas a indígenas e quilombolas. Na pós, 27 programas têm ações afirmativas, nos campi de Belém, Abaetetuba, Castanhal, Cametá e Altamira.

A UFPA ainda implementa ações afirmativas nos Editais de Assistência Estudantil, Bolsas de Iniciação Científica, Extensão e Monitoria.

Por meio do Processo Seletivo Especial para Indígenas e Quilombolas (PSE/IQ) duas vagas para cada grupo são reservadas anualmente em cada curso. Por essa forma, é possível ingressar na graduação comprovando o vínculo étnico e realizando uma entrevista (principalmente para confirmar a vulnerabilidade socioeconômica) e a prova de redação em Língua Portuguesa, sem a necessidade de prova com as matérias do Ensino Médio. 

“Outras iniciativas de destaque incluem o Processo Seletivo Especial para o Curso de Licenciatura em Etnodesenvolvimento, criado em 2010, voltado para indígenas e populações tradicionais, promovendo o acesso à educação superior; o Processo Seletivo Especial para o Curso de Educação do Campo, direcionado para o ingresso de estudantes no curso de Licenciatura em Educação do Campo, ofertado pela Faculdade de Etnodiversidade, do Campus Universitário de Altamira da UFPA, que atende a educadores que atuam em escolas rurais; e o Processo Seletivo Especial para Imigrantes e Refugiados (PSE Migre), lançado em 2021, que atende a imigrantes, refugiados, apátridas e vítimas de tráfico de pessoas em situação de vulnerabilidade”, afirma a instituição em nota para a reportagem.

Os estudantes que precisam mudar de cidade para frequentar as aulas contam com Casas de Estudantes Universitários (CEUs) em Belém, Altamira, Breves, Tucuruí e Cametá. Nos editais de vagas para essas casas, há uma reserva para indígenas, quilombolas, povos tradicionais e outros grupos prioritários. 

A permanência estudantil em outros campi é assegurada pelo Auxílio Moradia e o Auxílio Moradia IQP. Claro, há também os programas já mencionados na matéria, como o Programa de Bolsa Permanência e o Programa de Atendimento Individualizado para PcD. 

Todas essas medidas contribuíram para um salto de 37 indígenas ingressando no ensino superior da instituição para 183 em 2024. Só em 2025, foram 52 aprovados em Direito, 46 em Medicina, 41 em Odontologia e 27 em Pedagogia.

“É importante destacar que a Universidade recebeu, recentemente, um número expressivo de estudantes indígenas calouros, ingressantes pelo Processo Seletivo Especial (PSE). Esses estão em processo de cadastro e análise socioeconômica no Cadastro Geral de Assistência Estudantil (Cadgest) para a concessão de bolsas. Atualmente, a UFPA atende aproximadamente a 72% dos estudantes indígenas matriculados em cursos presenciais de graduação, por meio de auxílios financeiros e serviços ofertados”, aponta a UFPA.

José Luís só entrou na escola aos 11 anos, quando ganhou sua primeira cadeira de rodas. Foto: Acervo Pessoal.

José Luís só entrou na escola aos 11 anos, quando ganhou sua primeira cadeira de rodas. Foto: Acervo Pessoal.

“Eram cinco conduções por dia”: cadeirante e morador de assentamento, José Luís se matriculou na escola aos 11 anos, mas chegou até a UFMA

Ainda aos 2 anos, José Luís Costa, que hoje tem 49 anos, teve poliomielite e ficou paraplégico. O menino, que já andava, de repente teve que se arrastar pelo chão para se locomover (“meus pés são até grossos!”, frisa). Essa não seria sua única dificuldade: morador do município de Açailândia, no Maranhão, ele só entrou na escola aos 11 anos, quando ganhou sua primeira cadeira de rodas. 

Entrou alfabetizado, pelo menos: seus irmãos o colocavam em uma cadeira de macarrão e o suspendiam, tal qual em uma maca, carregando José até a escola onde sua prima e vizinha ensinava português, a 40 metros de sua casa. O pai, semianalfabeto, lhe ensinou a somar e a multiplicar, as únicas operações que sabia. 

José Luís fez um tratamento em São Paulo, capital, para adquirir mais autonomia motora, e frequentou um seminário em Ananindeua, no Pará, considerando se tornar padre. 

Foi ali, no final dos anos 1990, que conheceu militantes do Movimento Sem Terra (MST) que acampavam em Açailândia e se engajou na causa. Pouco tempo depois, seus pais acamparam no atual Assentamento Califórnia, fundado em 1996, a 14 km de Açailândia. É onde ele e seus parentes vivem até hoje, junto com outras 249 famílias. 

O rapaz não tinha perspectivas profissionais. Pensava que iria só morar com os pais, apesar de gostar muito de ler. Até que um amigo, que também era morador do assentamento e terminava a graduação em Biologia na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) em Imperatriz-MA, lhe disse: “Tu poderias cursar a Universidade. Vai ter um vestibular aqui para Comunicação”.

Faltavam pouquíssimos meses para o vestibular da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). O campus mais próximo ficava em Imperatriz, a 71km do Califórnia e 1h30 de ônibus. “Da minha casa é um pouco mais perto, 52km, porque moro na beira da BR”, completa. Era o final do ano de 2006 e a inscrição ainda era feita por correio. 

José Luís arriscou. Organizou um cronograma de estudos, conseguiu livros emprestados, recebeu ajuda de amigos para pagar os custos do envio dos seus documentos. Foi até Imperatriz no último dia de inscrição (um sábado), e quando chegou na farmácia credenciada para o envio do envelope, descobriu que ainda faltavam 50 centavos para completar a taxa.

“Eu estava na Praça de Fátima e um casal de outro assentamento, que me conhecia, me viu lá. Contei minha história e eles pagaram o que faltava”, lembra. 

Foi aprovado de primeira no curso de Jornalismo. José Luís facilitou a própria vida: fez o mínimo de disciplinas possíveis por semestre, ainda que isso significasse que ele levaria mais dois anos para se formar. Assim, não precisou se mudar para a cidade vizinha.

Mesmo assim, foi cansativo: ele pegava três conduções para ir e duas para voltar. Dentro da cidade, a sua gratuidade como deficiente físico era garantida no ônibus. 

Mas na estrada, tinha que argumentar diariamente com os donos de van, irregulares, que ele tem esse direito. “Quando morei em São Paulo, voltei com outra visão sobre isso após ter convivido com pessoas com vários tipos de deficiência”, menciona.

Para entrar tanto no ônibus quanto na van, ele contou com a ajuda de vários colegas. Geralmente os veículos não eram adaptados para receber cadeirantes. “Às vezes, eu perdia o ônibus”, lembra.

Mesmo assim, não pensou em desistir. Pelo contrário: era engajado no movimento estudantil da UFMA e participou de greves, lutando pelos direitos da classe e por melhorias, inclusive na acessibilidade do campus. 

José Luís na sua formatura em Comunicação Social - Jornalismo. Foto: Acervo Pessoal.

José Luís na sua formatura em Comunicação Social – Jornalismo. Foto: Acervo Pessoal.

Aproximadamente dois anos após o ingresso de José Luiz no Ensino Superior, o curso de Comunicação Social da UFMA/Imperatriz ganhou um prédio com elevador e banheiros adaptados. 

Somente quando chegou a hora de estagiar, pela manhã, que ficou complicado. “Era um horário totalmente inadequado para mim, mas o estágio era obrigatório ou eu jubilaria”, cita. 

Por sorte, ele conheceu um estudante de Direito em uma faculdade particular em Imperatriz que estudava pela manhã e morava em Açailândia. 

Ele lhe dava carona, de carro, todas as manhãs, exceto às quintas-feiras. Era quando José dormia na casa de um amigo na cidade na quarta-feira e ia para o estágio, a 300 metros da casa dele. “Esse meu amigo me ajudava com as minhas dificuldades, como usar o banheiro”, conta.

Ao mesmo tempo, ele ainda escrevia o seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), um livro-reportagem sobre o assentamento Vila Conceição II, o primeiro do MST na Região Tocantina. Foram quase dois anos entre pesquisa e redação, que ele conciliou com o estágio e as aulas vespertinas. 

“Esse assentamento é fora da minha rota, então eu tinha que ficar por lá às vezes para acompanhar a rotina dos moradores e fazer as entrevistas. Alguns também não queriam entrar no assunto devido à origem do assentamento ter sido com conflitos agrários, pelo menos 10 anos antes da origem do Califórnia”, explica.

José conseguiu. Formado há mais de 10 anos, ele não se valeu dos auxílios do MEC, mas desde a graduação contou com o Benefício de Prestação Continuada (BPC), para idosos e deficientes com renda familiar de até meio salário mínimo por pessoa (era um quarto de salário mínimo até 2022). 

“[O BPC] me ajudou muito, porque meus pais eram aposentados e eu e meus irmãos sustentamos a casa. Ano passado, meu pai, que já tinha 91 anos, faleceu”, comenta.

Atualmente, o jornalista complementa a renda com freelas na área e possui um blog onde debate questões políticas e sociais. 

Daniel aprendeu a andar de ônibus e encontrar os lugares, se manteve com a ajuda dos irmãos e da Bolsa Permanência, lidou com o preconceito velado dos não indígenas. Foto: Acervo pessoal.

Daniel aprendeu a andar de ônibus e encontrar os lugares, se manteve com a ajuda dos irmãos e da Bolsa Permanência, lidou com o preconceito velado dos não indígenas. Foto: Acervo pessoal.

Concursado e ex-bolsista, o indígena Daniel Barroso deve à família e aos professores a vida melhor proporcionada pelos estudos

Sempre que Daniel Barroso Januário, 31 anos, visita os pais na comunidade Araçá, no município de Amajari (a 156 km da capital de Roraima, Boa Vista), é recebido com admiração.

A sua trajetória é diferente das de muitos de seus amigos e parentes da comunidade.

Daniel nasceu em Boa Vista, irmão de 7 homens e 2 mulheres. Morou na Serra da Moça (a 50 km da capital e onde seu pai nasceu), mas quatro anos depois a família se mudou para a comunidade do Araçá, que concentra integrantes das etnias Macuxi, Wapichana e Taurepang (a etnia de sua mãe). Apenas dois irmãos de Daniel continuaram em Boa Vista para trabalhar.

Na infância dos anos 90, a comunidade ainda não tinha água encanada, luz elétrica, e poucos tinham carro ou moto. Um motor fornecia luz até às 23h, todos os dias. A casa da família era de barro e taipa, com telhado de palha.

Seu pai criou uma roça para produzir limão, melancia, banana, manga, côco, tomate e outras frutas, que vendia em feiras na cidade, na Serra da Moça e na beira da RR 203.

O lugar mais próximo desses é acessado por uma estrada de piçarra de 12km que depois entra em outra comunidade, a da Mangueira, essa sim com acesso à Rodovia.

O garoto ajudava. Somente aos 7 anos de idade, foi para a escola pela primeira vez, dentro da comunidade Araçá. “Naquela época não existia educação infantil nas escolas indígenas”, lembra.

Até que em 2000, quando estava na 3ª série, o pai adoeceu: estava com leishmaniose visceral, conhecida como doença de Calazar.

A família acompanhou Zildo no tratamento na Casa de Cura em Boa Vista, especializada em cuidados com indígenas.

Daniel seria o único a não voltar para o Amajari após a melhora do pai: ele ficou na comunidade Morcego, também próximo de Boa Vista, onde vivia sua irmã professora, uma vez que ela ainda não havia se casado.

Tomou gosto pelo estudo, graças ao incentivo da irmã  —  “o que não acontecia em Amajari, porque minha mãe não era muito de estudar”, pontua.

Como essa escola só ia até a 4ª série, ele voltou para o Araçá para cursar os Ensinos Fundamental II e Médio.

Quando chegou o vestibular, não se entusiasmou com a principal perspectiva entre os colegas (ser professor) e tampouco tinha como pagar a inscrição.

Voltou a trabalhar com o pai. Assim, se passaram dois anos após a conclusão da escola, até que o patriarca lhe disse:

“Daniel, se você continuar aqui, vai fazer as coisas que sempre fez. Você tem que sair para ver como as pessoas trabalham lá fora”.

Com o auxílio da outra irmã, conseguiu um emprego como auxiliar de serviços gerais na Secretaria de Educação de Amajari. Foi lá que soube que o Instituto Federal de Roraima (IFRR) estava com uma turma noturna de Técnico Agrícola e com um seletivo mais simples do que o vestibular.

“Se eu entrar nesse curso, vou poder ajudar meu pai”, pensou. Foi além: graças ao curso conheceu outros produtores, viajou para eventos, gostou de ser bolsista na iniciação científica. 

Superar o cansaço do serviço foi difícil às vezes. Mas ele foi tão incentivado que passou no vestibular para Agronomia, na UFRR, em Boa Vista.

Na capital morou com uma prima, depois alugou um quarto e enfim morou com a irmã professora, que construiu uma casa para viver com o marido.

Daniel aprendeu a andar de ônibus e encontrar os lugares, se manteve com a ajuda dos irmãos e da Bolsa Permanência, lidou com o preconceito velado dos não indígenas (como apelidos e grosserias em estabelecimentos comerciais), estudou para concursos nas horas vagas e fez cursos como Informática Básica.

O indígena acabou não concluindo a graduação  —  não por causa de dificuldade, mas porque em 2015 passou no concurso da Agência de Defesa Agropecuária de Roraima (ADERR) em Bonfim, município na fronteira com a Guiana.

Satisfeito como Técnico em Fiscalização Agropecuária, Daniel sonha em concluir a graduação e comemora o crescimento do primeiro filho com a esposa, que conheceu em Bonfim.

A distância e a rotina não permitem que ele visite Araçá todos os meses. Mas conversa pelo celular com a família, e é afagado pelo orgulho, principalmente do pai.

“Hoje nós que somos indígenas temos uma representatividade maior na sociedade”, afirma.

“Sempre falo que sou indígena e que minha etnia é a Wapichana. Ter estudado, trabalhado na comunidade e ter vencido, hoje ocupando um cargo público e podendo ajudar as pessoas com quem cresci, é gratificante. Dos meus colegas do Ensino Médio, alguns foram para o Exército, outros viraram professores, e outros não continuaram a estudar e moram na comunidade. Então sempre incentivo os mais jovens a fazer um curso, pois com determinação a gente alcança o que quiser” conclui Daniel Barroso.

Texto: Nayra Wladmila
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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