A essencialidade do humano em Luiz Braga
Exposição de 250 fotos do fotógrafo paraense leva espectadores a um Brasil que não está permeado pelos códigos da acumulação, da ambição e da expropriação


Luiz Braga e suas fotografias. Fotos: Luiz Braga / Redes Sociais. Arte: Isabela Leite.
Não há miséria nas fotos de Luiz Braga. Antes, há fartura. Mas não a opulência típica dos excedentes cumulativos, das riquezas novas e exibicionistas, das supersafras transgênicas, e sim a alegria das frutas de época, do justo alimento, do quiosque de abrigamento, da pausa sagrada, da oferta do produto extenuado e digno do trabalho. Pode parecer pouco, mas é imenso: Luiz Braga vê, e nos leva a ver, um Brasil que não está permeado pelos códigos do êxito de capital, da assimilação da opinião pública, da unanimidade da grande mídia. Ele não folcloriza a privação, apenas ritualiza o afeto das vidas que orbitam em torno da grandeza intrínseca do ser humano.
Fotógrafo extraordinário cuja obra se impõe agora nos fóruns nacionais e internacionais da aceitação pública (foi representante do Brasil na 53ª Bienal de Veneza, em 2009), Luiz Braga é retratado, rapazote ainda, numa fotografia antiga de credenciamento num dos balcões da exposição Arquipélago Imaginário, em curso até 7 de setembro no Instituto Moreira Salles, na Avenida Paulista, mostra que apresenta 250 fotografias do artista paraense realizadas desde os anos 1970. Nesse autorretrato de um quase menino, somos levados a atravessar os últimos 50 anos de um Brasil que principia no orgulho de um garoto orgulhoso de sua câmera Hasselblad onipotente e termina com um artista orgulhoso do Brasil afetuoso que soube capturar.
O que chama a atenção nas fotografias de Luiz Braga, mais até do que sua exuberância de cores e os reflexos do preto & branco, é o protagonismo daquilo que chamamos genericamente de “povo”. Luiz Braga se importa de verdade com seu fotografado. O artista captura emoções: solidariedade, paixão, lealdade, desejo, erotismo, sonhos, fé, cumplicidade, maternalidade, orgulho. E um elemento que perpassa tudo isso, de forma quase natural, é o trabalho. Sacos de cereais, cestos de palha, troncos semi submersos, hélices abandonadas, paredes, pneus velhos, casas com iluminação deficiente, os efeitos dessa iluminação precária nos personagens: os mundos de Luiz Braga parecem depósitos de tempos perdidos, mas em verdade são radiografias de almas. Um pescador puxa uma âncora de barco na água, e sua imagem parece a de um Deus mitológico com seu tridente no mar. Tudo é mitologia: o ambulante, o concièrge do hotel de pernoite, a lavadeira, a família do circo. Nas fotos de Braga, o trabalho é parte do corpo, da existência, e não só da rotina.
O fotógrafo conta que só em 2004, portanto há uns 20 anos, se deu conta do que seu olhar tanto procurou durante sua vida. Nascido em Belém, filho da brasileira de origem libanesa Maria Helena Salameh e de Dorvalino Braga, de ancestralidade indígena, o artista começou a fotografar na virada dos anos 1960 para os 1970, após fazer um curso de fotografia por correspondência. O curso lhe deu direito a receber em casa um kit para montar um laboratório básico de revelação, com o qual fazia experiências que o levaram a se encantar pela fotografia. Assim, começou a fotografar festas familiares e eventos no trabalho do pai, então diretor do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, em Belém, desativado em 1984. Os pacientes do hospital, por iniciativa do pai de Luiz Braga, eram estimulados a realizar atividades culturais e de lazer, como o boi-bumbá, jogos de futebol, passeios e eventos, para ajudar no tratamento. A observação dessa rotina mudou seu jeito de ver o mundo.

Netuno II. Foto: Luiz Braga / Redes Sociais.
Formado em arquitetura, Braga, durante mais de 40 anos, a partir dos anos 1970, fotografando em preto e branco inicialmente, inventariou rostos e personagens das periferias de Belém e comunidades ribeirinhas, num trabalho de técnica esplendorosa. O mais interessante é que muitos dos personagens anônimos de Braga têm se reencontrado em seus registros, alguns pela primeira vez. Uma senhora que ele fotografou com as filhas na manhã do Natal de 1985 visitou uma exposição dele na Casa das 11 Janelas, em Belém, em 2016 (que teve curadoria de Diógenes Moura) e, emocionada, reatou com a família. A filha, que na fotografia antiga era uma menina com uma boneca, agora era professora. Houve também o caso da neta de um barqueiro que Braga fotografara em Manaus em 1992. Viajando, ela abriu a revista de bordo e reencontrou seu avô que havia morrido havia 2 anos. Foi bater lá na exposição de Belém. O açougueiro Alazir, 33 anos após ser fotografo encharcado de sangue de boi, reviu sua juventude na mostra.
Artista cuja singularidade é reverenciada em todos os quadrantes, ele começou a ser visto pelo mundo com curiosidade a partir dos anos 1980, quando ganhou o Prêmio Marc Ferrez com a série A margem do olhar. Em 1991, venceu o prêmio Color Photography, promovido pela Universidade de Boston em homenagem ao inventor do Kodachrome, Leopold Godowsky Jr. Teve suas obras exibidas no Museu de Arte Moderna de São Paulo, no CCBB, no Masp, na Pulitzer Art Gallery de Amsterdã, na Bienal de Fotografia de Curitiba, entre dezenas de outras instituições.
No final das contas, suas fotos compõem um inventário cada vez mais raro de se ver, um mergulho no puro humanismo. Mas, para enxergar pelos olhos de Luiz Braga, é preciso compreender antes o que se vê. É como se fosse um desmascaramento em série daquilo que alguém chamou de “antropologia da miséria”, aquela glamurização proposital, para efeitos de despolitização, dos estratos mais pobres da sociedade. Luiz Braga vê adiante da condição social, ele vê a pessoa, vê o gigantismo de seus afetos, a resistência intrínseca do sertanejo à brutalização do poder, do dinheiro, da expropriação.
Seu olhar nunca está a serviço de uma explicação, mas de uma compreensão. Chama a atenção pela reverência com que examina as situações em que as fotos se manifestam. Por exemplo: a fotografia de um homem sentado em uma mesa de latão toda oxidada, na qual já não se identifica o antigo merchandising, e que bebe o que parece ser uma pinga em um copo americano. A dedução é pelo jeito de segurar o copo e de beber – fosse outra coisa que não pinga, dificilmente beberia assim. O corpo arqueado, o peso jogado sobre o braço apoiado na mesa, e lá atrás se percebe uma parede na qual é visível (embora seja um detalhe embaçado da imagem) a infiltração agindo na argamassa. A infiltração assumida, a natureza rebelde chamando o tijolo de volta para o solo, uma marca das periferias brasileiras. O cabelo forte e desgrenhado do homem, sua musculatura e o viço da pele, denota que é jovem, embora fotografado na contraluz. Tem uma faca na mesa, a chamada peixeira. Mas o que se impõe no quadro todo são seus olhos. Os olhos brilhantes do rapaz, carregados de autoconfiança e até de desejo, miram um ponto no infinito que não pode ser focalizado nem pela fotografia e nem pelo fotógrafo, somente pela tentativa vã do espectador em mergulhar na alma daquele homem da foto.

Barqueiro azul em Manaus, 1992. Foto: Luiz Braga / Redes Sociais.
A foto acima descrita, tirada em 1986, é parte de uma experiência visual que encontra raros paralelos no mundo da fotografia do mundo na atualidade (e da posteridade, muito provavelmente). A fotografia, como praticamente todas as outras, foi tirada durante passeios de Braga pelas cidades ribeirinhas do Pará ou nas periferias de Belém a Santarém. O crítico Paulo Herkenhoff anotou que Braga revela uma Amazônia “além dos estereótipos”. O fotógrafo rechaça, no entanto, a pecha de “antropologia visual” para sua exposição. “Não fiz essas fotos com intenção de fazer mapeamento ou radiografia humana do Norte. Fui guiado pelo afeto e pela magia que vejo nas pessoas e coisas simples. Não saía com um roteiro ou lista de personagens. Eu me encantava e até hoje me encanto pela maneira como constroem a paisagem, com gestos, cores e sabedoria”.
Trata-se de um recorte de um imenso acervo de um dos gigantes da fotografia brasileira. Mais próximo de Mario Cravo Neto do que de Robert Mapplethorpe ou outros estrangeiros, Braga vive próximo dos personagens que sua mostra revela, com os quais considera que uma conversa pode ser ainda mais proveitosa do que uma foto. “Sou autodidata de um tempo em que não havia internet para dar um Google ou ver um tutorial no Youtube. Desde o Oscar, fotógrafo da nossa família, passando pelo Meca Assunção até o generoso David Zingg, foram muitos os fotógrafos a quem recorri garimpando informações. Eu admirava o Tripoli nos anos 70, Maureen Bisilliat na revista Realidade, Eugene Smith e Richard Avedon“, contou ele.
Braga só lamenta que, nos dias atuais, tenha ficado cada vez mais difícil sair pelas periferias das cidades do Norte do País fazendo o trabalho que fazia no passado. Um dos seus locais de maior interesse, atualmente, é a Ilha do Marajó. “Infelizmente, eu gostaria de estar exagerando, mas já senti na pele, eu e outros fotógrafos, o peso da violência e da desconfiança que quebraram a cumplicidade que, para mim, é fundamental para realizar uma obra dessa natureza”.
A fotografia talvez seja uma das expressões artísticas mais atingidas pela mudança tecnológica. Smartphones e as redes, Instagram, Tik Tok, Facebook: diversos equipamentos e redes sociais surgidos nos últimos anos massificaram a fotografia e também, ao mesmo tempo que democratizaram seus artifícios, esvaziaram um pouco sua característica de artesanato, de linguagem. Ou, ao menos, diluíram tudo na quantidade. O trabalho de Luiz Braga é daquele tipo que jamais poderá ser igualado pela máquina. No máximo, será mimetizado, como tudo o mais. Mas não se chega ao coração da humanidade pela via da simulação.
A Exposição Luiz Braga – Arquipélago Imaginário, fica disponível até 07/09/2025 no Instituto Moreira Salles, em São Paulo.
A classificação indicativa é livre e entrada é gratuita.
O funcionamento é de terça a domingo e nos feriados, das 10h às 20h.
O IMS Paulista fica na Avenida Paulista, 2424, São Paulo/SP – Brasil.
Texto: Jotabê Medeiros
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón