Conto de Sandra Godinho: Até os confins da terra
Conto de Sandra Godinho contrapõe o ciclo natural da decomposição à frieza de garimpeiros que enterram um yanomami sem nome


“Então pega a pá e me ajuda a cavar que a fedentina tá insuportável”. Foto: Canva.
Nunca foi uma questão de como se chegava à terra, mas de como se partia dela.
Éramos nós que fazíamos o trabalho do qual muitos nutriam asco. Não era sujo, como alegavam, mas imprescindível. Aguardávamos a total imobilidade dos movimentos, os últimos estertores, a cessação do sangue e de todo o complexo de imunidade que carregavam em vida para os micróbios poderem atuar, os primeiros a surgir com prerrogativas autônomas.
As bactérias das vísceras entravam logo em ação, formando gases, fazendo as entranhas incharem para decompor o que até então tinha sido vida, um passo por vez. A cada etapa, o odor nauseabundo, exageradamente adocicado, liberado pelo morto, encurtava os limites entre os seres, entre o que é e o que já não é mais, atraindo as moscas varejeiras, as próximas a chegar para o banquete indigesto, fazendo brotar delicadezas que poucos viam, devolvendo o finado ao corpo sólido que sempre o sustentou, a terra.
Assim a sombra da saudade descia, fazendo perder os traços de rispidez de alguém que, em vida, era só rezingues, destratos e descasos. Desse modo, carne e pó se misturavam e o tempo entrava em outro tempo, quando o solo podia conversar em intimidades com aquele que lhe pisou por anos. Perdia-se, do corpo, as palavras frias, a expressão de severidade, as rusgas e as reminiscências ressentidas. Podia mesmo afirmar que era, com nosso auxílio, que um morto ganhava ares de santidade, procedendo à passagem despudorada de um mundo ao outro.
As bactérias sempre foram agentes atuantes, nunca recusavam trabalho ou esforço. Dos intestinos, passavam aos tecidos circundantes, fígado e baço, não tanto pelas enzimas abundantes nestes órgãos, mas porque era preciso devorar de dentro para fora, do âmago para a superfície, das vísceras até a pele para um trabalho bem feito. A pele sempre foi casca, um invólucro banal, já os órgãos eram o cerne, sintetizadores da miséria humana, o amargor de uma existência.
Coração e cérebro forneciam maior quantidade de água para os ovos recém-postos das moscas varejeiras que, em breve, eclodiam em larvas para, em seguida, digerirem pele e veias em ritmo cadenciado, liquefazendo os tecidos que acabavam escapando pelos orifícios do corpo. O finado ia ganhando um tom multicor, a palidez extrema passando ao esverdeado e, em seguida, ao acinzentado, um arco-íris de cores pré-determinadas. Um corpo morto era pleno de vida, inchando, inchando sempre, ganhando volume, com as larvas virando novas moscas, as novas moscas originando novas larvas que atraíam besouros, ácaros, formigas, vespas, aranhas, pássaros e urubus; um trabalho coletivo onde cada espécie visitava e despia o corpo um pouco mais, em verdadeiro processo de purga e despedida até chegar a vez dos animais mais complexos. Não havia hierarquia a ser respeitada. Era o caos. Mas é sempre o caos em terra devassada, não é verdade? Todos querem o melhor naco de carne, o maior pedaço, e ninguém se entende.
***
− Não vai botar fogo no corpo?
− Pra quê?
− É um Yanomami, sabe que eles costumam incinerar o corpo para passar para o mundo dos mortos.
− Tá me achando com cara de despachante, arigó?
− Tô não, senhor. É que …
− Além do mais, fazer fumaça nessa clareira é entregar nossa localização. Tu quer ser preso, por acaso?
− Não, senhor.
− Então pega a pá e me ajuda a cavar que a fedentina tá insuportável. O que importa é que esse aqui não vai mais dar trabalho pra gente. Vamos sair desse buraco com os bolsos cheios de ouro e sem yanomami pra atrapalhar.
− O infeliz deve ter morrido de desnutrição, tão magrinho que faz pena.
− Ou contaminado de mercúrio, ou de malária. Que importância tem isso agora, arigó? Faz logo o que tem de fazer e cala a boca, senão te encho de porrada e você acaba como ele.
***
Era verdade: nunca foi uma questão de como se chegava à terra, mas de como se partia dela.
Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB). Com Orelha lavada, infância roubada (2018), recebeu Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019), e com Verso do reverso (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Seu romance Tocaia do Norte (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Outra obra sua, A morte é a promessa de algum fim, recebeu o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, Memórias de uma mulher morta e A Secura dos ossos.
Montagem de página e acabamento: Alice Palmeira
Revisão: Juliana Carvalho
Direção: Marcos Colón