Fome, justiça ambiental e Amazônia: desafios e contradições à margem da COP30

Artigo aponta o paradoxo da Amazônia ser uma região abundante em alimentos, mas marcada pela fome, exclusão histórica e desigualdade, onde o problema não é produzir, e sim o modelo que distribui

Merenda escolar sendo servida as crianças da Unidade de Educação Infantil Catalina I. Foto: Luis Miranda/Semec.
Merenda escolar sendo servida as crianças da Unidade de Educação Infantil Catalina I. Foto: Luis Miranda/Semec.
Merenda escolar sendo servida as crianças da Unidade de Educação Infantil Catalina I. Foto: Luis Miranda/Semec.

Merenda escolar sendo servida as crianças da Unidade de Educação Infantil Catalina I. Foto: Luis Miranda/Semec.

Quando se fala em meio ambiente, tende-se a associar essa ideia, de maneira imediata, à natureza — à fauna, à flora, aos ecossistemas e biomas, como a floresta Amazônica. Essa associação, no entanto, frequentemente marginaliza o elemento humano e suas dimensões sociais, culturais e econômicas. Sob a perspectiva sociológica, a concepção de meio ambiente desvinculada das relações humanas é insustentável, pois os usos e transformações dos recursos naturais são diretamente determinados pelas ações dos diferentes grupos sociais que, na tentativa de satisfazer suas necessidades, intervêm continuamente na natureza. Nesse sentido, o ambiente natural deve ser compreendido como parte constitutiva das experiências históricas, sociais, culturais e econômicas da humanidade.

Ao longo dos séculos, a inventividade humana e os avanços tecnológicos provocaram um crescimento exponencial na geração de riquezas, baseado, contudo, em um modelo de desenvolvimento econômico sustentado pela exploração intensiva e desregulada dos recursos naturais. Esse modelo acarretou impactos profundos, como o desmatamento acelerado de florestas — a exemplo da Amazônia —, o aumento da emissão de gases de efeito estufa e, por consequência, o agravamento do aquecimento global. Soma-se a isso a concentração fundiária, o aprofundamento das desigualdades sociais e a disseminação de mazelas como a falta de moradia e a fome.

A gravidade dessa realidade tem impulsionado debates em diversas frentes — científica, política, econômica e ambiental —, apontando para a necessidade urgente de um novo modelo de desenvolvimento que articule o crescimento econômico com justiça social e sustentabilidade ambiental. A superação da fome e da pobreza, nesse contexto, exige o reconhecimento de que essas não são consequências da escassez de alimentos em relação ao crescimento populacional, como se acreditava no século XIX. Ao contrário, são efeitos estruturais da concentração de terras, da produção orientada exclusivamente para o lucro e dos próprios avanços tecnológicos que, embora permitam maior produtividade, não asseguram o acesso equitativo aos alimentos. A questão, portanto, não está na produção, mas na má distribuição e nas barreiras de acesso.

A fome e pobreza são consequências dos efeitos estruturais da concentração de terras e da produção orientada exclusivamente para o lucro. Foto: Beyond Fordlândia/Divulgação.

A fome e pobreza são consequências dos efeitos estruturais da concentração de terras e da produção orientada exclusivamente para o lucro. Foto: Beyond Fordlândia/Divulgação.

Nesse panorama, a fome manifesta-se como um dos indícios mais evidentes da incapacidade do sistema capitalista global de responder às desigualdades, mesmo diante de abundância produtiva e dos avanços técnicos. Castillo (2020), no artigo “O silêncio da fome”, aponta que cerca de 8.500 crianças morrem diariamente vítimas desse mal.

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO, 2023) estima que aproximadamente 735 milhões de pessoas enfrentam a fome no mundo, o que corresponde a 9,2% da população global. Esse quadro se agravou com a pandemia da COVID-19 e com as recentes crises geopolíticas, como a guerra na Ucrânia, que afetaram diretamente as cadeias globais de abastecimento. As mudanças climáticas também têm contribuído de forma significativa para a intensificação desse fenômeno.

No Brasil, os dados levantados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN) revelaram uma realidade alarmante: cerca de 33 milhões de brasileiros vivem em situação de insegurança alimentar grave, enquanto outros 54 milhões enfrentam insegurança alimentar moderada ou grave — o que equivale a quase 40% da população nacional com dificuldade de acesso regular a alimentos adequados. A pandemia agravou ainda mais essas desigualdades, aprofundando a crise alimentar no país.

A desigualdade regional agrava o cenário. As regiões Norte e Nordeste apresentam os piores indicadores de fome e insegurança alimentar, especialmente em zonas rurais e áreas periféricas. O Norte, onde se encontra a Amazônia brasileira, apresenta um quadro crítico. Segundo a Rede PENSSAN (2023), mais de 10 milhões de pessoas na Amazônia convivem com a fome. Isso representa aproximadamente 30% da população local. A dificuldade de acesso a alimentos adequados em muitos municípios isolados da região deve-se à fragilidade da infraestrutura, à precariedade logística e à ausência de políticas públicas consistentes. A insegurança alimentar grave atinge especialmente comunidades ribeirinhas, indígenas e povos tradicionais, cuja subsistência é comprometida pela falta de apoio e pela exclusão histórica. 

No estado do Pará, dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2024) evidenciam que quase 10% das famílias ainda vivem em condições de privação alimentar, revelando a persistência de desigualdades estruturais que atravessam a região.

Entrega de merenda escolar para famílias Warao durante a pandemia. Foto: Alessandra Serrão/NID/Comus.

Entrega de merenda escolar para famílias Warao durante a pandemia. Foto: Alessandra Serrão/NID/Comus.

Cabe registrar que, após anos enfrentando as agruras da fome, o Brasil voltou a ser reconhecido pela ONU como um território fora do Mapa da Fome. Essa importante notícia foi anunciada em de julho de 2025. O Mapa da Fome é um instrumento elaborado e implementado pela FAO, agência das Nações Unidas responsável por monitorar questões relacionadas à alimentação e à agricultura, avaliando a qualidade e o acesso dos povos à alimentação. O relatório intitulado O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo 2025, recém-divulgado, foi balizado por dados referentes ao período de 2022 a 2024, indicando que menos de 2,5% da população brasileira encontra-se em risco de subalimentação.

No caso do Pará, o documento evidencia uma redução de 85% no número de famílias em situação de subnutrição ou de ausência de alimentação suficiente. Em termos concretos, cerca de 400 mil famílias — aproximadamente 2,2 milhões de paraenses — passaram a ter acesso a, pelo menos, três refeições diárias. Importa recordar, contudo, que o Brasil já havia saído do Mapa da Fome em 2014, sendo novamente incluído pela ONU após análises dos dados relativos ao período de 2018 a 2020, quando constatou-se o avanço da insegurança alimentar no país.

Ainda assim, mesmo fora do Mapa da Fome, milhões de brasileiros continuam ameaçados pela insegurança alimentar. São mais de 30 milhões de pessoas que convivem com a incerteza do que comer no dia seguinte, com a necessidade de reduzir a qualidade ou a quantidade dos alimentos, ou, em casos extremos, com a ausência total de comida. 

Ou seja,  a fome permanece como um desafio central, sobretudo na Amazônia. Nesse contexto, as críticas da filósofa Vandana Shiva (2020) ganham atualidade. Para a autora, a escassez de alimentos no mundo não é resultado da insuficiência produtiva, mas consequência de uma lógica consumista e mercantil que transforma os alimentos em mercadorias controladas por grandes corporações. A superação dessas mazelas, segundo Shiva, exige a democratização do acesso aos recursos naturais e o abandono de uma racionalidade capitalista predatória, em favor de uma economia baseada na justiça ambiental, na sustentabilidade e na paz.

Mesmo fora do Mapa da Fome, milhões de brasileiros continuam ameaçados pela insegurança alimentar. Foto: Condisi-YY/Divulgação.

Mesmo fora do Mapa da Fome, milhões de brasileiros continuam ameaçados pela insegurança alimentar. Foto: Condisi-YY/Divulgação.

É importante destacar que a preocupação com os impactos ambientais e suas intersecções com a justiça social não é recente. Desde o relatório “Os limites do crescimento“, publicado em 1972 pelo Clube de Roma, já se alertava para os riscos de colapso ambiental decorrentes do modelo vigente de crescimento econômico. A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992 (a ECO-92), consolidou essa agenda ao reconhecer, entre outras questões, a responsabilidade histórica dos países desenvolvidos pelos danos ambientais e a necessidade de apoio internacional para que países em desenvolvimento pudessem adotar caminhos sustentáveis.

Dessa conferência derivaram tratados como a Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, que teve desdobramentos importantes, como o Protocolo de Kyoto (1997) e, mais recentemente, o Acordo de Paris (2015), firmado durante a 21ª Conferência das Partes (COP21). Esse acordo estabeleceu metas ambiciosas, como limitar o aumento da temperatura média global a no máximo 2 °C — idealmente 1,5 °C — e viabilizar o apoio financeiro dos países ricos aos mais pobres para enfrentarem os efeitos das mudanças climáticas.

Para monitorar e implementar tais compromissos, os 193 Estados-membros da ONU firmaram, em 2015, a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Ela é composta por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas integradas. Esses objetivos articulam as dimensões social, ambiental e econômica do desenvolvimento, Reforçam, assim, que pobreza, fome, desigualdade e degradação ambiental são problemas interdependentes. O ODS 1 (erradicação da pobreza) e o ODS 13 (ação contra as mudanças climáticas) exemplificam essa abordagem integrada e transformadora.

A ideia de justiça ambiental se fundamenta na crítica à perspectiva utilitarista dominante, que promove a modernização ecológica do capitalismo sem enfrentar as raízes das desigualdades sociais. Defender a justiça ambiental, nesse sentido, é defender uma reorganização das condições materiais da vida social baseada em direitos, que una justiça social à preservação do ambiente. Tal ideia tem sido mobilizada por diversas lutas populares que entendem o ambiente não como objeto de mercado, mas como espaço de construção coletiva de dignidade.

No entanto, mesmo com avanços importantes no campo da governança ambiental global, o Brasil tem enfrentado retrocessos significativos. É o que ficou evidente na reunião ministerial de 22 de abril de 2020, na qual o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu “passar a boiada” — ou seja, aproveitar o foco da imprensa na pandemia para flexibilizar regras de proteção ambiental. Os efeitos dessas políticas são sentidos cotidianamente nas periferias urbanas, que sofrem com enchentes, e nas populações tradicionais, que resistem à grilagem, ao avanço do agronegócio e à omissão do Estado.

A Amazônia, com sua imensa biodiversidade, oferece um retrato emblemático dessas contradições. Apesar de ser uma das maiores produtoras de alimentos como a mandioca e o açaí, cultivos fundamentais para a alimentação local, a fome ainda assola milhões de pessoas na região. Esse paradoxo remete à crítica de Vandana Shiva à “monocultura da mente”: uma racionalidade produtivista que concentra poder, lucros e terras, ao passo que exclui as populações tradicionais dos benefícios da própria produção que realizam. A alta produtividade de alimentos não garante acesso universal a eles, pois o modelo dominante privilegia a exportação e a concentração de renda.

A agricultura familiar, responsável por grande parte da produção regional. Foto: Oswald Forte/Amazônia Latitude.

A agricultura familiar, responsável por grande parte da produção regional. Foto: Oswald Forte/Amazônia Latitude.

A agricultura familiar, responsável por grande parte da produção regional, não recebe o apoio necessário para assegurar soberania alimentar. Ao contrário, vê-se ameaçada pela expansão de monoculturas de larga escala, como a soja e o gado, voltadas para o mercado global. Esse modelo agroindustrial intensifica a desigualdade, desestrutura os modos de vida tradicionais e agrava a insegurança alimentar.

A solução, como propõe Shiva, não reside apenas em aumentar a produção, mas em fortalecer os sistemas alimentares baseados na diversidade, na autossuficiência local e no resgate dos saberes tradicionais. A Amazônia poderia ser um exemplo de autonomia alimentar e de equilíbrio entre produção e justiça social, desde que as políticas públicas priorizassem a redistribuição de recursos, o fortalecimento das comunidades e o reconhecimento da alimentação como um direito — e não como uma mercadoria.

A COP30, que será sediada em Belém, representa uma oportunidade histórica para que o Brasil reafirme seu compromisso com a justiça climática, com a soberania alimentar e com a Amazônia viva. Que esse evento internacional não se limite à reestruturação física da cidade das mangueiras, mas deixe como legado transformações substantivas na forma como produzimos, consumimos e nos relacionamos com o planeta e com os outros. Afinal, enfrentar a fome é também enfrentar o modelo que a produz.

Este conteúdo faz parte da chamada pública Pensando a Amazônia pela Gastronomia, da Revista Amazônia Latitude. Se você é cozinheiro, pesquisador, jornalista, artista, crítico, ativista, chef, agente comunitário ou alguém que estuda e vive a cultura alimentar amazônica, pode enviar textos, fotos, vídeos ou outras expressões até 30 de agosto para amazonialatitude@gmail.com. As publicações serão feitas de forma contínua ao longo de 2025. Consulte o regulamento completo aqui.

Referências

Miguel Picanço é pós-doutor em Antropologia da Alimentação na Universidad de Barcelona e doutor em Ciências Sociais pelo Programa de PósGraduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/UNISINOS. Autor dos livros “Na roça, na mesa, na vida: uma viagem pela trajetória da mandioca, no e além do nordeste paraense” (2018) , “Comida Cabocla: uma questão de identidade na Amazônia; desde uma perspectiva fotoetnográfica” (2021) e “A Vida Social da Mandiocaba: um ingrediente Amazônico” (2021), é professor efetivo da Seduc e da Semec, pesquisador em Antropologia da Alimentação e membro da Associação Brasileira de Antropologia.

Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

Você pode gostar...

Translate »