Jotabê Medeiros

Escritor e repórter, trabalhou como jornalista na Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, Veja SP e CartaCapital. Participou de diversas coletâneas e publicou vários livros, entre eles, Raul Seixas – Não diga que a canção está perdida (2019), finalista do Prêmio Jabuti.

 

Utopia Amazônica pode ser chance única da humanidade

Volume de ensaios e artigos recém-lançado pela Ateliê Editorial busca projetar um futuro possível para o equilíbrio do meio ambiente na região, crucial para a sobrevivência do planeta

Marcos Colón e seu livro "Utopias Amazônicas". Foto: Lela Beltrão/Amazônia Latitude.
Marcos Colón e seu livro "Utopias Amazônicas". Foto: Lela Beltrão/Amazônia Latitude.
Marcos Colón e seu livro "Utopias Amazônicas". Foto: Lela Beltrão/Amazônia Latitude.

Marcos Colón, editor do livro Utopias Amazônicas, durante a apresentação realizada na Livraria da Travessa – Shopping Villa-Lobos,
em São Paulo, com a presença de vários autores da obra. Foto: Lela Breltrão/Amazônia Latitude.

Durante dois anos, juntando artigos exclusivos de 18 estudiosos da questão amazônica, experts de meio ambiente, filosofia, sociologia, antropologia e cinema (oriundos de países como Equador, Peru Venezuela e Brasil), começou a ser engendrado um livro singular, Utopias Amazônicas (Ateliê Editorial, 2025, 333 páginas, 136,50), que transcende imensamente a sua circunstância. O período em que foi produzido, sob organização do professor Marcos Colón, coincidiu com o período mais sombrio da democracia brasileira recente, a do governo de Jair Bolsonaro. Ainda assim, seu desafio ia além, era o de postar-se rumo ao futuro e, numa “ecologia de ideias”, chegar a uma projeção que suplantasse a temporalidade e imaginasse um futuro possível para a Amazônia

Evidentemente, tatear a posteridade do Planeta em uma questão tão conflagrada quando o meio ambiente (e em ensaios a léguas de distância da maleabilidade da ficção) poderia se converter em um desafio temerário. O que se pode divisar no horizonte da Amazônia, cuja riqueza ambiental e humana é alvo da cobiça predatória (e renovada) de todos os quadrantes? Com uma bússola interdisciplinar, abordando do cinema às linguagens indígenas, Utopias Amazônicas resultou num admirável esforço de enxergar além e através. Utopia, o conceito criado pelo britânico Thomas More em 1516, se torna objeto de uma atualização teórica profunda nesse livro, uma reorquestração semântica, como salienta seu organizador. “A Amazônia é o avesso da utopia porque sua existência inverte os termos e significados da ideia de utopia”, escreve o professor e geógrafo Bruno Malheiro no volume. Para ele, a própria “existência radical” da Amazônia contraria a ideia utópica já questionada por Foucault e Lefebvre:

A Amazônia, portanto, não se restringe a uma ideia ou a um ideal e nem está num porvir mágico; ela é radicalmente existente, é um lugar realizado pelo seu passado ancestral, pela sabedoria dos seus povos que coevoluíram com ela e lhe forneceram os contornos ecológicos capazes de a colocar no centro do mundo, por regular os principais fluxos metabólicos do planeta”. 

Esse aprofundamento da visão sobre a Amazônia permeia os principais artigos e ensaios do livro, como o do sociólogo alagoano Renan Freitas Pinto. “Um dos aspectos fundamentais das utopias indígenas é que elas construíram a possibilidade de que diferentes tradições míticas, como no caso do território brasileiro, que abriga mais de 305 etnias e 274 línguas indígenas registradas no Censo Demográfico de 2010 do IBGE, possam se expressar juntamente com suas lendas, suas estórias e sua etno-história, proporcionando, assim, um revolucionário desenvolvimento no reconhecimento da cultura desses povos”. 

O escritor e educador paraense João de Jesus Paes Loureiro recorre à literatura para abordar a dimensão cultural da questão amazônida, uma terra em que o homem depende do rio e da floresta para quase tudo. “É necessário atentar-se para o fato de que a contemplação estética e o modo estético de percepção acontecem naturalmente no homem, do camponês ao filósofo, do canoeiro ao crítico de arte”. Em seu artigo, Uma Rapsódia Teórica, o autor de Abaetetuba presenteia com um texto poético inédito, de 2000, como que para orientar o leitor no interior da questão. “Como um parto verbal de cordilheiras/Um poema capaz de comover o coração do mundo”. 

Três entre os autores do livro debruçam-se sobre as narrativas orais da infinidade de culturas da Amazônia, “narrativas míticas que representam o universo poético e simbólico dos povos ameríndios” e que, portanto, constituem-se em “uma das formas essenciais das utopias indígenas”, como assinala Freitas Pinto. O veterano antropólogo peruano Alberto Chirif recorre à obra de Stefano Varese para reimaginar o ideal amazônico. “Sua utopia é uma aposta pela tribo, pela comunidade, em que cada pessoa encontra seu lugar e reconhece a si mesma e aos demais, que deve servir como núcleo de coesão da nação”, ele pontua. “A partir da tribo deve-se construir a unidade na diversidade, e não nessa enganosa homogeneidade que reparte os benefícios da modernidade entre alguns poucos crentes e praticantes”. 

Não é uma coleção de artigos que se distanciam, de forma alienada, das problemáticas mais urgentes e realistas da Amazônia. Pelo contrário: aprofundam-nas. “A Amazônia se mantém como fronteira viva da colonização. Agora, já não é apenas uma terra de expansão para o mercado capitalista tradicional, através da exploração de recursos naturais; é também uma região onde proliferam os mercados fictícios: mercados de carbono ou de patentes”, assinala o economista peruano Alberto Acosta em seu tratado sobre as armadilhas do progresso. Conceitos como bioeconomia são discutidos em suas implicações sociais, como se depreende da abordagem de Nathália Nascimento, Julia Arieira e Carlos A. Nobre. 

Os projetos nacionais engendrados para construir documentos programáticos para a Amazônia também são revisitados. É o caso, por exemplo, do material produzido pela Fundação Perseu Abramo para o Partido dos Trabalhadores entre 1989 e 2022. Quem analisa esses documentos é a cientista social paraense Raimunda Monteiro. “Parte significativa do programa foi executada, mas também ações que contrariam todos os documentos, como a construção de usinas hidrelétricas”, pontua Raimunda. Doutor em geografia humana pela Universidade de São Paulo, o geógrafo Saint Clair Cordeiro da Trindade Júnior parte da literatura produzida sobre a Amazônia, desde Jules Verne e Euclides da Cunha, para analisar como o olhar externo produziu interpretações dominantes e leituras decantadas sobre o espaço amazônico. 

O cineasta amazonense Aurélio Michiles, diretor do premiado O Cineasta da Selva (que trata do pioneiro do cinema Silvino Santos, nascido ainda no século 19), analisa sua própria experiência como intelectual e documentarista em formação no “espelho invertido” que era Manaus, coração da floresta em que cresceu como testemunha de inúmeros saques e pilhagens da verdade e da experiência nativa. 

“A utopia amazônica é a resposta onírica que interfere na realidade e constroi um meio de caminho”, escreve o organizador do volume, Marcos Colón, filho de uma brasileira com um cidadão estadunidense e que milita pela Amazônia quase como num sacerdócio. Professor da Arizona State University, é escritor, poeta, editor, documentarista (dirigiu Muito Além de Fordlândia, em 2018, e o premiado Pisar Suavemente na Terra, em 2022), além de dirigir o site Amazônia Latitude. Publicou, no ano passado, The Amazon in Times of War. Para Colón, a Amazônia é a própria razão da existência, sua e de seu tempo.

"Utopias Amazônicas". Fonte: Marcos Colón, Ateliê Editorial/Denilson Baniwa.

Utopias Amazônicas

Organizador: Marcos Colón

Ano: 2025

Páginas: 336

Idioma: Português

Editora: Ateliê Editorial

Compre aqui.

Texto: Jotabê Medeiros
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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