Cabanagem ecoa em Belém diante da COP30
Artigo investiga como a COP 30 em Belém reforça lógicas coloniais de exclusão e mobiliza resistências inspiradas na memória da Cabanagem

Memorial da Cabanagem em Belém. Foto: Pedro Guerreiro/Ag. Pará
Belém, capital do estado do Pará, ganha destaque no cenário político internacional em 2025 por sediar a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30). Em preparação para receber um dos eventos mais importantes no debate ambiental, a cidade passa por um processo acelerado de reconfiguração urbana, marcado por intervenções que, longe de promoverem integração de diferentes agentes sociais, tendem a reforçar lógicas históricas de exclusão social e destruição das formas de vida locais.
A escolha de Belém como sede do evento é justificada por seu lugar estratégico na Amazônia, região vista como central para os debates climáticos contemporâneos. No entanto, os processos em curso na cidade produzem e reproduzem dinâmicas que alimentam a crise ambiental ao ignorar que esta – como argumenta Cardoso (2021) – se constitui sobre o processo histórico de exclusão social, racial e territorial.
Sob o discurso de sustentabilidade, oculta-se uma agenda orientada por soluções tecnocráticas e exógenas, produzidas fora do território e desconectadas das realidades locais. Tais soluções não apenas ignoram os saberes e geotecnologias territoriais construídas pelos povos amazônicos, como beneficiam o interesse de grupos ligados ao agronegócio e ao mercado imobiliário.
Nesse sentido, este trabalho busca mapear os efeitos excludentes e destrutivos dos projetos e das transformações urbanas impulsionadas pela COP30, analisando como essas mudanças estão ligadas a imaginários hegemônicos sobre a Amazônia — imaginários que, ancorados na modernidade/colonialidade1Colonialidade se trata de um conceito formulado por Aníbal Quijano que o definiu como um padrão de poder racial fundado e perpetuado pelo colonialismo., produzem territórios de exceção e reforçam a invisibilização dos povos que constroem cotidianamente a cidade.
Ao tensionar essas visões de cidade e modelos hegemônicos de desenvolvimento, propomos uma análise que também destaca as tecnologias territoriais ancestrais mobilizadas pelos sujeitos populares da Amazônia como formas de resistência secular. A partir da memória da Cabanagem, compreendida aqui como um conjunto de saberes, tecnologias e cosmovisões sociopolíticas insurgentes, articulamos os conceitos de territorialização de exceção (Malheiro, 2020), colonialismo climático (Weizman, 2015), ritmos insurgentes (Tran e Yip, 2020) e trama dos povos (Cardoso, 2021), para pensar a cidade não apenas como objeto de disputa, mas como território vivo de resistência.

Discutir modelos de urbanização adaptados para cada realidade, ao invés de considerar que bairros como o Guamá e o Reduto, em Belém, são iguais, é algo que o Estado deve aprender com o conhecimento de quem há séculos cultiva a terra. Foto: Reprodução/Redes Sociais.
COP30 e a Amazônia como território de exceção: imaginário colonial, segurança nacional e apagamento dos povos
No imaginário nacional e internacional, a Amazônia é representada pela exuberância de seu verde – espaço de abundantes recursos naturais, e ao mesmo tempo marcado por um profundo atraso civilizatório ou até mesmo vazio demográfico. Enraizada no imaginário colonial, essa visão serviu, e ainda serve, como justificativa para instauração de grandes projetos exploratórios na região. Dentro desse discurso – ancorado em fundamentos raciais – seus habitantes foram sistematicamente colocados como obstáculos ao projeto civilizatório colonial de uma natureza tida como selvagem, hostil e atrasada. Nessa perspectiva, como explica Godin (1994): “Os nativos são os agentes que desarmonizam a ordem social instalada pelo branco” (p. 133).
Mais do que empecilhos para o progresso, esse discurso constrói o território amazônico e suas populações originárias como ameaças à segurança nacional. Nesse sentido, diz Malheiro (2020): “A Amazônia […] torna-se definitivamente um risco, não apenas por representar a exterioridade irracional da natureza, mas também a inferioridade abissal de suas populações” (p. 85). O enquadramento discursivo da região como um espaço vazio, incivilizado e perigoso, explica Malheiro (2020), estrutura a região como um território de exceção, no qual o Estado opera segundo lógicas de suspensão de direitos e, assim, a violência é legitimada em nome do avanço civilizacional. Desse modo, explica ele:
Diante da imagem projetada, ações enérgicas de ocupar, conquistar e desenvolver se tornam necessárias, como uma guerra pela paz para desarmar os espíritos. A guerra não é só uma metáfora, é a expressão clara de um lugar indistinto, na qual tudo pode ocorrer para se chegar ao sentido de desenvolvimento inventado. A política como guerra é a determinação de que se pode suspender as leis em nome da lei, é o passaporte para uma esfera de indeterminação política” (Malheiro, 2020, p. 87).
Como sustentamos até aqui, amparados em Malheiro (2020), esse imaginário, longe de estar superado, fundamenta os grandes projetos desenvolvimentistas voltados para Amazônia. No caso específico de Belém, a preparação para a COP30 remobiliza essa lógica de exceção, reordenando a cidade sob o discurso de uma cidade verde e sustentável – contudo, construída sem a participação e integração das populações locais, e mesmo em detrimento de seus direitos. O evento da COP30, e a própria crise climática, tornam-se assim motes atualizadores de velhas práticas coloniais, agora travestidas de verde.
A mobilização do conceito de “colonialismo climático”, ou “colonialismo verde” desenvolvido por Weizman (2015) torna-se, aqui, fundamental para compreender as reatualizações das lógicas coloniais de exceção que se operam na preparação de Belém para a COP30. Para o autor, “a atual aceleração das mudanças climáticas não é apenas uma consequência não intencional da industrialização. O clima sempre foi um projeto para as potências coloniais, que agiram continuamente para manipulá-lo” (Weizman, 2015, p. 10)2“A atual aceleração da mudança climática não é apenas uma consequência não intencional da industrialização. O clima sempre foi um projeto para as potências coloniais, que agiram continuamente para engenheirá-lo” (Weizman, 2015, p. 10)..
A partir dessa perspectiva, Weizman mostra como as crises e projetos ambientais podem ser utilizados como ferramentas de controle político, territorial e populacional. Assim como das intervenções ambientais realizadas no deserto de Neveg, analisadas pelo autor, as obras em curso para a COP30 produzem o reordenamento do espaço urbano através da gentrificação, remoção e da criação de “zonas de sacrifício”.
Um exemplo dessa lógica pode ser observado no desvio de esgoto sanitário, promovido por obras do evento, para áreas periféricas da cidade. Essa prática não apenas evidencia a desigualdade socioambiental, mas também a operação seletiva e racializada do discurso verde: enquanto as áreas centrais são embelezadas para se tornarem vitrines da sustentabilidade, as periferias são transformadas em depósitos de rejeitos.
Em reportagem investigativa publicada no portal O Joio e o Trigo, Brenda Taketa (2025) fundamenta essa crítica ao mostrar como as intervenções realizadas em Belém para a COP30 beneficiam interesses privados, fomentando a especulação imobiliária e agravando o racismo ambiental.
Dentre as situações abordadas, Taketa (2025) mostra os impactos da revitalização da Avenida Doca de Souza Franco (área nobre da cidade de Belém), onde os canais a céu aberto, anteriormente usados como esgoto, passaram por reformas de revitalização que resultaram no despejo de lodo e rejeitos em bairros periféricos. O projeto “Nova Doca”, como explica a reportagem, envolve a criação da Estação de Elevação de Esgoto do Bairro do Umarizal. A proposta prevê a transformação das áreas periféricas como destino permanente para o escoamento de dejetos sanitários da área nobre da cidade, sem qualquer diálogo com as comunidades afetadas, tampouco realização de estudos prévios de impacto ambiental. A matéria traz a fala emblemática da moradora de um dos bairros afetados, Suane Barreirinhas, que denuncia:
A gente está aqui por um motivo comum que é essa obra que vai chegar aqui, essa Estação de Esgoto, que não é nosso [da Vila da Barca ou do bairro do Telégrafo], vai ser da Doca, ou seja, a gente vai receber o cocô da Doca e é importante que a gente tenha isso em mente” (Taketa, 2025).

Construção da Av. Liberdade, em Belém. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.
Taketa (2025) expõe, ainda, o projeto da Avenida Liberdade, obra executada pelo governo do estado do Pará que, embora apresentada como solução para os problemas de mobilidade urbana em Belém e sua região metropolitana, atravessa uma Área de Proteção Ambiental (APA), provocando impactos ambientais nefastos e irreversíveis, e afetando diretamente comunidades tradicionais, entre elas quilombolas e indígenas. A reportagem evidencia que, para além da retórica oficial de melhoria urbana midiatizada pelo governo, o projeto favorece especialmente os interesses de grandes produtores agroindustriais, abrindo caminhos para exploração e expropriação econômica dos territórios.
Além disso, as propostas priorizadas pelo governo federal no âmbito da COP30 para o enfrentamento da crise climática evidenciam uma articulação direta com os interesses do mercado financeiro global, que orienta a definição das pautas emergenciais do evento. A atuação de setores políticos e empresariais em torno da consolidação de um mercado de créditos de carbono no espaço dos debates globais oferecido pela COP30, revela o caráter instrumental e economicamente orientado da Conferência, na qual a crise ambiental é tratada como oportunidade de negócio, havendo, assim, uma financeirização da crise. O clima, portanto, lembrando Weizman (2015), vira uma ferramenta de dominação que, enquanto evoca a sustentabilidade, reforça lógicas de controle estatal e militarização do território.
Esses exemplos demonstram que, sob o pretexto de sustentabilidade, a COP30 viabiliza antigas dinâmicas coloniais. A lógica de exceção histórica na Amazônia se atualiza no discurso ambiental: se antes a justificativa para a intervenção e a dominação territorial era a “civilização”, hoje ela assume a linguagem da “necessidade ecológica”. Em ambos os casos, trata-se de discursos que legitimam a expropriação de territórios e a perpetuação de processos de genocídio contra seus povos.
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Ritmos insurgentes e a trama dos povos na cidade amazônica
Se a COP30 representa a reatualização de lógicas de exceção – dessa vez sob o verniz da sustentabilidade –, é preciso também observar os sujeitos que, historicamente, resistem a essas imposições. É necessário, desse modo, romper com a lógica da invisibilização para reconhecer e analisar que a cidade não é feita apenas de intervenções hegemônicas e projetos exógenos engendrados pelo capitalismo. Nos territórios populares de Belém, práticas cotidianas e memórias insurgentes produzem ritmos que desafiam o tempo acelerado do capital e do Estado, mantendo viva a possibilidade de outras formas de viver, habitar e mesmo construir a cidade.
O conceito de ritmos insurgentes, desenvolvido por Tran e Yip (2020) com base nas teorizações de Lefebvre, oferece um instrumento analítico interessante para pensar as práticas, saberes e memórias que resistem em Belém frente ao modelo de urbanização moderno que se intensifica e tenta se consolidar na preparação da COP30. Convergente à perspectiva defendida aqui, os autores argumentam que a ordenação dos espaços urbanos se constitui como prática estatal de gestão social que busca impor uma temporalidade única e homogênea. Em contrapartida, formas de vida e relações que não cabem nesse modelo, estão em constante conflito com ele, produzindo uma dinâmica muito mais complexa do tempo-espaço, que os autores denominam de “cidade polirrítmica”.
Desse modo, para Tran e Yip (2020), a cidade também é composta por uma tessitura de ritmos não hegemônicos, que conectam diferentes temporalidades e espacialidades. Tal perspectiva permite transpor um exercício crítico de pensar a Amazônia para além da imagem predominante de exuberância de suas florestas, frequentemente apresentada de forma desvinculada da presença histórica e ativa dos povos que a constroem e sustentam. A partir disso, colocam-se as perguntas: quem são os agentes sociais não hegemônicos que constroem o espaço urbano da Amazônia paraense? E quais tecnologias de tempo, espaço e memória são mobilizadas por esses sujeitos na construção de seus territórios?
A ideia de uma ordem complexa de tempos e espacialidades que se conectam, proposta por Tran e Yip (2020), dialoga muito bem com a noção de “trama dos povos” desenvolvida por Ana Cláudia Duarte Cardoso (2021), para quem os territórios amazônicos se produzem como trama viva e articulada por diferentes práticas comunitárias. Nessa perspectiva, argumenta a autora, a cidade não pode ser vista como apartada da floresta.
Cardoso (2021) demonstra que os espaços urbanos da Amazônia paraense se estruturam a partir de um repertório socioespacial ancestral e complexo, constituído pela articulação entre cidade, rio, floresta e campo. Nesse contexto, um modelo de urbanização de base modernista/funcionalista – que compreende a cidade como espaço isolado dessas outras dimensões – revela-se não apenas insuficiente, mas também inadequado para compreender as dinâmicas territoriais amazônicas. Por isso, a autora defende que o planejamento urbano na região não pode partir de uma dicotomia campo-cidade, uma vez que essa separação está em contrassenso às territorialidades e espacialidades produzidas localmente.

Os espaços urbanos da Amazônia paraense se estruturam a partir de um repertório socioespacial ancestral e complexo, constituído pela articulação entre cidade, rio, floresta e campo. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.
Ela argumenta ainda que o processo de colonização — perpetuado e operado pelo modelo hegemônico de urbanização — não apenas ignora as geotecnologias ancestrais dos povos amazônicos, como também atua diretamente em sua destruição:
A dicotomia urbano-rural ainda sustentada pelos planos diretores e perímetros urbanos favorece a conversão de uso e desestruturação do arranjo espacial nativo. A produção da cidade se tornou um negócio muito lucrativo para os agentes que controlam a terra dentro e fora da cidade (Cardoso, 2021, p. 76)”.
É nesse cenário que insurgem iniciativas como a COP das Baixadas, organização que articula mais de 20 coletivos e movimentos populares da região. Instigada pela ausência de representatividade efetiva da sociedade civil nas conferências da COP – como relata um de seus idealizadores, Jean Ferreira, para reportagem da Carta Capital –, a proposta busca aproximar os debates climáticos da vida cotidiana das populações periféricas, colocando em evidência suas urgências concretas, como a falta de saneamento básico, o racismo ambiental e a violação de seus territórios.
Como desdobramento direto dessa mobilização, surge a proposta das yellow zones (zonas amarelas), que se contrapõem simbolicamente às green zones e blue zones oficiais da COP30. As yellow zones são espaços auto-organizados por movimentos populares que compõem a COP das baixadas com o objetivo de descentralizar os debates sobre clima. Essas zonas não apenas reivindicam o direito à participação, mas reconfiguram pragmaticamente os termos da discussão climática a partir das realidades concretas dos moradores das baixadas: os efeitos diretos da ausência de políticas públicas, as violências ambientais cotidianas e as formas locais de cuidado com o território.
Ao ocuparem escolas, centros comunitários e espaços culturais com rodas de conversa, oficinas e atividades formativas, as yellow zones encarnam práticas de educação popular e ativismo territorial que reconstroem a cidade desde suas margens. Nesse sentido, operam como dispositivos insurgentes de produção de conhecimento e como contra-espaços que desafiam a lógica oficial, tecnocrática e mercantil da COP30 e de um modelo moderno/excludente de cidade.
É nesse mesmo horizonte de resistência e enraizamento territorial que se inscreve a memória da Cabanagem, que não se limita à lembrança de um evento histórico morto e fixado no passado, mas se atualiza como força viva nas práticas e discursos de movimentos sociais amazônicos, como os que compõem a COP das Baixadas. A Cabanagem, aqui, não é apenas evocada: ela é vivida. Torna-se prática cotidiana e política de afirmação de saberes, tecnologias e formas de existência que produzem a Amazônia como território legítimo dos povos que nela habitam (Ribeiro, 2024).
Contra a imposição de um modelo de cidade moderna/funcional, moldada pelos interesses da COP30 e suas temporalidades aceleradas e mercadológicas, os sujeitos populares da Amazônia insistem em produzir outra Belém — uma cidade ritmada por práticas ancestrais, insurgências cotidianas e memórias cabanas que se recusam a desaparecer. Como horizonte sociopolítico e territorial, a Cabanagem reafirma: não há Amazônia sem os amazônidas.
Referências
Cariña Ribeiro é doutoranda em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Integração Contemporânea da América Latina pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Sua pesquisa atual investiga a memória popular da Cabanagem e sua mobilização por movimentos sociais amazônicos na disputa por território e identidade.
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón
