Sob o céu acinzentado, o (re)nascimento das tartarugas-da-amazônia
Por conta da fumaça a desova das tartarugas atrasou exatos 53 dias e especialistas agora temem aumento da mortandade de filhotes devido aos efeitos da combinação entre queimadas e estiagem na Amazônia
No período de desova, as tartarugas precisam tomar sol, que estava encoberto pela fumaça. Foto: IBAMA
No dia 12 de outubro de 2024, centenas de tartarugas-da-amazônia “invadiram” as praias às margens do Rio Guaporé, em Rondônia, na fronteira entre o Brasil e a Bolívia, e cavaram buracos na areia, em sincronia, para realizar um dos mais incríveis espetáculos proporcionados pela natureza na região: a desova.
O problema é que elas chegaram 53 dias atrasadas. A desova das tartarugas-da-amazônia ocorre, normalmente, entre os meses de agosto e setembro. Biólogos que acompanham os animais há anos apontam um inimigo: as queimadas florestais.
Mais de 10 mil focos de incêndio foram registrados em Rondônia entre julho e outubro de 2024. E, como onde há fogo, há fumaça, os céus do estado ficaram encobertos por uma densa camada acinzentada. O sol radiante, que fazia parte do cotidiano dos rondonienses, passou semanas “desaparecido”.
Nesse mesmo período, os portovelhenses respiraram o pior ar do país por dias consecutivos, segundo a plataforma suíça de monitoramento do ar, IQAir. E o cenário não afetou somente os humanos.
Além dos animais terrestres que morreram nos incêndios ou precisaram de socorro, as tartarugas, que estavam no rio, não enxergaram um bom momento para que seus filhotes viessem ao mundo.
“As tartarugas são répteis ectotérmicos: dependem da temperatura externa para aumentar a temperatura interna e, consequentemente, acelerar o metabolismo. Então, nesse período de desova, as tartarugas chegam com uma certa antecedência nas praias e começam a tomar sol. Este ano, elas não tiveram isso [o sol]”, aponta Camila Ferrara, médica veterinária formada pela Universidade de Santo Amaro, em São Paulo; e mestre e doutora em Biologia de Água Doce pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia.
“Para que a desova ocorra, precisamos do clima perfeito: rio baixo, sol forte e temperatura alta. Com as queimadas, tudo isso mudou; não tinha sol”, complementa Deyvid Muller, biólogo voluntário na Associação Quilombola e Ecológica do Vale do Guaporé (Ecovale), que faz parceria com o Ibama e acompanha as tartarugas nas praias às margens do Rio Guaporé.
Em 2023, o Tabuleiro do Guaporé foi classificado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) como o maior do país. Quase 1,5 milhão de nascimentos foram contabilizados. Este ano, os biólogos que acompanham os quelônios temem uma taxa maior de mortalidade devido ao atraso na desova.
Muller explica que agora os ovos ficam, em média, 60 dias enterrados na areia, em um processo de choca. Depois disso, é necessário que chova para umedecer a areia e permitir que os filhotes saiam dos ninhos. No entanto, devido ao atraso, quando o rio subir, os filhotes podem não estar prontos ainda, explica o biólogo.
Imagina uma praia normal com a maré baixa, onde toda a parte onde a água baixou foi utilizada pelas tartarugas para botar seus ovos. Só que, ao invés de a maré subir no mesmo dia, ela sobe com um período de 2 meses. Nos ninhos mais próximos de onde a água chegará primeiro, os filhotes morrem, pois, quando a água chega, ela deixa a areia compactada, impedindo as tartaruguinhas de saírem”.
A Ecovale foi fundada no dia 3 de julho de 1999 por um homem carinhosamente apelidado de Zeca Lula, justamente, por conta da diminuição de tartarugas no Vale do Guaporé. Antes ele era professor, mas largou a carreira para atuar como agente de proteção ambiental em parceria com o Ibama.
“A sensação é a melhor possível, não tem nada que se compare a sensação de você está fazendo o que a gente faz pela natureza por essas tartarugas”, comentou.
Segundo o Ibama, 310 tartarugas fêmeas foram pesadas e medidas em Rondônia neste ano. O trabalho é feito anualmente para acompanhar a biologia reprodutiva da espécie. Este ano, ainda conforme o instituto, a seca intensa e as queimadas impactaram o Programa Quelônios da Amazônia (PQA), em Rondônia.
Todos os principais rios do estado, incluindo o Guaporé, ficaram abaixo do esperado, sobretudo nos meses de agosto e setembro, segundo monitoramento feito pelo governo de Rondônia.
O rio Madeira, classificado como o maior do estado e um dos maiores do mundo, enfrentou a maior seca da história em Porto Velho. No dia 11 de outubro ele chegou a um nível nunca observado na história: 19 centímetros. Os dados são do Serviço Geológico do Brasil (SGB).
A soltura de quelônios no rio Guaporé está prevista para ocorrer no dia 15 de dezembro. É um evento que ocorre todos os anos para celebrar a vida e a natureza. Esse ano o evento tem um sabor diferente: de quem, como Zeca Lula e Deyvid Muller, enfrentou muitos desafios para manter constante o ciclo da natureza.
Texto: Jaíne Quele Cruz
Edição e Revisão: Glauce Monteiro
Montagem de Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón