Inferno (sem) Verde
Em ensaio, Marcos Colón reflete sobre a crise ambiental na Amazônia e o colapso iminente da maior floresta tropical do mundo
Os moradores de diversas comunidades ribeirinhas da Amazônia, estão sofrendo com a falta de água potável e escassez de alimentos causados pela seca. Foto: Edmar Barros / Amazônia Latitude
Foi Alberto Rangel quem tornou célebre a frase “inferno verde”. A imagem evocada por esse tropo transcendeu as páginas da ficção e chegou até nós pelo prefácio de Euclides da Cunha. No entanto, ao olharmos para a Amazônia hoje, essa metáfora se torna ainda mais relevante e perturbadora do que nunca.
O “Inferno Verde”, nome dado também ao título do livro de Rangel, devia ser o que é: surpreendente, original, extravagante; feito para despertar estranheza, desconforto e antagonismo instintivo entre os críticos da atualidade. A presente realidade amazônica reflete um “doloroso realismo” que, embora esteja longe do universo denunciado por Euclides, ecoa o mesmo sentido de urgência e desolação.
A Amazônia está enfrentando a maior seca de sua história, um fenômeno que se soma às maiores queimadas dos anos recentes. A cada estação seca, o que antes era uma verde exuberância agora é reduzido a cinzas e desolação. Como Euclides da Cunha observou, “a terra farta e a crescer na plenitude risonha da sua vida” está agora consumida por um inferno verde onde a sociedade local parece estar “morrendo miseravelmente”.
A seca e as queimadas são as mais recentes manifestações de uma crise ambiental em larga escala. “A tragédia decorre sem peripécias”, como disse Euclides, e a devastação não segue uma narrativa tradicional; é um colapso silencioso e avassalador. As “terras caídas” e as inundações que ele descrevia são agora substituídas por incêndios que consomem a terra e o futuro da região.
“Entre as gentes pervagantes no solo, que lhes nega a própria estabilidade física”, observamos hoje a luta desesperada pela sobrevivência em meio à devastação. O ambiente que sustenta a vida de milhões está sendo destruído, e “o homem mata o homem como o parasita aniquila a árvore”. A comparação de Euclides entre a destruição física e moral ressoa fortemente na realidade contemporânea.
Hoje, mais do que nunca, a Amazônia representa a última página do Gênesis, como afirmou Euclides da Cunha. Contudo, essa página não está sendo escrita por Deus, mas sim pela ignorância arrogante e negacionista, sob o signo da catástrofe ambiental. Esta noção, segundo Euclides, nos dizia que a Amazônia, ademais de ser um território novo (por ser o último na lista das criações de Deus), sempre estará — em suas palavras — em evolução, em constante mudança, em “estado de ser”, como queria ele. Nossos dias realizam a profecia euclidiana, mas pelo avesso: sua evolução é a evolução para o “estado de não-ser”.
E, assim, “A grei selvagem copia, na sua agitação feroz, a luta inconsciente pela vida que se lhe mostra na ordem biológica inferior.” A luta pela sobrevivência na Amazônia transcende a floresta em si — é uma luta pela própria essência da vida na Terra, em que o destino da maior floresta tropical do mundo reflete o futuro da humanidade.
Alberto Rangel e Euclides da Cunha nos alertam para o horror que não é apenas um eco do passado, mas um grito de socorro do presente. O “inferno verde” que eles descreveram mais real do que nunca, e o que vemos hoje é uma agonia coletiva, uma luta desesperada para salvar o que resta de um ecossistema único e vital.
A devastação da Amazônia não é apenas uma questão ambiental; é um reflexo de uma crise moral e social. O mundo deve prestar atenção e agir antes que o último capítulo do Gênesis seja escrito em cinzas.
O futuro que se delineia na Amazônia é, de fato, assombroso. Um futuro marcado por temperaturas mais altas, intensificação do narcotráfico, secas severas, fome crescente e a escassez das águas que, até pouco tempo, eram a base da vida na região. Euclides da Cunha já nos alertava para essa tragédia humana e ambiental: “Ora entre as magias daqueles cenários vivos, há um ator agonizante, o homem”. Ele ainda complementa, referindo-se a um dos onze contos de Rangel: no “”Hospitalidade’, o homem decaído volve, em segundos, por um milagre de atavismo, à tona da humanidade, antes de mergulhar de uma vez na sombra, dia a dia mais espessa, da sua decrepitude moral irremediável.”
A degradação que hoje presenciamos parece cumprir esse destino sombrio descrito por Euclides. O homem, ator principal na destruição da floresta, também se torna vítima desse processo, mergulhando cada vez mais na sombra de uma crise moral e ambiental irreversível. O que antes era a luta pela sobrevivência em um ecossistema vibrante, hoje é a luta para não sucumbir a um ambiente devastado, onde a falta de água, alimentos e dignidade humana está se tornando o novo normal.
Se Alberto Rangel, como disse Euclides, “é um assombrado diante daquelas cenas e cenários; e num ímpeto ensofregado de sinceridade, não quis reprimir os seus espantos, ou retificar, com a mecânica frieza dos escreventes profissionais, a sua vertigem e as rebeldias da sua tristeza exasperada”, como ele se sentiria ao ver as imagens capturadas pelo fotógrafo Edmar Barros em sua viagem de 10 dias pelo inferno (sem) verde da Amazônia?
Certamente, Rangel, que já descrevia a Amazônia como um cenário de tragédia e luta, ficaria ainda mais horrorizado. As fotos de Barros, que documentam as queimadas, a seca devastadora e as comunidades que lutam para sobreviver, tornam tangível o que Rangel e Euclides apenas vislumbraram em suas épocas: um cenário de colapso ambiental que vai além da estética, tocando na essência do que significa existir em um ambiente que não mais sustenta a vida.
O “inferno verde” de Rangel e Euclides não era apenas uma metáfora literária, mas uma premonição do que a Amazônia está se tornando hoje. Um inferno sem o verde, sem a água, sem a vida que outrora florescia. As imagens de Barros são testemunhas desse processo agonizante, capturando a dor, a resistência e, em muitos casos, a derrota do homem frente a uma tragédia de proporções catastrófica não só para a região mas também para o nosso planeta.
Esse é o futuro que a Amazônia enfrenta — e que, de certa forma, o mundo inteiro também deverá confrontar.
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Marcos Colón é professor da Southwest Borderlands Initiative de Mídia e Comunidades Indígenas na Walter Cronkite School of Journalism and Mass Communication, da Universidade Estadual do Arizona. Sua pesquisa foca nos estudos literários e culturais brasileiros, com ênfase particular na Amazônia, nos estudos indígenas e nas representações da “natureculture” em filmes documentários e no cinema mundial. Seu livro The Amazon in Times of War está previsto para ser lançado em outubro deste ano.
Revisão: Glauce Monteiro
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón